Tendo em vista os muitos problemas advindos na cobrança dos emolumentos perante o Cartório de Registro de Imóveis, nos atos relacionados ao primeiro financiamento habitacional no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação - SFH, importa uma averiguação mais detida sobre os direitos que vêm dando efetividade ao desconto previsto no artigo 290 da Lei Federal nº 6.015/73 – Lei dos Registros Públicos.
O desconto está relacionado à materialização do direito fundamental à moradia, estampado no art. 6º da Constituição, revelando-se o Poder Público como agente responsável pela efetivação de tal direito social, por intermédio das funções públicas exercidas pelos Oficiais de Registro e Juízes Corregedores.
Desse modo, enfrentam-se 8 direitos encampados pela jurisprudência em prol do direito à moradia, na concessão do desconto prescrito no artigo 290 da Lei nº 6.015/73, in verbis:
“Art. 290. Os emolumentos devidos pelos atos relacionados com a primeira aquisição imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da Habitação, serão reduzidos em 50% (cinquenta por cento).”
1 - O consumidor tem direito ao desconto de 50% nos emolumentos se for o primeiro financiamento habitacional pelo SFH, não importando se tem ou teve outro imóvel rural ou urbano.
É o primeiro financiamento residencial que enseja o desconto, quando no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação-SFH, que se destina à promoção da construção e aquisição da casa própria para as classes de menor renda da população. O consumidor pode ser (ou já ter sido) proprietário de outro imóvel urbano ou rural, não importando para fins de deferimento do desconto, desde que seja o primeiro financiamento habitacional, fará jus ao desconto. Assim, se o consumidor (mutuário), por exemplo, for proprietário de uma casa, adquirida por herança, ou de um terreno, adquirido à vista, fará jus ao desconto, eis que será a sua primeira aquisição residencial financiada. A única hipótese que impede o acesso ao desconto dá-se quando o mutuário já teve outro imóvel financiado pelo SFH.
Nessa linha de raciocínio caminha a interpretação jurisprudencial quanto à regra contida no art. 290 da Lei 6.015/73:
“REGISTRO DE IMÓVEIS - CUSTAS E EMOLUMENTOS - Primeira aquisição de imóvel com financiamento pelo SFH - Irrelevância de o recorrente possuir outros imóveis - Redução de 50% quanto aos emolumentos devidos - Exegese do art. 290 da Lei 6.015/73 - Precedentes da CGJ - Recurso provido.” ( CGJSP -Processo nº 8.492/2015, São Bernardo do Campo/SP, j. 24/03/2015, DJ: 15/04/2015., Relator Gustavo Henrique Bretas Marzagão)1 (grifo aposto)
Ora, fica evidente que, para a concessão do desconto, pouco importa se o adquirente de imóvel financiado já tinha ou tem outros bens imóveis, e sim se esse é o primeiro e único financiamento habitacional. Desse modo, se for o primeiro financiamento habitacional, de rigor o deferimento do desconto nos emolumentos perante o Cartório de Registro de Imóveis.
2 - O desconto de 50% incide sobre a totalidade dos emolumentos devidos tanto no registro da compra e venda, quanto no registro da garantia (hipoteca ou alienação fiduciária), no primeiro financiamento habitacional, inclusive na respectiva certidão expedida.
Vale dizer, tanto os emolumentos do registro da compra e venda, levando em consideração o valor da alienação ou o valor do imóvel, o que for maior, quanto os emolumentos do registro da garantia (alienação fiduciária/hipoteca), levando em consideração o valor da dívida, são alvo do desconto de 50% sobre a totalidade do valor cobrado, no registro do primeiro financiamento habitacional, como ostenta o seguinte julgado da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo:
"Registro de Imóveis - Contrato de aquisição de imóvel financiado pelo Sistema Financeiro da Habitação, com pacto acessório de alienação fiduciária do bem em garantia do pagamento da dívida - Cálculo do valor dos emolumentos - Incidência do desconto previsto no art. 290 da LRP e na Tabela de Custas e Emolumentos anexa à Lei Estadual n. 11.331/2002 sobre o registro da garantia e, também, sobre o registro da compra e venda - Orientação firmada pela Corregedoria Geral da Justiça em precedente invocado pelo próprio Oficial Registrador - Inadmissibilidade da adoção de critério diverso em prejuízo do usuário do serviço - Restituição do décuplo do valor cobrado a maior (art. 32, § 2º, da Lei Estadual n. 11.331/2002) - Decisão do Juízo Corregedor Permanente acertada - Recurso não provido" . (Processo nº 105.563/2009, São Paulo/SP, j. 04.11.2009, DJ: 15/04/2015., Relator Álvaro Luiz Valery Mirra) (grifo aposto)
Nesse diapasão, as normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de SP elucidam no item 112.1, Cap. XX, que:
“112.1. Em caso positivo, a redução para cobrança dos emolumentos prevista no art. 290, da Lei nº 6.015/73, incidirá sobre todos os atos relacionados com a primeira aquisição imobiliária.” (grifo aposto)
Em decorrência, não há amparo jurídico ou legal para frustrar o desconto dos emolumentos que incide sobre o registro da compra e venda, o registro da garantia, e a respectiva certidão expedida, vedando-se, pois, qualquer estratagema para desvirtuá-lo ou mitigá-lo, como a incidência só sobre a parte financiada.
3 - O desconto de 50% incide sobre a totalidade dos emolumentos devidos no registro do contrato de mútuo, com garantia (hipoteca ou alienação fiduciária), quando tal financiamento for destinado à construção residencial em terreno próprio.
É devido o desconto no registro do contrato de mútuo, com constituição de garantia (alienação fiduciária ou hipoteca), quando o mutuário/consumidor faz o financiamento para a construção habitacional em terreno próprio, como ostenta o seguinte julgado da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo:
“Proprietário que já possui terreno. Financiamento para construção de casa. Interpretação do art. 290 da Lei 6.015/73, que deve ser feita de molde a garantir a redução quando ocorra qualquer das formas de aquisição da propriedade. Dispositivo que sequer fala em aquisição do domínio. Dessa maneira, se a aquisição é por acessão (art. 536, V, do CC) que independe de registro do título, mas é financiada, inconcusso que o mútuo com garantia hipotecária pelo Sistema Financeiro de Habitação, como título objeto de registro é ato relacionado com a aquisição de moradia para fins residenciais, a merecer o benefício legal”. (Processo CGJSP nº 152/1987) (grifo aposto)
Em tal hipótese deve o desconto ser aplicado nos emolumentos devidos pelo registro da garantia (alienação fiduciária ou hipoteca) e pela certidão expedida, em contrato de mútuo para construção residencial em terreno próprio, se esse não houver contratado anterior financiamento para fins habitacionais (item 1).
4 - Se deferido o desconto no registro do contrato de compra e venda (item 2) ou do mútuo (financiamento para construção) (item 3), o cancelamento das garantias (hipoteca ou alienação fiduciária), a averbação da construção e a respectiva certidão expedida, terão igualmente o desconto de 50% nos emolumentos, independentemente de novo requerimento.
Se foi deferido o desconto por ocasião do ato registral primevo, estudado, para fins didáticos, nos itens 2 e 3, nasce o direito potestativo ao desconto de 50% sobre a totalidade dos emolumentos devidos em todos os atos posteriores relacionados com tal aquisição imobiliária. Vale dizer, tanto a averbação da construção (no contrato de mútuo para financiamento da construção em lote próprio), que integra as obrigações do mutuário perante o credor, quanto o cancelamento da hipoteca ou da alienação fiduciária, que condiciona a aquisição da propriedade plena, por se relacionarem umbilicalmente com a primeira aquisição imobiliária, farão jus ao desconto de 50% do art. 290 da Lei nº 6.015/73, conforme se observa nas decisões dos tribunais :
“Averbação de cancelamento de hipoteca em contrato de mútuo vinculado ao SFH – Não concedida pelo Oficial a redução de 50% prevista pelas notas explicativas da Lei 11.331/02, item II.2 – Condenação em 1º grau à devolução do décuplo da diferença cobrada a maior – Recurso do Ministério Público sustentando ausência de má-fé do Registrador – Hipótese, porém, de erro inescusável, dado constar tanto do contrato quanto a autorização para cancelamento da hipoteca a declaração de se tratar de negócio vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação – Recurso não provido.” ( Proc. CGJSP nº 8.014/2009) (grifo aposto)
"APELAÇÃO CÍVEL. DÚVIDA. REGISTRO DE IMÓVEIS. PRETENSÃO À REDUÇÃO DOS EMOLUMENTOS, POR SE TRATAR DA PRIMEIRA AQUISIÇÃO IMOBILIÁRIA, COM RECURSOS DO SFH, NOS TERMOS DO ART. 290 DA LEI N. 6.015/1973. (...) Apelo dos interessados no registro. Hipótese em que os registros e averbações pretendidos relacionam-se à primeira aquisição imobiliária dos compradores. Consequente direito à redução dos emolumentos, pela metade, nos termos do art. 290, caput, da Lei n. 6.015/1973. (...) APELAÇÃO DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL NÃO CONHECIDA. APELO DOS INTERESSADOS PROVIDO EM PARTE." (Apelação Cível Nº 70049352701, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mylene Maria Michel, Julgado em 18/12/2012)
Nesse diapasão, as normas administrativas das Corregedorias de Justiça assim regulamentam o desconto do art. 290 da Lei nº 6.015/73:
“112.1. Em caso positivo, a redução para cobrança dos emolumentos prevista no art. 290, da Lei nº 6.015/73, incidirá sobre todos os atos relacionados com a primeira aquisição imobiliária.” (grifo aposto) (Item 112.1, Cap. XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de SP)
"Art. 12-H – Os emolumentos devidos pelos atos relacionados com a primeira aquisição imobiliária para fins residenciais financiada pelo Sistema Financeiro de Habitação, devem ter redução de 50%, de acordo com a disciplina legal da matéria (art. 290 da Lei 6015/73). § 1º - O desconto do caput aplica-se, inclusive, às averbações das edificações decorrentes do financiamento e aos cancelamentos das respectivas garantias fiduciárias ou hipotecárias." (grifo aposto) (artigo 12-h, da Consolidação Normativa Notarial e Registral da Corregedoria Geral de Justiça do RS)
Com efeito, o deferimento do desconto, por ocasião do ato registral pretérito, deita efeitos em todos os atos posteriores relacionados com o financiamento imobiliário, tais como averbação de construção, aditivos, cancelamentos, respectivas certidões expedidas etc, independentemente de novo requerimento por parte do consumidor/mutuário.
Faz-se de discutível legalidade, racionalidade e justiça a exigência de novel requerimento como requisito a extensão do desconto aos atos posteriores relacionados com a primeira aquisição imobiliária, por não haver nova cognição por parte do oficial de registro quanto ao desconto, eis que o consumidor se valerá dos efeitos do ato administrativo que o deferiu por ocasião do ato registral primevo do financiamento imobiliário. Se porventura o oficial de registro não souber se foi deferido o desconto no ato pretérito, poderá compulsar o arquivo da unidade predial, resgatando o requerimento inicial apresentado e o contrato da aquisição imobiliária ou do mútuo, prestigiando, assim, o princípio da eficiência no serviço público.
Ademais, mediante simples visualização do último ato escriturado na matrícula, cujos emolumentos, com desconto, devem estar ali lançados obrigatoriamente, por força do art. 14, parágrafo único, da Lei nº 6.015/73, o oficial de registro poderá vislumbrar o deferimento prévio da benesse legal.
No ponto, a exigência do novel requerimento para a extensão aos atos posteriores do desconto já deferido anteriormente, cumulado com a omissão em informar ao consumidor que a concessão do desconto está condicionada a tal vetusta exigência, enseja uma conjuntura perniciosa que recomenda a imediata ciência tanto ao Juízo Corregedor do Cartório, para a devolução do numerário cobrado em excesso, quanto ao Ministério Público, para tutelar eventual restituição coletiva aos consumidores cujo desconto foi suprimido (proteção aos direitos individuais homogêneos).
5 - O Cartório de Registro de Imóveis tem obrigação de informar ao consumidor os requisitos da concessão do desconto previsto no artigo 290 da Lei nº 6.015/73.
Os cartórios são serviços públicos, delegados a particulares, que existem para satisfazer as necessidades coletivas. O particular (oficial de registro), a quem é confiado o cartório por concurso, espera-se que seja profissional de direito diferenciado, jurista de fé pública, agente público de quem então se exige apurado conhecimento na defesa do consumidor. Daí a razão ao maior rigor em transparência e eficiência, pois, em prol do mutuário.
Desse modo, faz-se adequada a prestação do serviço público quando o oficial de registro, pessoalmente ou por seus prepostos, fornece ao consumidor informações claras e didáticas quanto aos requisitos hábeis para o deferimento do desconto no registro do contrato de financiamento e o respectivo efeito nos atos posteriores relacionados à aquisição imobiliária.
Se houver o deferimento do desconto por ocasião do registro, o cartório fica obrigado a conceder o desconto por ocasião dos atos posteriores relacionados à aquisição imobiliária, uma vez que o direito ao desconto já foi deferido ao consumidor. A título exemplificativo, tem-se como atos posteriores a averbação da construção, se o contrato for para financiamento da construção, a averbação do cancelamento da garantia (hipoteca ou alienação fiduciária), averbação de eventual aditivo contratual, e as respectivas certidões expedida em razão de tais atos etc.
Seguindo essa ordem de ideias, o item 112.1, Cap. XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça paulista prescreve aos registradores imobiliários o arquivamento de declaração escrita do adquirente, esclarecendo tratar-se, ou não, da primeira aquisição habitacional financiada, quando tal menção não constar expressamente do contrato apresentado, in verbis:
“ 112. Para o registro de imóveis adquiridos, para fins residenciais, com financiamento do Sistema Financeiro da Habitação, deverá ser exigida, caso a circunstância não conste expressamente do próprio título, declaração escrita do adquirente, a qual permanecerá arquivada em cartório, esclarecendo tratar se, ou não, de primeira aquisição, a fim de possibilitar o exato cumprimento do disposto no artigo 290, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e seu posterior controle. A exatidão da declaração poderá ser confirmada pelo oficial por buscas no sistema de Ofício Eletrônico.” (grifo aposto)
Por sua vez, a Corregedoria Geral de Justiça do Paraná, pelo Oficio-Circular nº 140/20132, nos autos nº 2012.0000648-8/01, assentou :
“I - que os agentes delegados do Foro Extrajudicial do Estado do Paraná observem o desconto de 50% (cinquenta por cento) nos emolumentos devidos quando da aquisição do primeiro imóvel, financiado pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH), nos termos do art. 290 da Lei 6.015/73, independente da existência de solicitação por parte do adquirente;”(grifo aposto)
Por outro norte, o STJ, revendo o entendimento anterior acerca do tema, firmou posição no sentido de que “o Código de Defesa do consumidor aplica-se à atividade notarial” (STJ, REsp 1.163.652, Rel. Min. Herman Benjamin, 2a T, DJ 01/07/10). Assim, pela similitude de natureza jurídica, há de se aplicar também aos Cartórios de Registro de Imóveis o Código de Defesa do Consumidor, fixando-lhe a obrigação de informar, na condição de fornecedor de serviço, todos os requisitos para a concessão do desconto do artigo 290 da Lei Federal nº 6.015/73, bem como os efeitos para os atos posteriores relacionados com a aquisição imobiliária.
Em caso de omissão dolosa ou culposa que induza a erro o consumidor, o titular do cartório de registro de imóveis deverá devolver o numerário cobrado de forma excessiva ou indevida, na forma do art. 42, parágrafo único, do Código do Consumidor, por haver falha na prestação do serviço registral.
6 - O consumidor faz jus ao desconto do art. 290 da Lei nº 6.015/73, se a aquisição da primeira moradia, embora financiada pelo Sistema Financeiro de Habitação, seja contratada com garantia em alienação fiduciária.
A alienação fiduciária é um contrato de garantia, tal como é a hipoteca, anticrese, o penhor, a caução, podendo ser empregado nos contratos em geral, por não ser privativa3 das entidades que operam no Sistema Financeiro Imobiliário - SFI, conforme deflui cristalinamente da leitura do § 1º do art. 22 da Lei nº 9.514/97, nos seguintes termos:
“§ 1º A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena:”
Nesse norte, Chalhub4 leciona que:
“A alienação fiduciária portanto, não é exclusividade do SFI, e seu campo de aplicação veio a ser ampliado ainda mais pela Lei 10.931/2004, que permite seu emprego para garantia das obrigações em geral, abrangendo, obviamente, também os contratos de aquisição da primeira moradia a que se refere o art. 290 da LRP.
[…]
Efetivamente, a alienação fiduciária é tão somente um contrato de garantia, tal como o é a hipoteca, a anticrese, o penhor, a caução de direitos aquisitivos, entre outros contratos de garantia. O emprego de uma ou outra dessas garantias não descaracteriza um contrato do SFH e, portanto, não retira o direito de desconto assegurado por lei.”
Seguindo essa ordem de ideias, a Corregedoria Geral de Justiça Paulista, em contrato de compra e venda, com garantia em alienação fiduciária, celebrado no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação, em que foi indeferido o desconto por ocasião do registro, penalizou o titular do Cartório de Registro de Imóveis, com a restituição, em décuplo, ao consumidor, do montante cobrado indevidamente, in verbis:
“EMOLUMENTOS – Registro de Imóveis – Primeira aquisição imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da Habitação – Contrato, apresentado para qualificação, que permite vislumbrá-la – Cabimento de redução de 50%, exclusivamente sobre o financiamento, nos emolumentos para registro, tanto da compra e venda, quanto da alienação fiduciária em garantia – Não observância pelo Oficial – Cobrança indevida dos valores integrais – Violação da regra do art. 290 da Lei nº 6.015/73, combinado com a nota explicativa nº I.8.1 da Tabela II da Lei Estadual nº 11.331/02 – Restituição, em décuplo, do montante recebido – Imposição, também, de multa – Aplicação do artigo 32, I, com respectivos parágrafos, do último diploma legal referido – Recurso provido, para tanto.” (Processo CGJSP nº 71789/2009, Corregedor Des. Reis Kuntz, j. 3.11.2009) (grifo aposto)
7 - O artigo 290 da Lei nº 6.015/73, instituído pela União, na competência atinente à fixação de normas gerais em matéria de emolumentos, na forma do art. 236, § 2º, da Constituição, assegura tratamento centralizado e uniforme, em âmbito nacional, aos emolumentos relacionados à titulação da moradia perante os serviços públicos notariais e registrais, ficando suspensa a lei estadual que suprimir, condicionar ou alterar a forma de concessão de tal desconto em prejuízo do consumidor.
A União foi alçada pelo § 2º, do artigo 236, da Constituição, como representante da Nação, na competência atinente à fixação de normas gerais em matéria de emolumentos, para, ao dar tratamento centralizado para estabilizar legitimamente expectativas, vincular todos os entes federados, como ocorre no desconto do primeiro financiamento habitacional que materializa o direito fundamental à moradia.
Destarte, ostenta o artigo 236 da Constituição:
“Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
[...]
§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.”
Nesse norte, revela-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
"A observância de normas gerais em matéria tributária é imperativo de segurança jurídica, na medida em que é necessário assegurar tratamento centralizado a alguns temas para que seja possível estabilizar legitimamente expectativas. Neste contexto, "gerais" não significa “genéricas", mas sim "aptas a vincular todos os entes federados e os administrados”. (RE 433.352 AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 20-4- 2010, 2ª T, DJE de 28-5-2010)
"Protesto cambial: Mprov. 1638/1-98: limitação de emolumentos relativos a protestos de que devedora microempresa ou empresa de pequeno porte (art. 6º) e […..] 2. Afirmada em decisão recente (ADIn MC 1.800) a validade em princípio da isenção de emolumentos relativos a determinados registros por lei federal fundada no art. 236, § 2º, da Constituição, com mais razão parece legítima a norma legal da União que, em relação a determinados protestos, não isenta mais submete a um limite os respectivos emolumentos, mormente quando conseqüente benefício às microempresas têm respaldo […]" (ADI-MC 1790, Min. Sepúlveda Pertence) (grifo aposto)
"Atividade notarial. Natureza. Lei 9.534/1997. (...) A atividade desenvolvida pelos titulares das serventias de notas e registros, embora seja análoga à atividade empresarial, sujeita-se a um regime de direito público. Não ofende o princípio da proporcionalidade lei que isenta os "reconhecidamente pobres" do pagamento dos emolumentos devidos pela expedição de registro civil de nascimento e de óbito, bem como a primeira certidão respectiva." [ADI 1.800, rel. p/ o ac. min. Ricardo Lewandowski, j. 11-6-2007, P, DJ de 28-9-2007.] (grifo aposto)
Com efeito, o conflito é só aparente entre a competência para dispor acerca dos emolumentos, visto que a União apresenta competência especial para normas gerais e os entes estaduais competência residual.
Em tal contexto, normas “gerais” não significam “genéricas”, mas apresentam carga valorativa apta a vincular todos os entes federados estaduais, por ter natureza jurídica de lei nacional que visa dar tratamento uniforme ao tema emolumentar em âmbito nacional, suspendendo, pois, as leis estaduais que as contrariarem, conforme dicção do artigo 24 da Constituição:
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
[….]
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”
Com efeito, o Tribunal do Rio Grande do Sul, por exemplo, vem reconhecendo a constitucionalidade do desconto de 50% do art. 290 da Lei nº 6.015/73, afastando a aplicação da Lei Estadual nº 12.692/065 que limitou tal desconto aos imóveis residenciais com valor até R$ 3.589,70, in verbis:
'Embora exercidos de modo privado, os serviços notariais e registrais são delegados e norteados pelos princípios do Direito Público. O disposto no artigo 236, § 2º, da Constituição Federal, consubstancia repartição de competência legislativa concorrente, atribuindo à União a emissão de normas gerais e aos Estados e Distrito Federal a normatização supletiva, não estando presente no caso concreto a exceção de que trata o artigo 24, § 3º, da Carta Magna. Precedentes do STF. É constitucional a redução de que trata o artigo 290 da Lei nº 6.015/73, […]" (Embargos Infringentes Nº 70056059041, Primeiro Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Almir Porto da Rocha Filho, Julgado em 06/12/2013) (grifo aposto)
De igual sorte, a Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais reconheceu, nos autos do Processo nº 60.414/CAFIS/2013, a suspensão da Lei Estadual nº 20.379/126 que restringiu o alcance do art. 290 da Lei Federal nº 6.015/73, conforme aviso do seguinte teor:
“ [….] os Oficiais de Registro de Imóveis do Estado de Minas Gerais devem, preenchidos os requisitos, conceder o desconto previsto no art. 290 da Lei Federal nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, independentemente da restrição mencionada no § 1º do art. 15 da Lei Estadual 15.424, de 30 de dezembro de 2004, acrescentado pela Lei Estadual nº 20.379, de 13 de agosto de 2012, sob pena de restituição em dobro da quantia cobrada em excesso, nos termos do artigo 30, § 2º, da Lei de Emolumentos, sem prejuízo das medidas administrativas cabíveis.” ( Aviso nº 16/CGJ/2013, de 23.04.2013)7
Repise-se, pois, que o artigo 236, §2º, da Constituição8, não trata de normas “genéricas”, mas sim de normas que demandam tratamento centralizado, tal qual a uniformidade nacional na cobrança dos emolumentos para aquisição da casa própria (caráter social), suspendendo-se, assim, a eficácia da lei estadual que desvirtue o desconto previsto no art. 290 da Lei Federal nº 6.015/73, por imperativo de segurança jurídica.
8 - É devida a devolução do décuplo do valor cobrado em excesso do consumidor, quando houver dolo, má-fé ou erro grosseiro no indeferimento do desconto do artigo 290 da Lei nº 6.015/73, por parte do titular do Cartório de Registro de Imóveis.
Os cartórios são serviços públicos, delegados a particulares (oficiais de registro), por concurso, que são remunerados, por emolumentos, diretamente pelo consumidor em razão dos serviços prestados. Vale dizer, ao que importa ao presente estudo, se houver o indeferimento do desconto nos atos relacionados com o registro do primeiro financiamento habitacional, maior será o rendimento do cartório e, por consequência, a remuneração do oficial de registro.
Nesse passo, a questão ética subjacente no serviço público foi descortinada com propriedade pela Lei nº 12.813/2013 que definiu, no artigo 3º, conflito de interesses como “a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública”.
Por isso, a prudência recomenda ao oficial de registro não se deixar enganar pelas miragens que a avidez lhe oferece, pautando-se por parâmetros éticos e morais no exercício da função pública, alinhados em função do bem coletivo, para a coletividade.
Nessa toada, quando houver o indeferimento, ainda que parcial, do desconto previsto no artigo 290 da Lei nº 6.015/73, desrespeitando as interpretações judiciais ventiladas nos itens 1 a 7, deve o consumidor protocolar reclamação no Fórum da Comarca (Vara do Juiz Corregedor do Cartório de Registro de Imóveis), buscando à devolução do valor cobrado em excesso, na forma do art. 42, parágrafo único, do Código do Consumidor9, que se aplica à atividade registral, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ, REsp 1.163.652, Rel. Min. Herman Benjamin, 2a T, DJ 01/07/10).
Tal procedimento pode ser adotado em qualquer Comarca do Brasil e, via de regra, não depende de advogado (embora aconselhável) e não vence custas ou emolumentos. Vale gizar que há tribunais de vanguarda, como o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que aceitam até por e-mail a reclamação, desde que instruído com os documentos pertinentes (título registrado/averbado, certidão da matrícula e o recibo dos emolumentos digitalizados).
Em regramento legislativo específico, o Estado de São Paulo, por meio do § 3º, do artigo 32, da Lei Estadual nº 11.331/02, prescreve que o titular do Cartório de Registro de Imóveis, quando cobrar valores indevidos ou excessivos, deverá restituir ao consumidor dez vezes (10x) a quantia cobrada irregularmente, in verbis:
“Artigo 32 - Sem prejuízo da responsabilidade disciplinar, os notários, os registradores e seus prepostos estão sujeitos à pena de multa de, no mínimo, 100 (cem) e, no máximo, 500 (quinhentas) UFESP’s, ou outro índice que a substituir, nas hipóteses de:
I - recebimento de valores não previstos ou maiores que os previstos nas tabelas, nos casos em que não caiba a aplicação do inciso I do artigo 34 desta lei;
II - descumprimento das demais disposições desta lei.
§ 1º - As multas serão impostas pelo Juiz Corregedor Permanente, de ofício ou mediante requerimento do interessado, em procedimento administrativo, garantida a ampla defesa.
§ 2º - Caberá ao Juiz Corregedor Permanente, na imposição da multa, fazer a gradação, levando em conta a gravidade da infração e o prejuízo causado.
§ 3º - Na hipótese de recebimento de importâncias indevidas ou excessivas, além da pena de multa, o infrator fica obrigado a restituir ao interessado o décuplo da quantia irregularmente cobrada.” (grifo aposto)
A e. Corregedoria Geral de Justiça de SP compreende que a devolução em décuplo10 se faz pertinente quando a cobrança indevida se dá por dolo, má-fe ou erro grosseiro na aplicação da lei, não sendo a responsabilização objetiva.
Essa compreensão é reiterada em copiosas decisões, a exemplo do extrato do parecer do Dr. Jomar Juarez Amorim, MM Juiz Assessor da Corregedoria, no processo n. 2010/34918, conforme segue:
"Como já se decidiu no âmbito da Corregedoria Geral da Justiça, a restituição em décuplo tem cabida somente quando a cobrança de importância indevida ou excessiva advém de erro grosseiro, dolo ou má-fé. Nesse sentido decisão exarado em 1º de março de 2004 pelo cuido Corregedor Geral da Justiça, Desembargador José Mário António Cardinale no processo n. 80/04, em que aprovado parecer elaborado pelo MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria José Marcelo Tossi Silva, com a seguinte ementa: 'Emolumentos - Oficial de Registro de Imóveis - Cobrança em excesso - Ausência de dolo. ou má-fé - Devolução em décuplo indevida - Recurso não provido”. (Proc. CGJSP 2010/34918, j. 19.04.2010, DJ 13.05.2010).
Com efeito, o indeferimento ou desvirtuamento do desconto do artigo 290 da Lei nº 6.015/73, quando afastar as interpretações vertidas nos itens 1 a 6, por derivarem de precedentes específicos da própria Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo11, respalda a devolução do valor integral cobrado em excesso, multiplicado por 10 vezes, ao mutuário, como sanção pecuniária civil em prol do consumidor.
Vale dizer, a inobservância dos direitos estudados nos itens 1 a 6 pelos Cartórios de Registro de Imóveis paulistas ensejam a devolução do décuplo da importância cobrada indevida ou em excesso do consumidor, por estarem alicerçadas em decisões administrativas, que têm carga normativa em âmbito estadual, como bem observou o Dr. Gustavo Henrique Bretas Marzagão, Juiz Auxiliar da Corregedoria de Justiça do Estado de São Paulo, na decisão proferida nos embargos de declaração do processo nº 2015/8492:
“todas as decisões proferidas pela Corregedoria Permanente, pela Corregedoria Geral da Justiça e pelo Conselho Superior da Magistratura têm aplicação imediata e carregam em si conteúdo normativo, isto é, compelem os notários e registradores a aplicar aquela solução aos casos análogos, a fim de que o serviço notarial e registral prestado seja harmônico, evitando-se contradições”( Processo CGJSP nº 2015/8492, j. 04.05.2015, DJE 26.05.2015)
Como visto, o Direito, como produto cultural, está exposto a constante processo evolutivo, porquanto objetiva a consolidação de valores cuja consciência a sociedade incorpora ao longo do tempo. Por isso, incumbe ao consumidor a conquista efetiva de seu direito, quando não aplicadas as interpretações contemporâneas acerca do art. 290 da Lei nº 6.015/73, esposadas nos direitos contemplados nos itens 1 a 7, por meio de reclamação junto ao Juízo Corregedor do Cartório ou à própria Corregedoria Estadual, para ver restituído o valor cobrado indevidamente.