INTRODUÇÃO
O surgimento de novo diploma normativo em um sistema como o direito - que é em grande medida codificado - possibilita a rediscussão de asusntos de maneira ampla e profunda para, se for o caso, operar-se uma mudança de paradigma, com a supressão, instituição ou incremento de institutos jurídicos.
Quando tais mudanças se verificam em institutos fundamentais, mais importante se torna a revisitação desses institutos e reflexão antes de que sejam operadas as alterações. Contudo – e mormente em um sistema de civil law fortemente permeado pela common law –, mesmo após a alteração do sistema positivo, mister se impõe perquirir se os objetivos vislumbrados pelos redatores do anteprojeto se traduziram em resultados após a promulgação do texto de lei.
Nesse particular, a Lei n. 13.105/2015 – novo Código de Processo Civil – suprimiu a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação, mantendo as outras duas (legitimidade de parte e interesse de agir), divorciando-se da tradicional tripartição das condições da ação (legitimidade de parte, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido).
Verificada a relevante alteração de um dos institutos fundamentais do direito processual civil – ação – impõe-se perquirir se andou bem o legislador ao modificar o sistema em uma de suas bases. A presente reflexão se presta a fomentar a discussão a respeito dessa opção do legislador, bem como indagar se o que foi preliminarmente proposto pelos redatores do anteprojeto resultou em texto promulgado.
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE AÇÃO E SUAS CONDIÇÕES
O exercício do direito de ação não é vinculado à procedência da pretensão deduzida em juízo, eis que há autonomia entre o direito material e o direito de ação. Contudo, não se pode dizer que haja absoluta abstração entre um e outro.
Para que exista – e possa ser bem desenvolvido – o direito de ação, mister se impõe sejam colhidos elementos de pertinência do direito material – ainda que em tese existente – hábeis ao reconhecimento do direito de ação e à consequente inauguração e respectivo desenvolvimento da relação jurídica (o processo) estabelecida entre sujeitos de direito (as partes e o Estado), com o fim de recompor a ordem jurídica em tese quebrada pela conduta do demandado.
Esses elementos de pertinência são as condições da ação, que se verificam a partir da relação de direito material entre dois ou mais sujeitos de direito e refletem a existência de um direito de ação entre eles que, por sua vez, viabiliza o estabelecimento da relação processual (que não prescinde de seus próprios pressupostos), por meio da qual estará o Estado apto a proferir tutela jurisdicional de mérito.
É certo que a verificação, em momento já avançado da relação processual, de ausência de qualquer das condições da ação não infirma a existência de ação até aquele momento e permite – por isso mesmo – a extinção do processo sem resolução de mérito por ausência, a partir daquele momento, da ação. Nesse sentido são as lições do professor Cassio Scarpinella Bueno[i], para quem a ação “é exercitável, é exigível, ao longo de todo o processo”.
No mesmo sentido, mas sob perspectiva inversa, haverá casos em que, no início, o autor carecia da ação, o que não foi percebido pelo magistrado, mas, ao depois, fatos fizeram emergir a completude daquela condição faltante, fazendo convalescer o vício e, nessa medida, aproveitando a relação processual, como também aponta Scarpinella Bueno:
“se, por qualquer razão, o exame da petição inicial em busca da regularidade da constituição do processo e da concorrência das condições da ação não foi bem realizada e, por isto, deferida mas, não obstante, o autor não reunia as condições da ação (por exemplo, a dívida reclamada em juízo não havia, ainda, vencido), o novo fato consistente no vencimento da dívida ao longo do processo faz com que o óbice anterior acabe sendo sistematicamente afastado. A falta de ‘interesse de agir’ fica, por assim dizer, convalidado pela sucessão dos eventos ocorridos no plano do direito material”[ii]
Dessa maneira, bem vistas as coisas, as condições da ação condicionam a existência da ação, necessária para o desencadeamento e durante todo o prosseguimento da relação processual, bem como ao provimento jurisdicional de mérito, ao lado dos pressupostos processuais.
De há muito essas condições permeiam o sistema processual, nem sempre tratadas de maneira sistemática e sistematizada, mas sempre presentes.
2 AS CONDIÇÕES DA AÇÃO NO SISTEMA ANTERIOR AO CPC DE 2015
O CPC de 1939 previa, no art. 2º, a necessidade de “legítimo interesse, econômico ou moral” para a propositura da ação. Pontes de Miranda[iii], lembrando que o dispositivo também se encontrava no art. 76 do CC de 1916, tece críticas, afirmando que o diploma de 39 incorreu em bis in idem e demonstrava “assim no legislador do direito civil quando no legislador do direito processual, bem superficial conhecimento do problema da técnica legislativa”.
De sua lição colhe-se – com o que concordamos – que, à época, havia cinzenta confusão entre o interesse jurídico tutelado (direito material) e o interesse de agir (essencial da seara processual). “A tautologia ressalta”[iv], nas palavras do saudoso jurista. E tem total razão. Interesse jurídico tutelado pertence à seara do direito material v.g. código civil. O que o CC de 16 determinava – e que foi, inadvertidamente, copiado pelo legislador processual – é que para propor uma ação havia necessidade de um interesse juridicamente tutelado. Isso é absolutamente diferente do interesse de agir, condição necessária à existência de ação. Tão clara a confusão que o legislador civil de 2002 simplesmente extirpou o dispositivo do sistema
Nesse sentido, não se pode afirmar que o dispositivo presente no CPC de 1939, exigindo legítimo interesse, significava o início da teoria das condições da ação no sistema cientifico processual.
A confusão foi desfeita por ocasião do CPC de 1973, na medida em que a redação, mais clara, do art. 3º, exigia interesse e legitimidade em artigo disposto no capítulo nominado ação.
Mais à frente, no art. 267, VI, o texto se declarava absolutamente permeado pela teoria das condições da ação, em sua abordagem tripartite, na medida em que determinava a extinção do processo sem resolução de mérito quando ausentes possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e interesse processual, todos nominados como espécie de um gênero chamado condições da ação.
Tal teoria, concebida por Enrico Tulio Liebman, condicionava a existência de ação à presença de legitimidade entre as partes, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido.
Em sua obra Manuale de Diritto Processuale Civile[v], notadamente na edição de 1955, constam as três espécies do gênero condições da ação. Liebman foi claro: “Le condizioni dell’azione, poco fa menzionate, sono l’interesse ad agire, la legittimazione e la possibilità giuridica”. Nesta obra, Liebman[vi] ressalta o caráter abstrato da possibilidade jurídica do pedido, ensinando que trata-se da admissibilidade, em abstrato, do provimento jurisdicional demandado, de maneira que a aferição deve se dar entre o que a autoridade jurisdicional pode, ou não, conceder à luz do ordenamento jurídico posto.
Como principal exemplo de sua argumentação, Liebman[vii], cita a impossibilidade de uma pessoa pedir o divórcio de seu cônjuge, o que, à época, era vedado pelo ordenamento, de maneira que tal pretensão deveria ser rechaçada antes da resposta de mérito, na medida em que desautorizado à autoridade jurisdicional o ingresso na análise da pretensão.
Décadas depois, na edição de 1973[viii] da mesma obra, eis as palavras de Liebman: “Le condizioni dell’azione, poco fa menzionate, sono l’interesse ad agire, la legittimazione.”.
Claramente o autor deixa de mencionar a possibilidade jurídica do pedido como uma das condições da ação. Isso decorre, como nos relata Cândido Dinamarco[ix], pela admissão, pelo ordenamento jurídico italiano, do pedido de divórcio, principal exemplo de impossibilidade jurídica do pedido, restando os outros exemplos de impossibilidade jurídica do pedido reorganizados pelo mestre italiano, para passarem a integrar o interesse de agir. Nas palavras de Dinamarco:
“Sucede que, tendo entrado em vigor na Itália, no ano de 1970, a lei que instituiu o divórcio (lei n. 898, de 1.12.1970), na terceira edição de seu Manuale o autor sentiu-se desencorajado de continuar a incluir a possibilidade jurídica entre as condições da ação”[x]
Ocorre que, ao mesmo tempo em que a possibilidade jurídica do pedido deixava de ser mencionada por Liebman, era incorporada por nosso ordenamento positivo, eis que em 1973 era promulgado o CPC que iria substituir o de 1939. O novel diploma, profundamente permeado pelas ideias de Liebman, elegia, como condições da ação, a legitimidade de partes, o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido, nos termos expressos dos artigos 3º, 267, VI. Este último determinava a providência a ser tomada caso ausente qualquer das condições da ação: extinção do processo sem resolução de mérito.
Humberto Theodoro Júnior[xi], com apoio em Enrico Allorio[xii], salienta, em obra editada sob a vigência do CPC de 73, que é equivocada a visão da possibilidade jurídica do pedido como algo diverso da análise de mérito. Para ele, “o cotejo do pedido com o direito material só pode levar a uma solução de mérito, ou seja, à improcedência.”.[xiii]
Em que pesem as críticas e divergências doutrinárias, o CPC de 73 vigorou até sua revogação pelo CPC de 2015, com o que se teve, durante todas essas décadas, a tripartição das condições da ação no ordenamento positivo.
3 AS CONDIÇÕES DA AÇÃO NO CPC DE 2015
Promulgado em 16 de março de 2015, a Lei n. 13.105, entrou em vigor um ano após sua publicação reduzindo a duas as condições da ação. O art. 17 (correspondente ao art. 3º do CPC de 73) exige interesse e legitimidade para a postulação em juízo. Por sua vez, o art. 485, VI (correspondente ao art. 267, VI do CPC de 73) determina a extinção do processo sem resolução de mérito em sendo verificada a ausência de legitimidade ou interesse processual.
Acolhendo a alteração do texto de Liebman, o direito positivo deixou de prever a possibilidade jurídica do pedido como algo a ser aferido pelo magistrado antes do ingresso na análise do mérito da ação. Colhe-se, da exposição de motivos do anteprojeto de CPC:
“Com o objetivo de se dar maior rendimento a cada processo, individualmente considerado, e, atendendo a críticas tradicionais da doutrina, deixou, a possibilidade jurídica do pedido, de ser condição da acao. A sentenca que, à luz da lei revogada seria de carência da ação, à luz do Novo CPC é de improcedência e resolve definitivamente a controvérsia”[xiv]
Na linha do já sustentado sob a vigência do CPC de 73[xv], Humberto Theodoro Júnior, em atualização de sua obra, elogia a opção do legislador: “Por fim, é importante destacar o acerto da posição adotada pelo novo Código ao excluir a possibilidade jurídica do pedido do rol das condições da ação”.[xvi]
Os argumentos seguem a linha de pensamento já exposta nas edições anteriores, publicadas sob a égide do CPC de 73, declarando sua opção pela possibilidade jurídica do pedido como questão a ser decidida em sede de mérito e não como algo antecedente à sua análise.
Cassio Scarpinella Bueno critica a opção do legislador de suprimir a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação. Para o Professor da PUC-SP a supressão “é típico exemplo de involução, porque o CPC de 2015 não soube (na verdade, não quis) aproveitar a evolução que a maior parte da doutrina brasileira alcançou acerca daquela categoria”[xvii].
Respeitadas as posições em sentido contrário, estamos com Cassio Scarpinella Bueno. A admissão, pelo ordenamento jurídico italiano, do pedido de divórcio, não tem o condão de desfazer toda a teoria construída no sentido da necessidade de o magistrado analisar, à luz do ordenamento jurídico, se a pretensão pode ser jurisdicionalmente deduzida.
Antes de dizer se o pedido é procedente ou improcedente, cabe ao magistrado analisar a sua viabilidade jurídica. Inviável, juridicamente, está o magistrado impedido de ingressar na questão de fundo, por vedação legal.
Ademais, ainda para aqueles que fundam a supressão do CPC de 2015 na supressão por parte de Liebman – esta, decorrente do desaparecimento de seu exemplo para o caso – se mantem hígida a teoria para o sistema brasileiro.
É que o direito material acolhe um contrato que admite pagamento espontâneo – reconhecendo, assim, o direito material – mas proíbe que seja deduzida em juízo pretensão para sua cobrança. Trata-se do famoso exemplo de dívida de jogo, admitido pelo art. 814 do CC que, imediatamente, veda a cobrança.
Nesse sentido, inegável a necessidade de o magistrado analisar a viabilidade jurídica da pretensão como algo precedente ao ingresso em seu mérito.
4 A IMPROCEDÊNCIA LIMINAR
Por fim, ainda no sentido, de encontrar congruência no sistema, entendemos que parte do que era a possibilidade jurídica do pedido – em se admitindo que, agora, passou a ser questão de mérito – continua objeto de análise pelo magistrado logo no início da demanda.
O art. 332 do CPC trata das hipóteses em que o magistrado poderá julgar, liminarmente, improcedente o pedido. À exceção da pretensão prescrita, todos os demais casos são hipóteses de dissonância entre a pretensão e o posicionamento firmado pelos Tribunais.
Sob esse prisma, e adotando posicionamento de Eros Roberto Grau, já por nós destacado em outro estudo[xviii], temos que as hipóteses de dissonância entre a pretensão e o entendimento dos Tribunais a respeito da matéria configura impossibilidade jurídica do pedido.
A impossibilidade deve ser aferida a partir do ordenamento jurídico, das normas jurídicas, e não do texto da lei. As normas jurídicas emergem da interpretação do direito, notadamente da interpretação feita pelos Tribunais.
Nesse sentido, a pretensão que contrarie posicionamento adotado pelos Tribunais, a partir do texto legislativo, é pretensão juridicamente impossível e será, de pronto, rechaçada pelo magistrado, por meio de extinção do processo com julgamento de mérito, fazendo recair o manto da coisa julgada material sobre aquela pretensão.
CONCLUSÃO
A teoria das condições da ação não atingiu seu ápice com a edição do CPC de 2015. Ao contrário, data venia, deu um passo atrás. Isso sobreleva a necessidade de novos estudos sobre o tema, a fim de descortinar os meandros que a adoção, pelo novo CPC, dessa nova sistemática, trouxe para o debate jurídico.
É certo que se, de um lado, o famoso exemplo de Liebman da ação de divórcio deixou de existir, ante sua admissão pelo ordenamento jurídico italiano, de outro o famoso exemplo brasileiro da cobrança de dívida de jogo permanece no sistema e, com a supressão da possibilidade jurídica do pedido, fica sem instrumento para que o magistrado possa rechaçar, de pronto, tal pretensão.
Também temos que a improcedência liminar cobre, em parte, a análise da possibilidade jurídica da pretensão, eis que permite a análise liminar, pelo magistrado, da viabilidade jurídica da demanda, com o que ele está autorizado a resolver, desde logo, o mérito da pretensão que contraria normas jurídicas – para aqueles que, como nós, entendem que norma jurídica é o produto da interpretação.
Contudo, uma pretensão que contrarie frontalmente o texto de lei, como o caso da dívida de jogo, não se submete ao regime da improcedência liminar, com o que se terá que instaurar a relação processual para, após, estar o magistrado autorizado a reconhecer a ilegalidade da pretensão.