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Agências reguladoras:

a inconstitucional usurpação da política democrática pela ditadura da técnica

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Um dos temas mais discutidos no âmbito das ciências sociais é a democracia. Podemos no decorrer da história encontrar uma grande e rica viagem do seu sentido, desde sua inicial construção no pensamento e na prática da antiguidade até as sofisticadas e variadas discussões sobre a democracia participativa, a democracia dialógica e a construção do estado democrático de Direito.

Assistimos nestes tempos de profundas transformações a crise da democracia liberal, da democracia social e a insuficiência da democracia representativa além da apropriação do discurso democrático pelo poder econômico privado, concentrado nas mãos de poucos, incluindo o importante poder de controle e manipulação da mídia global. No mesmo momento, entretanto, percebemos claramente o surgimento e fortalecimento de alternativas. A globalização das comunicações, a Internet, a mídia alternativa, as TV s comunitárias, os jornais locais, as rádios comunitárias, enfim toda uma gama de informação democrática alternativa, que, uma vez organizadas em rede (e obviamente não me refiro aqui as falsas redes meramente reprodutoras de um conteúdo produzido por uma única fonte, mas em uma rede democrática, sem centro, multi paradigmática, uma rede de comunicações entre diversas culturas, que se unem em torno de princípios – e não conceitos – comuns) o mundo pode ser transformado em direção a um processo dialógico de construção permanente de uma grande democracia global.

Partindo de um conceito de democracia participativa e dialógica, podemos ir percebendo outros impasses contemporâneos. Um desafio muito claro está na necessidade de democratizar o que no senso comum ainda é aceito como democracia, ou seja, desenvolver mecanismos que possam fazer com que a democracia representativa, vitima do marketing, da concentração econômica e da opinião pública manipulada possa ser mais democrática do que ela já conseguiu ser no passado. Os exemplos do comprometimento e da necessidade de adaptar esta democracia representativa de forma que ela possa ser democratizada estão claros a nossa volta. A construção de uma sociedade democrática e o funcionamento de processos democráticos dialógicos exigem uma análise extremamente mais complexa da sociedade, das instituições, da cultura, da história e do momento histórico vivido, do que simplesmente a sua redução ao normal funcionamento de um parlamento, de eleições periódicas e da realização de consultas populares através de referendos e plebiscitos, ou pesquisas de opinião.

Um outro aspecto referente a construção do senso comum sobre democracia está no discurso econômico: a cultura jornalística ocidental como a construção teórica simplificadora de alguns manuais de Direito, reproduzem, ainda hoje, o conflito do pós segunda guerra de maneira simplificada e parcial. Desta forma é comum encontrarmos afirmativas de que países onde não há a adoção de uma economia capitalista (1) não podem ser democráticos, mesmo que tenham eleições periódicas com grande participação popular.

A democracia não é um lugar onde se chega. Não é algo que se possa alcançar e depois se acomodar pois é caminho e não chegada. É processo e não resultado. Desta forma a democracia existe em permanente tensão com forças que desejam manter interesses, os mais diversos, manter ou chegar ao poder para conquistar interesses de grupos específicos, sendo que muitas vezes estas forças se desequilibram, principalmente com a acomodação da participação popular dialógica, essência da democracia que defendemos, e o desinteresse de participação no processo da democracia representativa, pela percepção da ausência de representatividade e pelo desencanto com os resultados apresentados.

Desta forma os que detém determinados poderes transformam os processos a seu favor. Já trabalhamos a transformação de mecanismos que serviram a democracia norte-americana como financiamento de campanha, colégio eleitoral, bipartidarismo, imprensa privada, em mecanismos de controle e perpetuação de poder e remetemos o leitor aos nossos livros Direito Constitucional, tomo I e II, da editora Mandamentos (Belo Horizonte, 2002). Este desvirtuamento do processo democrático se aprofunda com a concentração econômica do final do século XX. Emanuel Todd, que combate a visão economicista do mundo observa o fenômeno no paradoxo da democratização de Estados que viveram autoritarismos históricos enquanto antigas democracias se desvirtuam em novas oligarquias populistas e ou belicistas:

No exato momento em que começa a ser implantada na Eurásia (2), a democracia enfraquece onde ela nasceu: a sociedade norte-americana transforma-se num sistema de dominação fundamentalmente desigual, fenômeno perfeitamente conceituado por Michael Lind em The next American Nation. Encontramos em especial, neste livro, a primeira descrição sistemática da nova classe dirigente americana pós-democrática, the overclass.

Mas não há que ter inveja. A França está quase tão avançada quanto nos Estados Unidos neste caminho. Curiosa democracia, esses sistemas políticos nos quais se defrontam elitismo e populismo, nos quais subsiste o sufrágio universal, mas as elites de direita e de esquerda entendem-se para impedir qualquer reorientação da política econômica que levasse a uma redução das desigualdades. Universo cada vez mais absurdo no qual o jogo eleitoral deve conduzir, ao cabo de um titânico confronto nos meios de comunicação de massa, ao status quo. (3)

Todd se refere na França atual a um mecanismo sociológico e político de bloqueio no qual no qual as aspirações dos 20% de baixo são bloqueadas pelos 20% de cima que controlam ideologicamente os 60% do meio. O resultado é que o processo eleitoral não tem qualquer importância prática sendo que o índice de abstenção avança de maneira sensível.

Um dos motivos da crise da democracia que leva ao desinteresse da população pelo voto está na subtração do campo democrático (político) questões referentes a políticas econômicas, políticas tarifárias de serviços públicos, políticas de investimentos e oferecimento de serviços públicos entre outros. Ao transferirmos estas políticas a uma decisão pseudo neutra porque técnico-científica, retiramos a possibilidade de decisões democráticas referentes a estas questões, sem que no entanto deixem de ser decisões políticas. Neste sentido a pseudo neutralidade do discurso técnico desautoriza a opinião popular que não domina os saberes técnicos e científicos.

A questão que decorre das reflexões acima e que vamos agora enfrentar é pois, se devemos deixar para o âmbito de decisão de entidades autônomas da administração funções de gestão administrativa de caráter preponderantemente técnico, e deixar com o governo outras funções com caráter preponderantemente político. Podemos fazer esta separação (interrogação). E se podemos como fazer esta divisão (interrogação).


As Funções do Estado contemporâneo

Superando a clássica divisão de poderes (funções) do Estado, entre legislativo, judiciário e executivo, podemos dizer que o Estado hoje necessita de um sistema mais sofisticado de exercício de funções que permita a garantia dos processo democráticos. A Constituição brasileira de 1988 reconheceu a necessidade de uma nova função de fiscalização, e embora o constituinte não tenha tido a iniciativa de mencionar um quarto poder, efetivamente criou esta quarta função autônoma essencial para a democracia e a garantia da lei e da constituição que é a função de fiscalização. O Ministério Público encarregado desta função, para exerce-la de maneira adequada necessita de efetiva autonomia em relação às outras funções (poderes) não pertencendo nem ao executivo, nem ao legislativo, nem ao judiciário. O mesmo ocorre com os Tribunais de Contas, que embora necessitem nova forma de escolha de seus membros para que assumam este novo status, não podem pertencer a nenhum dos poderes tradicionais para exercer com eficiência sua função fiscalizadora. Neste sentido a Constituição da Venezuela de 1999, importante texto democrático e social contemporâneo, reconhece expressamente o que a Constituição Brasileira começou a inovar: cria cinco poderes (poder executivo, legislativo, judiciário, cidadão e eleitoral) transformando a defensoria pública e o ministério público em Poder Cidadão, de fiscalização e garantia democrática, ao proteger o respeito a Constituição e as leis.

Podemos dizer que hoje é necessário de separar as seguintes funções autônomas do Estado democrático: a função legislativa ordinária (de elaborar as leis infra-constitucionais); a função legislativa constitucional (de emendar e revisar ao Constituição); a função jurisdicional; a função de governo; a função administrativa; a função de fiscalização (acima mencionada); e uma função simbólica (típica do chefe de estado, função esta que pelo seu simbolismo não deve se confundir com a função de governo, esta de poder político).

Trabalhamos em outros momentos a acumulação de funções, fato típico do presidencialismo, onde o presidente acumula as funções simbólica (chefe de estado) de representação dos valores nacionais; as funções de governo (de decisão política, definição de políticas publicas); e a função de chefe da administração pública civil e militar (função esta técnico-política). O acumulo destas funções na figura de uma única pessoa é responsável por grandes distorções do sistema político representativo, fazendo que o jogo político se torne equivocadamente personalista.

O que nos interessa neste trabalho entretanto são as funções de governo (poder político) e as funções administrativas (de natureza técnico política). Percebemos um movimento em diversas democracias contemporâneas no sentido de separar funções de governo de funções administrativas, decorrente da necessidade de eliminar os males de um sistema administrativo baseado em cargos de confiança, onde, para se conseguir apoios em votações no parlamento o governo distribui cargos de chefia na administração pública, comprometendo a eficiência na administração pública e distorcendo o jogo político, que deveria ser em torno de projetos, idéias, programas, e não fundado em vaidades e interesses pessoais por cargos, privatizando o público e destruindo o Estado.

A questão que passamos a analisar portanto é como separar a função de governo da função administrativa e quais são os critérios podemos adotar para efetivar esta divisão, que coloque o governo democraticamente eleito dentro de sua função constitucional, que não é a de distribuir cargos em troca de apoios provisórios e inspirados por interesses personalistas e que coloque a administração pública funcionando de forma eficiente, apta a cumprir as determinações do governo e do parlamento dentro dos princípios de eficiência; legalidade (leia-se constitucionalidade); impessoalidade; moralidade e publicidade.


Governo X administração: Democracia, política e eficiência no Estado democrático e social de Direito

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O excesso de cargos de confiança e o uso inadequado aos interesses públicos da possibilidade de escolha das chefias da administração pelos governantes comprometendo uma eficiente gestão dos entes da administração, levaram a busca de alternativas que resguardem a eficiência administrativa, oferecendo uma administração que deve servir as determinações políticas com competência técnica.

Esta discussão ocorre dentro de uma outra perspectiva contemporânea não menos importante: a busca da descentralização e fragmentação coordenada de poder, permitindo maior celeridade nas decisões, responsabilidade do administrador, uma vez que quem decide está próximo do administrado, e, devido a proximidade entre administrado e administrador, a possibilidade concreta de controle social.

Isto posto perguntamos: o chefe de governo deve escolher os reitores das universidades, diretores de escolas, diretores de hospitais e de órgãos de pesquisa entre outros. A resposta obvia diante do que já foi discutido anteriormente é não. O governo deve estabelecer as grandes políticas de investimento nos mais diversos setores de interesse público, investimentos em saúde, educação, meio ambiente, definição de políticas econômicas, incentivo a produção, escolha de grandes diretrizes técnicas entre outras questões, mas não há motivo para que este mesmo governo encarregado de definições políticas e de escolhas de modelos técnicos e científicos que se adequem as suas políticas (e nunca o contrário), escolher o profissional que vai gerir o dia a dia de uma escola de primeiro e segundo grau, ou o gestor de um hospital, ou de uma universidade, ou de um instituto de pesquisa, etc. Temos então um indicativo para estabelecer a diferença entre uma função administrativa e uma função de governo. Entretanto a questão não é tão simples. Se gerir uma escola é preponderantemente uma função técnica, não é exclusivamente técnica. Ao mesmo tempo se a definição de grandes linhas de políticas públicas é uma função preponderantemente política, não pode ser exclusivamente política, pois necessita de suportes técnico-científicos, que entretanto devem se subordinar sempre a decisão política.

Por este motivo embora seja necessário a divisão em função administrava distinta da função de governo, a função administrativa não deve ser, em geral (sempre há exceções), uma função exclusivamente técnica, acrescendo sempre que possível aspectos democráticos que incentivem o controle social, na escolha dos cargos de chefia. Por isto falarmos em eleição de reitores de universidades, diretores de escolas, diretores de hospitais, desde que cumpridos critérios técnicos.

Assim podemos dizer que a gestão de serviços públicos devem ser deixadas para entes administrativos autônomos (criados por lei com competências próprias onde o poder central não pode intervir, e sempre que possível com a participação do administrado na escolha do gestor), enquanto as escolhas políticas e a construção de políticas públicas de investimentos, políticas econômicas, de saúde e educação entre outras devam ser do governo. Não deve o governo escolher o diretor de uma escola e um hospital assim como não pode um ente administrativo autônomo sob o pretexto de escolhas técnicas, assumir escolhas políticas encobertas pelo discurso pseudo neutro da técnica. Dentro deste raciocínio o Banco Central do Brasil não pode nunca ter autonomia para escolher políticas monetárias, por ser esta autonomia inconstitucional ao retirar do espaço político-democrático do governo democraticamente eleito, a possibilidade de escolhas das várias alternativas técnicas econômicas relativas as políticas econômicas para o setor.


A questão das agências reguladoras

As agências reguladoras, mecanismo copiado de uma tradição administrativa norte-americana que nada têm em comum com nossa história administrativa, se inserem no raciocínio realizado no parágrafo anterior, e daí sua inconstitucionalidade, além de sua absoluta inadequação a nossa cultura.

Sérios problemas para um governo democraticamente eleito surgem com a adoção deste sistema, que se insere dentro de uma lógica administrativa adequada ao modelo neo-conservador (chamado neoliberal), que privatizou serviços públicos de telefonia, transporte, água, energia elétrica, encarecendo os sistema que obviamente expandiu procurando mais lucros. Hoje muito mais pessoas tem acesso a uma linha de telefone, por exemplo, que por serem muito mais caros, não tem possibilidade de pagá-los (4). Mas a questão não é esta, pois poderíamos citar muitos outros exemplos como o desastre no setor de geração e distribuição de energia após a privatização. A questão que nos interessa é que, para regular estes serviços públicos privatizados, e portanto sujeitos aos interesses privados que se impõem na prática aos interesses do público, criou-se agências reguladores, que passaram assumir competências de escolhas e definições de políticas públicas destes setores, claramente usurpando funções de governo, e portanto, usurpando funções democráticas, o que não tem amparo constitucional.


NOTAS

Remeto o leitor a leitura do capítulo dois do meu livro Direito Constitucional, tomo I, e dos capítulos 1, 2 e 9 do Direito Constitucional, tomo II, da editora Mandamentos, Belo Horizonte, edição de 2002.
  • Podemos mencionar também da democratização dos estados nacionais da América Latina e diversas novas democracias africanas
  • TODD, Emanuel. Depois do Império, Editora Record, Rio de Janeiro, 2003, página 28.
  • Poderíamos lembrar as estradas maravilhosas depois da concessão para exploração privada. O problema é que como os usuários não tem dinheiro para utilizar estas vias devido ao alto custo do pedágio são obrigados a usar vias alternativas muitas completamente abandonadas, aumentando o risco e mantendo vazias e seguras para quem pode pagar as vias privatizadas.
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    Sobre o autor
    José Luiz Quadros de Magalhães

    Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Agências reguladoras:: a inconstitucional usurpação da política democrática pela ditadura da técnica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 430, 10 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5678. Acesso em: 22 dez. 2024.

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