4. O interesse público na mantença das atividades empresariais
Em relação à imputação da responsabilidade penal e o interesse público, na maioria das vezes em que uma empresa comete um crime ambiental, a justificativa é a redução de custos na produção e, via de conseqüência, a possibilidade de obter maiores lucros. Assim, a pena de multa, tão criticada por sua suposta ineficácia, no caso da pessoa jurídica pode ser uma das sanções mais eficazes, visto que muitos delitos ambientais são cometidos pelos entes coletivos com o intuito de reduzir custos. Os danos ao meio ambiente podem decorrer de ações empresariais mais "econômicas", como o despejo de resíduos tóxicos sem qualquer tratamento, a utilização de agrotóxicos não permitidos, entre tantas outras atividades lesivas ao meio ambiente e, via de conseqüência, à saúde humana. Se um crime é cometido por ambições financeiras, uma pena que envolva prestação pecuniária pode mostrar-se eficaz. O caráter da multa penal (e não administrativa) traz vantagens processuais à defesa e, ademais, sua aplicação deixa marcas negativas e indesejáveis à pessoa jurídica, marcas estas que podem obstar a celebração de futuros contratos. Nesse sentido, a tutela penal do meio ambiente visa a não reincidência na prática de crimes ambientais. Conforme já foi exposto, existe aí um paradoxo: de um lado, a busca pelo poder aquisitivo por meio da redução de custos e, de outro, a destruição do meio ambiente, lesando o direito constitucional que a coletividade tem sobre ele (bem de uso comum do povo).
Atualmente se percebe que o Estado busca proteger as empresas em razão do interesse público. Veja-se, por exemplo, quantas tentativas são feitas para salvar-se uma empresa da falência: a possibilidade de liquidar suas dívidas pagando apenas um percentual do montante devido aos credores quirografários, quando a empresa obtém o benefício da concordata, é um exemplo. As preocupações com a mantença das empresas em plena atividade estão relacionadas aos interesses econômico e social. No entanto, não pode o Direito privar-se de responsabilizar os maiores poluidores, colocando o interesse econômico-social na frente dos direitos fundamentais de toda a coletividade, constitucionalmente assegurados.
Sobre a infração da disposição constitucional segundo a qual a pena não pode passar da pessoa do condenado [36], ressalta-se que existe um conflito de interesses entre trabalhadores de uma empresa e os que impõem a ela uma sanção penal. Uma pessoa jurídica sempre desempenha papel primordial no que tange à economia da comunidade na qual se encontra inserida. Sua influência, em termos econômicos, atinge diretamente seus empregados, fornecedores e consumidores diretos e, indiretamente, todos os demais componentes da teia de relações comerciais formada ao seu redor. Este efeito é inevitável, mas não se trata de violação ao princípio da intranscendência da pena, uma vez que se a pessoa jurídica é sujeito ativo do crime, será ela o sujeito passivo da sanção. [37] Conforme o já exposto posicionamento de Galvão da Rocha, os reflexos da sanção aplicável à pessoa jurídica em relação aos que dela dependem são tão naturais quanto os reflexos da pena aplicada à pessoa natural, incidentes sobre seus familiares e amigos.
Os empregados da empresa, normalmente, são os que mais temem pela estabilidade financeira da pessoa jurídica, pois é dela que depende seu sustento. A massa de trabalhadores de uma fábrica de móveis ou de celulose, por exemplo, tende a inconformar-se com quaisquer medidas que possam vir a desestruturar a empresa, posto que tal desestabilização incide de forma negativa primeiramente neles, na sua fonte de renda. Estabelecido fica, pois, complicado conflito de interesses: o interesse social – que não deixa de ser o interesse destes empregados – de desfrutar de um ambiente saudável, e o interesse privado daqueles que da pessoa jurídica tiram os recursos necessários à sobrevivência.
O interesse coletivo se sobrepõe ao particular; portanto os interesses dos empregados de uma empresa poluidora jamais lhe obstarão a aplicação de sanções penais. Mister se faz que sejam observados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, presentes inclusive na justificativa da sobreposição do interesse público ao particular, e, também, no que diz com a aplicação da pena, pois incoerente seria, por exemplo, desativar empresa por tempo superior ao necessário para que esta se adapte às normas ambientais.
No caso de ser aplicada uma sanção muito onerosa à pessoa jurídica, ainda que seja esta pena proporcional ao delito, mas cujos efeitos possam implicar a quebra da empresa, os empregados sempre contarão com o princípio da proteção ao hipossuficiente, presente no sistema jurídico brasileiro, neste caso, no art. 449 da Consolidação das Leis do Trabalho bem como no art. 102 da Lei 7661/45 (Lei de Falências), segundo o qual, em caso de falência, terão preferência em receber o seu crédito os credores trabalhistas.
A devida prestação de remuneração, bem como a mantença dos postos de trabalho não é, ou não deveria ser, a maior preocupação dos empregados de uma empresa poluidora. A legislação trabalhista preocupa-se com a saúde e a segurança dos empregados (CLT arts. 154-223). Uma empresa que chegue a ser condenada por crime ambiental provavelmente também causou danos à saúde dos seus próprios empregados em razão dos descuidos com o meio ambiente. Normalmente se observa, no perfil das empresas poluidoras, a existência de empregados que desempenhem atividades insalubres. Tais atividades são definidas pelo art. 189 da CLT: "por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos". A própria CLT, no art. 201, prevê penalidades às infrações a seus dispositivos referentes a medicina e segurança do trabalho. A preocupação da CLT é com a pessoa do empregado quando exposta a um ambiente prejudicial à saúde, ao passo que, a preocupação da LCA se estende a todo o dano ambiental provocado pela empresa, dano este que fatalmente atingirá a toda a coletividade. Assim, percebe-se que todo o sistema jurídico está impregnado de dispositivos que vedam a prática de atos lesivos ao meio ambiente. O interesse em manter-se a qualidade de vida, portanto, sempre prevalece no Direito, inclusive por ser o próprio direito à vida um bem jurídico cuidadosamente tutelado por todo o ordenamento.
Assim sendo, não procede o argumento de que uma empresa poluidora deva ficar resguardada de sanções penais, com respaldo no fato de que é a fonte de renda de milhões de empregados que ocupam os postos de trabalho por ela oferecidos, por duas razões: para os empregados que ficarem incapazes de trabalhar em função dos danos sofridos decorrentes da atividade laboral que praticavam, os postos de emprego oferecidos pela empresa poluidora, ou por outra qualquer, não serão úteis. Além disso, no momento em que faltar água, ar ou saúde para a comunidade que compunha a teia econômica, que antes cercava a empresa poluidora, os interesses comerciais serão outros, provavelmente um litro de água potável, um nebulizador ou, ainda, a prestação de um bom plano de saúde e medicamentos.
5. As pessoas jurídicas de Direito Público e a responsabilidade penal
Em relação à pessoa jurídica de direito privado, a responsabilidade penal só recai sobre ela se observados os requisitos impostos pelo art. 3º da LCA, ou seja, quando a conduta da pessoa natural visar a satisfação interesses da sociedade e a infração tiver sido impulsionada por quem tenha legitimidade para tanto. As pessoas jurídicas de direito público, portanto, nunca serão responsabilizadas por crimes ambientais, pois o Estado não tem o objetivo de se satisfazer com danos causados ao meio ambiente.
Diversos questionamentos são lançados por René Ariel Dotti [38], que classifica as pessoas jurídicas e deixa no ar a dúvida se a regra de responsabilizar penalmente a pessoa jurídica recai tanto sobre pessoas jurídicas de direito privado quanto pessoas jurídicas de direito público. Ele explica que as pessoas jurídicas de direito público interno são a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias e as fundações de direito público. Em resposta aos questionamentos de Dotti, Paulo Affonso Leme Machado [39] explica que as leis que instituíram e disciplinaram a responsabilidade penal da pessoa jurídica não colocaram qualquer obstáculo para responsabilizar-se criminalmente as pessoas jurídicas de direito público, não há diferenciação dessa natureza na lei. Assim, admite ele que sejam penalmente responsabilizadas as pessoas jurídicas de direito público, da mesma forma que ocorre com as de direito privado. Aduz que tal possibilidade não enfraquece as pessoas jurídicas de direito público, mas, pelo contrário, serve para auxilia-las no cumprimento de suas finalidades. [40] Também no sentido de que é cabível a responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público está Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira. [41]
Em sentido oposto ao de Machado, Milaré [42] cita Guilherme José Purvin de Figueredo e Solange Teles da Silva, explicando que cometer um crime não poderia beneficiar as pessoas jurídicas de direito público e que as penas que lhes seriam impostas viriam a prejudicar a comunidade beneficiária do serviço público prestado. No mesmo sentido entendem Gilberto Passos de Freitas, Vladmir Passos de Freitas e Fernando Galvão da Rocha.
Um requisito, portanto, para que seja criminalmente responsabilizada a pessoa jurídica é que seja ela de direito privado, posto que as pessoas jurídicas de direito público "não podem cometer ilícito penal no seu interesse ou benefício". [43] Este é o entendimento de Vladmir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas. Segundo eles, pessoas jurídicas de direito público só perseguem fins inerentes ao interesse público e, quando isso não ocorre, o que se verifica é que somente o administrador, pessoa natural, pode ser criminalmente responsabilizado, uma vez que agiu desviando o poder que lhe foi atribuído.
Para Fernando Rocha [44] só podem ser responsabilizadas criminalmente as pessoas jurídicas descritas no art. 44 do Novo Código Civil. Além de apontar as mesmas razões referidas por Milaré, acrescenta que quem possui o monopólio do direito de punir é o Estado e que, portanto, não seria adequado que ele fosse responsável por punir-se. Contudo, embora exclua da responsabilidade penal as autarquias, consideradas uma forma de descentralização administrativa, entende que as entidades paraestatais (empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações instituídas pelo poder público), por não se confundirem com o Estado, estão sujeitas à responsabilidade penal. Para Flávia Oliveira, no entanto, as únicas penas previstas para as pessoas jurídicas que não caberiam ao Estado seriam a multa e a PSC. [45] Dario José Kist e Maurício Fernandes da Silva [46] aduzem que, como o Estado é o único detentor do jus puniendi, não pode ser responsabilizado porque cometer crimes e aplicar a própria punição são atos incompatíveis. Ademais, segundo eles, a aplicação da pena de multa, por exemplo, não teria caráter penal, mas de remanejamento de créditos orçamentários. Já a pena de interdição temporária seria uma punição, na verdade, para os usuários do serviço público; tratar-se-ia de afronta ao princípio da continuidade do serviço público. Ainda, a proibição de contratar com o Poder Público seria inviável.
Cabe ressaltar que a pessoa jurídica mantida, ainda que parcialmente, por verbas públicas, ou beneficiada por incentivos fiscais, que incide em crime ambiental, será punida com maior rigor. A LCA dispõe de um dispositivo agravante, no art. 15, p. Tal dispositivo, por si só, demonstra que não é interesse do legislador responsabilizar criminalmente as pessoas jurídicas de direito público, visto que estas não podem ter interesses que sejam atendidos em detrimento do equilíbrio ecológico. Neste dispositivo o que se vê é que, mesmo a empresa privada, que dispõe de recursos públicos, deve ter seu posicionamento coerente com o interesse público. Gilberto Passos de Freitas e Vladmir Passos de Freitas justificam tal agravante dizendo que, preservar o meio ambiente, de acordo com o art. 225 da CF, é um dever de todos e "aquele que o degrada, agindo no interesse da pessoa jurídica mantida ou beneficiada por verbas públicas, deve ser punido com maior severidade." [47]
A solução no caso desvio de poder por parte do administrador de uma pessoa jurídica de direito privado é trazida por Milaré [48]: segundo ele, ao constatar-se crime ambiental, responsabilizar-se-ão apenas as pessoas naturais e buscar-se-á, simultaneamente, a reparação do dano, pela pessoa jurídica, na esfera cível, com base no art. 37, § 6º da CF. Assim, verifica-se que somente as pessoas jurídicas de direito privado podem ser responsabilizadas por crimes ambientais.
6. Conclusão
Contrariando o princípio "societas delinquere non potest", a lei brasileira (Constituição Federal/88, art. 225 § 3º e Lei dos Crimes Ambientais) acolhe a responsabilidade penal da pessoa jurídica, visando, com isso, reprimir a macrocriminalidade. Tal repressão advém da urgência da tutela requerida pelo meio ambiente, bem de uso comum do povo cuja preservação está intrinsecamente ligada ao direito à vida. Não cabe aos juristas a imposição de obstáculos à aplicação da LCA uma vez que foi ela criada por quem tem legitimidade para tanto, o legislador, e encontra-se em profunda sintonia com a Constituição Federal. Assim sendo, é possível responsabilizar pessoas jurídicas por crimes ambientais.
O processo penal viabiliza ao réu todas as possibilidades de defesa, o que é primordial quando a pessoa jurídica é ré, já que há requisitos rigorosos para sua responsabilização. Mister se faz que haja exigibilidade de conduta diversa e capacidade de atribuição, bem como que o fato delituoso decorra de ordem dada por quem tenha legitimidade para tanto. A capacidade de atribuição está para a pessoa jurídica como a culpabilidade está para a pessoa natural, sendo verificada através da conjugação de interesse institucional e proveito econômico, efetivo ou potencial.
Há penas específicas para a pessoa jurídica, previstas e explicadas na LCA, em capítulo especial, não atreladas aos tipos penais previstos na referida lei. São elas: multa, suspensão parcial ou total das atividades, interdição temporária, proibição de contratar com o Poder Público, prestação de serviços à comunidade e liquidação forçada.
Conclui-se que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é perfeitamente cabível e aplicável às pessoas jurídicas de direito privado. Mais do que isso, é constitucional: é tão necessária que encontra respaldo na Constituição Federal, o que, por si só, já é razão para ser devidamente aplicada. Se Direito é fato, valor e norma, conforme ensina Miguel Reale, a responsabilização da pessoa jurídica é legítima de pleno Direito, pois a degradação e necessidade de proteção do meio ambiente, amplamente lesado por entes coletivos, é um fato. A vida, dependente do equilíbrio ambiental, é o valor mais precioso a ser tutelado e a norma está explícita na Constituição Federal e nas leis esparsas que regulam seus dispositivos, como a própria LCA.