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Art. 15 do NCPC: a integração do processo do trabalho na perspectiva da teoria das lacunas do sistema jurídico

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22/03/2017 às 14:38
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2. OS DESAFIOS DA SISTEMATIZAÇÃO

É preciso destacar, em primeiro lugar, que o rol de parâmetros retrocitados encontra-se longe de abarcar as nuances que informam os posicionamentos dos processualistas.

Cuida-se, na verdade, de mera tentativa de simplificação do tema, feita com intuito didático e que tende a evoluir a reboque do próprio desenvolvimento da doutrina, ainda em construção.

Em segundo plano, ressalte-se que os critérios não são empregados de maneira estanque pelos juristas, sendo corriqueira a conjugação de parâmetros distintos e a adoção de posições fluidas, que não se enquadram perfeitamente em nenhuma das categorias apontadas.

Assim é que muitos defensores da adoção do critério da natureza da lacuna sistêmica a associam ao critério da amplitude da integração, considerando que a lacuna secundária (ontológica ou axiológica) seria uma espécie de lacuna parcial[15].

A concomitância de parâmetros também está presente, por exemplo, no texto de Salvador Franco de Lima Laurino, que faz a defesa do critério da imperatividade da integração ao mesmo tempo em que adere à ideia de que a subsidiariedade se relaciona às lacunas completas, enquanto a supletividade incide sobre a lacuna parcial[16].

Além disso, muitos estudiosos do processo do trabalho, adotando a interpretação evolutiva do art. 769 da CLT, vinculam o parâmetro da espécie de lacuna sistêmica ao critério da continência, por considerar que o termo “subsidiariedade" já é empregado naquele dispositivo com sentido que engloba a colmatação de todas as espécies de lacunas do sistema jurídico.

Como se percebe, a adoção paralela de critérios diversos e a própria sutileza das distinções lançadas pelos juristas dificultam o enquadramento das posições doutrinárias em uma classificação simplificada.

A fluidez dos conceitos não é, por si só, um aspecto negativo. A riqueza do fenômeno das lacunas e a necessidade de solucioná-lo demanda grande esforço exegético do intérprete/aplicador da norma, de modo que a complexidade da construção teórica reflete a grandiosidade do desafio.

Por outro lado, a heterogeneidade milita em desfavor da segurança jurídica, tendo em vista que a indefinição quanto à amplitude da interpretação do art. 15 do NCPC repercute intensamente sobre os processos trabalhista, eleitoral e administrativo.

Faz-se pertinente, por isso, organizar os parâmetros interpretativos e estabelecer limites mais precisos ao alcance do dispositivo em apreço.

No presente trabalho, sustenta-se que o critério da natureza da lacuna do sistema jurídico traz a melhor solução para o problema, como se verá adiante.


3. A TEORIA DAS LACUNAS NA CONCEPÇÃO DE MARIA HELENA DINIZ

Após a análise panorâmica do debate realizada até o momento, pode-se afirmar que o escopo da inovação legislativa  foi subsidiar uma maior efetividade da heterointegração entre os sistemas processuais.

Por "heterointegração" entende-se o método de colmatação de lacunas de um sistema normativo dominante (no caso, o direito processual do trabalho) a partir da aplicação de normas de fonte distinta (o novo Código de Processo Civil)[17].

A compreensão deste novo cenário exige, preliminarmente, uma breve análise da teoria das lacunas, aqui realizada a partir da concepção exposta por Maria Helena Diniz.

Em sua influente obra "As Lacunas do Direito"[18], a jurista adota como premissas a definição de "ordenamento jurídico" de Norberto Bobbio, a noção de "sistema" explanada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior e a "tridimensionalidade jurídica" formulada por Miguel Reale, para inicialmente sustentar uma concepção dinâmica e complexa do ordenamento jurídico,  compatível com a ideia de incompletude.

Tal construção teórica reconhece o direito como uma realidade complexa, contendo não só a dimensão normativa, como também fática e axiológica. Nessa linha, o sistema do direito é entendido como resultado da composição entre subsistemas interdependentes (isomórficos), de modo que falhas na correlação entre os subconjuntos levam ao aparecimento de "vazios", situações não solucionadas expressamente pelo ordenamento, porque não previstas pelo legislador.

Ao defender o sistema jurídico como um sistema aberto e dinâmico, Maria Helena Diniz afasta o entendimento endossado, dentre outros, por Hans Kelsen, no sentido de que o sistema normativo seria um todo ordenado, fechado e completo, capaz de conferir determinação deôntica para toda e qualquer ação.

A autora posiciona-se, assim, pela superação do postulado da plenitude hermética do direito, para então afirmar que as lacunas não se tratam de mera ficção jurídica que atende a necessidades práticas, mas constituem um problema inerente ao próprio sistema jurídico.

Para Maria Helena Diniz, lacuna é a "quebra de isomorfia entre a norma, o valor e o fato, que passam a ser heteromórficos"[19]. Quer, com isso, dizer que, diante da necessária correlação entre os subsistemas, basta que um deles seja afetado para que o vazio na ordem jurídica se apresente.

Em consonância com tal conceito, a jurista identifica três hipóteses principais de lacunas, surgidas quando a quebra da isomorfia no sistema do direito derivar do acometimento dos subsistemas normativo, fático ou valorativo.

Nas palavras da doutrinadora:

No nosso entender, ante a consideração dinâmica do direito e a concepção multifária do sistema jurídico, que abrange um subsistema de normas, de fatos e de valores, havendo quebra da isomorfia, três são as principais espécies de lacunas: Ia) normativa, quando se tiver ausência de norma sobre determinado caso; 2a) ontológica, se houver norma, mas ela não corresponder aos fatos sociais, quando, p. ex., o grande desenvolvimento das relações sociais, o progresso técnico acarretarem o ancilosamento da norma positiva; e 3a) axiológica, no caso de ausência de norma justa, ou seja, quando existe um preceito normativo, mas, se for aplicado, sua solução será insatisfatória ou injusta. [20]

As lacunas normativas são também denominadas pelos doutrinadores como originárias, primárias ou subjetivas, ao passo em que as lacunas ontológicas e axiológicas são chamadas derivadas, posteriores, objetivas ou secundárias[21].

A compreensão de Maria Helena Diniz acerca da problemática das lacunas no direito não pretende ser definitiva ou absoluta, conforme alerta da própria jurista, que a entende como "uma questão sem saída" em razão das diferentes abordagens que a pluridimensionalidade do direito propicia[22].

Apesar disso, seu ponto de vista tem influenciado fortemente a doutrina brasileira que se propõe ao enfrentamento do tema da heterointegração.

Na seara do processo do trabalho, a repercussão da teoria das lacunas é especialmente intensa em razão do ancilosamento e da iniquidade das normas processuais celetistas.

Trata-se de realidade geradora de uma profusão de lacunas ontológicas e axiológicas, não solucionadas sob o prisma interpretativo conservador, diante da limitação de seu aparato teórico voltado apenas ao enfrentamento de lacunas normativas.

A interação entre o art. 15 do NCPC e os dispositivos celetistas pode trazer valiosa contribuição para a superação deste desafio, desde que se adote a postura interpretativa mais fecunda.


4. A INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA E TELEOLÓGICA DO ART. 15 DO CPC/15

Os processualistas que se debruçam sobre o estudo do alcance do art. 15 do NCPC costumam conferir destaque à análise lexical das expressões "subsidiário" e "supletivo". A preponderância do critério gramatical é clara, por exemplo, nos escólios de José Miguel Garcia Medina, Paulo Cézar Pinheiro Carneiro e Sérgio Pinto Martins, já transcritos.

  Em que pese o respeito à posição destes juristas, percebe-se que, no presente caso, a análise da precisão etimológica não pode ser a pedra de toque na distinção entre os termos.

Primeiro, porque as expressões possuem definições muito próximas, sendo comumente utilizadas como sinônimas. Tanto é assim que são empregadas de modo indistinto em outras passagens da Lei 13.105/15, a exemplo do art. 318; do art. 771, parágrafo único; e do art. 1.046, §2º. Em todos estes dispositivos, o termo denota o mesmo teor, referindo-se à colmatação de lacunas legislativas, sem atentar para a especificação quanto à modalidade ou alcance da integração normativa[23].

A segunda razão para atenuar o impacto da interpretação gramatical no estudo do art. 15 é o fato de que se mostra mais proveitosa a utilização de interpretação histórica, baseada na evolução da redação do texto legal no decorrer do trâmite legislativo, conjugada com a interpretação teleológica.

No projeto original (PLS 166/2010, do Senado Federal), a redação do artigo não contemplava a aplicação subsidiária, nem a referência ao ramo especializado do processo do trabalho. Ambas as alusões foram incluídas apenas no texto do relatório geral do projeto na Câmara dos Deputados (PL 8.046/2010).

Tal fato permite inferir que a adição da expressão “subsidiariamente” foi feita com os olhos voltados para o processo do trabalho, o que leva a entender que o art. 769 da CLT foi o parâmetro utilizado. Por este raciocínio, vê-se que o legislador cuidou de acrescentar ao dispositivo civilista a consagrada aplicação subsidiária celetista, que, em sua clássica acepção, indica a aplicação do processo comum nas hipóteses de lacuna normativa ou de regulação (lacunas originárias ou primárias).

Seguindo este raciocínio, a aplicação supletiva, cuja previsão já constava do projeto original, precisou receber novo significado, de modo a evitar sobreposição em relação à aplicação subsidiária, harmonizando o uso concomitante das expressões.

Conclui-se que sua manutenção na redação do dispositivo teve por escopo resolver questão polêmica que diz respeito à possibilidade de aplicação do processo civil mesmo quando não verificada a lacuna normativa propriamente dita, isto é, na hipótese de insuficiência, inadequação ou senilidade da norma trabalhista posta (lacunas secundárias).

Esta compreensão é extraída da manifestação do deputado federal Reinaldo Azambuja (PSDB/MS) no bojo do PL 8046/2010[24], quando apresentou justificação à emenda que deu origem à inclusão das expressões “trabalhistas” e “subsidiariamente”.

Em seu texto, o congressista esclarece que a modificação redacional pretendeu conferir maior aplicabilidade e eficácia ao art. 15 do novo código, com o intuito de sanar, dentre outras, a confusão que envolve a compatibilização do instituto do cumprimento de sentença (execução) com o processo do trabalho.

A justificação deixa evidente que a alteração redacional foi impulsionada pelas lacunas existentes no processo do trabalho, inclusive aquelas que dizem respeito à execução. Por outro lado, é cediço que as mencionadas "celeumas e confusões" envolvendo a aplicação do CPC à execução trabalhista não se limitam à resolução de lacunas primárias, mas também secundárias.

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É exemplo disso o infindável dissenso em torno da aplicabilidade ao processo do trabalho do art. 475-J do Código de Processo Civil de 1973 (atual §1º do art. 523 do CPC de 2015). Este debate é um dos principais focos da disputa entre aqueles que adotam interpretação restritiva dos arts. 769 e 889 da CLT em relação a certos temas, e aqueles que defendem uma interpretação evolutiva que reconheça, no caso, a existência de lacuna axiológica e ontológica a ser locupletada pelo Código de Processo Civil.

A manifestação do legislador revela que a utilização conjunta das expressões "supletiva e subsidiariamente" quer subsidiar esta última corrente, servindo o primeiro termo para explicitar uma hipótese que para muitos já estava abarcada pela aplicação subsidiária (arts. 769 e 889 da CLT), mas que ainda sofria (e sofre) resistência por boa parte da doutrina e jurisprudência, inclusive o Tribunal Superior do Trabalho.

A análise da evolução histórica do dispositivo revela, pois, que o legislador pretendeu minorar conflitos da heterointegração entre os ramos processuais, notadamente o trabalhista. Esta pacificação, por outro lado, somente pode ser obtida por meio do enfrentamento do ancilosamento do processo do trabalho. Se a velha aplicação subsidiária prevista no art. 769 da CLT tem se mostrado insuficiente neste mister, espera-se, sob o prima da interpretação teleológica, que a inclusão da aplicação supletiva sirva justamente ao enfrentamento do problema representado pelas lacunas secundárias.

A “ausência de normas” aludida no texto legal se refere, portanto, às lacunas normativas, ontológicas e axiológicas, de modo que o NCPC pode ser aplicado subsidiariamente para colmatação das lacunas primárias, e supletivamente para solução das lacunas secundárias.

Registre-se, por fim, que muitos juristas chegam à mesma conclusão a partir da interpretação gramatical, pois consideram que o adjetivo "supletivo" se refere àquilo que serve de complemento. A atividade de complementar, por seu turno, envolveria a colmatação de lacunas secundárias[25]. Esse, aliás, parece ter sido o sentido referido pelo deputado federal Reinaldo Azambuja (PSDB/MS), ao afirmar que a "aplicação supletiva ou complementar ocorre quando uma lei completa a outra".

Em que pese o acerto obtido pela doutrina nesse caso, observa-se que o mesmo método pode levar a conclusões diametralmente opostas, como se constata no posicionamento do processualista José Miguel Garcia Medina, transcrito anteriormente.

Isso se deve à já mencionada aproximação semântica entre os termos, fato que reduz a utilidade do método gramatical na solução da contenda e exige a conjugação de outros métodos que permitam uma diferenciação mais acurada, como se buscou fazer no presente tópico.

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Sobre o autor
Bruno Ítalo Sousa Pinto

Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG, em Direito do Trabalho e Previdenciário na Atualidade pela PUC-MG e em Direito Civil e Processual Civil pela UCDB-MS. Bacharel em Direito (UFPI). Analista Judiciário, desempenhando a função de Assistente de Juiz no TRT da 16ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Bruno Ítalo Sousa. Art. 15 do NCPC: a integração do processo do trabalho na perspectiva da teoria das lacunas do sistema jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5012, 22 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56587. Acesso em: 29 mar. 2024.

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