3 O MAGISTRADO RECUPERACIONAL COMO AGENTE RESPONSÁVEL PELA IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA
A política de recuperação de empresas possui uma série de particularidades relacionadas com os seus próprios atores, idéias e instituições, que demandam uma avaliação específica[29]. Trata-se de política que ocorre de forma preponderante no bojo de um processo judicial. Diferentemente das políticas de saúde e educação, por exemplo, cuja participação do Judiciário ocorre a partir do descumprimento das promessas constitucionais por parte dos Poderes Executivo e Legislativo, a arena adequada para o exercício dos direitos subjetivos relacionados com a política de recuperação de empresas consiste em uma Vara Empresarial. A despeito de naturalmente haver participação do Executivo e do Legislativo no sistema recuperacional, tais como nos casos de oferta de crédito, treinamento de profissionais, aquisição de participações acionárias (nas hipóteses de graves crises financeiras nacionais), diversos benefícios ao devedor se restringem ao âmbito judicial, como o trespasse sem que o adquirente assuma a responsabilidade pelos débitos do alienante, a suspensão das ações e execuções contra o empresário por 180 dias etc.
Nesse contexto, vem à baila a discussão acerca da construção da decisão no processo de recuperação judicial. Ao longo da história, percebe-se na legislação brasileira uma alternância entre os credores e o magistrado na palavra final acerca da aprovação da reorganização empresarial. Propõe-se este trabalho, após a constatação da natureza política da jurisdição e da sua legitimação na conjugação com o arranjo das políticas públicas, a buscar um novo modelo capaz de conciliar todos esses interesses com segurança jurídica.
3.1 O JUDICIÁRIO ENQUANTO ARENA ELEITA PELO LEGISLADOR PARA A EXECUÇÃO DA POLÍTICA
O atual sistema de recuperação de empresas no Brasil foi instaurado com o advento da LRF. Deveras, após a constatação da decrepitude da antiga Lei de Falências (DL 7.661/45), com os seus institutos da falência e da concordata (preventiva e suspensiva), no bojo de uma série de mudanças ocorridas no plano macroeconômico nacional no início da década de 90, houve a instituição de uma Comissão no Ministério da Justiça, que elaborou um projeto em 1992, transformado no Projeto de Lei 4.376/1993. Após mais de uma década de intensos debates, veio a lume a Lei 11.101/2005, com os institutos da recuperação judicial, recuperação extrajudicial, recuperação especial para microempresas e empresas de pequeno porte e falências.
A distinção mais relevante entre as duas leis se refere ao objetivo precipuamente liquidatário no DL 7.661/45 e o foco essencialmente recuperatório no novel diploma. Deveras, toda a estrutura da novel legislação gira em torno dos princípios da preservação da empresa e da função social. Mesmo na hipótese da falência, a idéia da preservação da empresa é protegida, tendo em vista que o art. 140, I, da LRF, estabelece a preferência pela alienação em bloco do estabelecimento empresarial (complexo organizado de bens que o empresário destina ao exercício da empresa)[30]. Avulta de grande relevância, nessa toada, a separação evidente entre a sorte do empresário (sujeito que explora a empresa assumindo os seus riscos) e a empresa (atividade econômica organizada voltada para a produção ou circulação de bens ou serviços dirigidos para o mercado). Portanto, a falência é do empresário e não da empresa, que, na medida do possível, será assumida por outro empresário, adquirente do estabelecimento.
Geralmente, na análise da participação do Judiciário na análise de políticas públicas, a doutrina faz referência ao princípio da subsidiariedade, isto é, o Judiciário atua na hipótese de descumprimento de concretização dos direitos fundamentais sociais por parte do Executivo e do Legislativo. Na política pública de recuperação de empresas, entrementes, não há espaço para a aplicação desse princípio. Isso porque diversos benefícios para um empresário em dificuldade apenas são alcançados no bojo de um processo judicial, ou seja, a despeito da conveniência de negociação direta entre o devedor empresário e seus credores pela preservação da reputação, o legislador apresenta benefícios para o acordo celebrado com o acompanhamento judicial.
À guisa de ilustração, pode-se fazer referência à suspensão das ações e execuções contra o empresário pelo prazo de 180 dias (art. 6º, § 4º, LRF), de grande relevância para o titular da atividade reorganizar o seu negócio e buscar a superação da crise econômico-financeira. Na mesma linha, a alienação judicial de unidades produtivas isoladas com base no plano de recuperação judicial isenta o adquirente de responsabilidade pelos débitos do alienante, inclusive os de natureza tributária e trabalhista (art. 60, parágrafo único, LRF). Vale ressaltar que fora do processo de recuperação, o adquirente do estabelecimento responde pelos débitos gerais anteriores regularmente escriturados (art. 1.146, Código Civil), pelos débitos trabalhistas (art. 448, CLT) e pelos débitos tributários (art. 133, CTN). Quanto a esse ponto específico, inclusive, o STF declarou a constitucionalidade do dispositivo no julgamento da ADI 3.934[31]. Atentou-se na hipótese para a engenharia institucional criada com o objetivo de adaptação do sistema produtivo nacional às necessidades do mundo globalizado.
Outrossim, como benefício decorrente da propositura da demanda recuperacional se afigura a prioridade dos créditos oriundos de obrigações contraídas durante o processo de recuperação, conforme os arts. 67 e 84 da LRF. Esses créditos serão considerados extraconcursais, possuindo privilégio, por exemplo, em relação aos credores trabalhistas concursais, o que facilita a obtenção de crédito. Por derradeiro, há a previsão de um parcelamento especial mais benéfico para devedores em recuperação judicial (art. 68, LRF; §§ 3º e 4º, art. 155-A, CTN). A esse respeito, faz-se mister salientar que recentemente a Lei Complementar 147, de 7/8/2014, estabeleceu que as microempresas e empresas de pequeno porte em recuperação judicial farão jus a prazos 20% superiores aos atribuídos aos demais devedores empresário sujeitos a esse procedimento (parágrafo único, art. 68, LRF).
Percebe-se, desse modo, que o Judiciário representa o local adequado para implementação da política pública de recuperação de empresas. Não se pode olvidar nesse sentido que não há sequer um órgão do governo que gerencie a política de recuperação de empresas. Dessarte, indubitável o papel do Judiciário no atual sistema enquanto arena adequada para a concretização da política de recuperação de empresas. Nesse contexto, como arena política, deve ser garantida a participação dos demais atores. Inclusive, não há qualquer dúvida de que a recuperação de empresas trata de direitos coletivos. A rigor, o processo de recuperação de empresas representa uma ação coletiva passiva, o que poderia atrair os métodos e regras relativos a esse tipo de demanda. Não seria despiciendo sublinhar ainda que o processo coletivo implica no reconhecimento de maiores poderes ao juiz, ampliação da relevância da argumentação metajurídica, compatibilização do interesse das partes com o interesse coletivo e publicização do processo[32]. Trata-se de um processo civil de interesse público em que o objeto da lide não se restringe aos interesses privados dos indivíduos, mas à operação de uma política pública[33].
Sob essa perspectiva, são necessárias diversas medidas para adequar as regras do sistema concursal brasileiro à base principiológica da LRF. Desse modo, a doutrina especializada vem apresentando muitas sugestões interessantes com esse desiderato. Assim, relevante a proposta de ampliação do rol de legitimados para propor a recuperação judicial e apresentar o plano de reestruturação (credores, trabalhadores, acionistas, governo, comunidade etc.). Outrossim, imprescindível a participação dos demais interessados na resolução da insolvência, uma vez que a assembléia que irá deliberar pela aprovação do plano é formada tão somente por credores. Por essa razão, imprescindível a participação qualificada do Ministério Público, bem como a organização dos diversos interessados em classes ou comitês. Também relevante a intervenção na recuperação judicial de entidades na qualidade de amicus curiae. A tutela completa dos interesses transindividuais no processo de recuperação tornaria desnecessária inclusive a ação civil pública, concretizando a instrumentalidade processual[34].
A questão mais relevante aponta para a compreensão de que na sistemática atual o magistrado é o agente responsável pela implementação da política pública. A sua atuação, portanto, deve se adequar a uma instância democrática, de forma a conferir a possibilidade de manifestação de todos os grupos que sofrerão as conseqüências diretas e indiretas do resultado do processo. Para tanto, mister a instituição de uma comissão interdisciplinar com a participação de todos os interessados nesse tipo de demanda (representantes do governo, dos sindicatos patronais e dos trabalhadores, pesquisadores) para oferecer parecer ao magistrado com os subsídios da interferência daquele caso na política macroeconômica. Nesse contexto, merece atenção especial a questão relativa à forma da cognição jurisdicional, tema do próximo tópico.
3.2 A ADEQUAÇÃO DA DECISÃO QUE TUTELA O INTERESSE DA COLETIVIDADE À LUZ DE DADOS SOCIOECONÔMICOS: UMA POSSÍVEL APROXIMAÇÃO COM A METODOLOGIA DO DIREITO CONCORRENCIAL
A descrição dos princípios norteadores da recuperação de empresas no art. 47 da LRF evidencia que o novo sistema recuperacional brasileiro persegue valores que extrapolam os interesses do devedor e dos credores. Ao lado do interesse dos credores, o dispositivo legal cita a manutenção da fonte produtora e dos empregos, preservação da empresa, função social e estímulo à atividade econômica. Trata-se evidentemente da adoção da perspectiva institucionalista, uma vez que a lei tutela, a rigor, os interesses de toda a coletividade, o que justifica a abordagem enquanto política pública. Nesse sentido, percebe-se que o fato de haver uma política pública de recuperação de empresas faz com que os Tribunais adotem uma forma de interpretação que se afasta da literalidade da LRF. Muitos exemplos demonstram essa conclusão.
O primeiro remete à dispensa da certidão negativa de débitos tributários exigida para a concessão da recuperação judicial pelo art. 57 do citado diploma legal[35]. Nesse julgado, ainda se faz referência à suspensão indireta do processo de execução fiscal, a despeito do art. 6º, § 7º, da LRF, estabelecer expressamente que não ocorreria essa suspensão. Do mesmo modo, o art. 6º, § 4º, da LRF dispõe que o prazo de 180 de suspensão das ações e execuções contra o devedor empresário não será prorrogado em hipótese nenhuma, bem como que, transcorrido esse prazo, independentemente de decisão judicial, os credores poderão cobrar os seus créditos. Não obstante, o STJ já pacificou o entendimento de que será possível a prorrogação na hipótese de a demora não poder ser imputada ao devedor[36].
Um caso emblemático na construção de teses principiológicas consiste na aplicação do instituto norte-americano do cram down no Brasil. Esse instituto autoriza que o juiz derrube o veto dos credores, desde que preenchidos alguns requisitos, tais como o melhor interesse dos credores (devem receber mais do que receberiam na falência), o plano seja justo e equitativo (uma classe menos privilegiada não pode receber seus créditos antes de uma com prioridade) e não haja injusta discriminação (os credores da mesma classe devem receber tratamento equânime)[37]. Ressalte-se que, malgrado a lei brasileira expressamente exija a aprovação da maioria dos credores para a concessão da recuperação, o TJSP[38] e o TJRS[39] já aplicaram expressamente o instituto, mormente para evitar a rejeição da recuperação quando há credor único em alguma das classes do art. 41 (trabalhistas; com garantia real; microempresas ou empresas de pequeno porte; demais credores). Cite-se ainda a construção jurisprudencial que retira do Fisco a legitimidade para ingressar com pedido de falência, apesar de a lei atribuir esse poder a qualquer credor[40].
Dessarte, constata-se que os Tribunais capturaram o núcleo axiológico simbolizado pelos arts. 47 e 75 da LRF, afastando em diversos casos a interpretação literal para se afinar com a política de recuperação de empresas, em uma importante hermenêutica teleológica. Contudo, a forma de aplicação vem utilizando valores abstratos, destituídos da necessária base empírica. Por essa razão, propugna-se nesse trabalho por uma abordagem teleológico-empírica capaz de realizar os valores da LRF de forma compatível com a política econômica e em harmonia com as demais políticas públicas (tributária, concorrencial, industrial, empregatícia). O conteúdo de princípios como função social e preservação da empresa demanda dados socioeconômicos.
Sob essa perspectiva, torna-se recomendável a incorporação, com adaptações, da metodologia empregada para a verificação de atos de concentração no direito concorrencial, uma vez que busca o atendimento dos interesses de toda a coletividade. As decisões prolatadas pelo CADE seguem um procedimento que oferece transparência e conhecimento das causas de decidir, uma vez que fundamentadas em dados socioeconômicos. Ademais, há ampla possibilidade de manifestação de interessados no processo administrativo (art. 50, Lei 12.529/2011). Com efeito, para verificar se determinada operação prejudica a concorrência, o CADE realiza aprofundado exame do mercado em que os atores estão inseridos. Acrescente-se que o Guia para Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal (Portaria Conjunta SEAE/SDE 50/2001) fixa cinco etapas: 1) definição do mercado relevante; 2) determinação da parcela de mercado sob comando das requerentes; 3) exame das possibilidades de exercício de poder de mercado; 4) verificação das eficiências econômicas; 5) comparação entre custos e benefícios com elaboração do parecer final.
Não seria despiciendo observar que também o direito concorrencial protege os interesses da coletividade, inclusive se caracteriza como instrumento de implementação de políticas públicas (de combate ao abuso do poder econômico e promoção da livre concorrência) ou técnica estatal para conformar a política econômica de modo a beneficiar toda a coletividade[41]. A Lei 12.529/2011 representou marco fundamental na adoção da perspectiva institucional no direito concorrencial do Brasil, fazendo com que o Direito encare o desafio de recuperar a capacidade de organizar de forma mais justa e equitativa as relações sociais, a partir de uma análise estrutural da dinâmica econômica. Assim, o Direito Concorrencial também deve avaliar o impacto social e econômico das decisões em todos os setores direta ou indiretamente afetados[42].
Com esse raciocínio, para os processos de recuperação de empresas se pode estruturar um modelo em que ocorrerá uma tentativa de negociação de acordo sem interferência estatal. Havendo a aprovação do plano na assembléia geral de credores, ao Judiciário apenas caberia o controle de legalidade, da forma como já ocorre atualmente, mas aumentando a participação dos interessados. Contudo, na hipótese de negativa de aprovação dos credores, possível a verificação da adequação da concessão com base na implementação da política pública específica. Naturalmente, a política necessariamente envolve a proteção do mercado do crédito e, portanto, os direitos dos credores devem ser assegurados. Para essa compatibilização, que exige uma cognição jurisdicional mais aprofundada, propõe-se a utilização da “análise posicional”, instrumental analítico da Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE).
A análise posicional diz respeito à verificação da fruição empírica de um direito fundamental, mediante cinco etapas. Adaptando essa formulação para o sistema de recuperação de empresas, poderia se pensar no seguinte itinerário: 1) relacionar a política pública ao direito subjetivo (política pública de recuperação de empresas e direito à recuperação da empresa); 2) decomposição analítica do conteúdo relacional do direito (padrão de ação necessário à fruição do direito, como oferta de crédito, infraestrutura, capacitação de profissionais, entre outros, podendo haver a utilização dos índices de competitividade do Banco Mundial – Relatório Doing Business, do International Institute for Management Development e do Fórum Econômico Mundial); 3) quantificação da fruição empírica do direito (condições reais enfrentadas pelo empresário); 4) definição de um padrão de validação jurídica – PVJ (parâmetro com o grau de sacrifício aceitável por parte dos credores de forma a não prejudicar o mercado de crédito, podendo mais uma vez ser utilizado o Relatório do Banco Mundial para se examinar a média de tempo, de custo e de taxa de recuperação dos créditos de países com grau de desenvolvimento semelhante ao do Brasil; também será útil a avaliação dos precedentes que realizarem esse tipo de análise); 5) verificação da efetividade do direito (viabilidade do plano de recuperação e análise da conveniência de manutenção do empresário à frente do negócio, com base na responsabilidade da sua gestão para a crise, levando-se em consideração outros empresários do mesmo setor de porte compatível)[43].
Após essa avaliação, o magistrado poderá decidir de forma fundamentada e transparente de maneira a compatibilizar o direito subjetivo com a política pública. O reconhecimento de que foi violado o direito de produção do empresário implicaria na construção de um complexo de medidas que viabilizassem a retomada da atividade. Podem ser pensados em diversos mecanismos nesse sentido: estímulo para os Fundos de Investimento em Participações (instrumento do mercado de capitais para a recuperação judicial – art. 2º, § 1º, Instrução CVM 391/2003)[44]; criação de uma linha de crédito especial, bem como a constituição de um fundo específico, com subvenção pública e privada[45]; incentivos fiscais[46]; treinamento profissional, inclusive de gestão empresarial, melhoria da infraestrutura, entre outros.
A história da legislação brasileira intercala períodos com soberania do magistrado e outros com prevalência da vontade dos credores. A abordagem da análise jurídica da política pública, contudo, pode apresentar resposta mais completa, evitando a unilateralidade preponderante das soluções consagradas na legislação. Indubitavelmente, não se cuida de uma solução pronta e acabada para toda a complexidade que envolve uma situação de insolvência. Não obstante, cuida-se de procedimento mais transparente e democrático com vistas à construção de soluções capazes de conciliar os diversos interesses envolvidos. Com isso, valoriza-se o mercado de crédito, ao tempo em que evita que decisões relevantes para toda a sociedade sejam deixadas ao alvedrio dos credores.