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Transmissão de imóvel com reserva de usufruto

01/12/1999 às 01:00
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O presente trabalho não tem a pretensão de ser definitivo nem tampouco de exaurir o tema, mas tão somente suscitar a discussão e possibilitar, além da exposição de um ponto de vista objetivo, a oportunidade de que os colegas exercitem os neurônios e reflitam sobre o tema.

Freqüentemente lavramos em nossas serventias, escrituras de transmissão de imóveis com algum tipo de reserva (uso, habitação, usufruto, etc...). No mais das vezes as escrituras com reserva são de Doação com reserva de usufruto, objeto deste nosso estudo.

Levadas a registro, ditas escrituras são registradas pelos Cartórios de Registros de Imóveis como se fossem Doação comum, e imediatamente após o registro, é lavrado um segundo ato, às vezes sob a forma de registro, às vezes sob a forma de averbação, onde é feita a "RESERVA DE USUFRUTO". O título transmissivo é indicado às vezes como "DOAÇÃO COM RESERVA DE USUFRUTO", às vezes simplesmente como ‘DOAÇÃO’.

Este procedimento, de efetuar duplo registro, tem origem em uma corrente de pensamento que entende ser a propriedade, no contexto jurídico brasileiro, um direito uno e indivisível, que pode sofrer restrições, mas que não se cinde nas suas diversas faculdades. Sob esta ótica, o nú-proprietário e o usufrutuário não seriam titulares de direitos diferentes sobre o mesmo imóvel (de um lado uso e gozo, de outro disposição e seqüela), mas partilhariam entre eles um mesmo direito monolítico de propriedade, apenas com restrições de parte a parte.

Assim, sob a ótica daqueles que consideram a propriedade una e indivisível, a DOAÇÃO COM RESERVA DE USUFRUTO, seria a doação do direito de propriedade onerado com usufruto, razão pela qual se faria o registro da transmissão da propriedade plena, e após o registro do ônus, ou usufruto.

De outra banda, aqueles que pensam ser cindível a propriedade nas suas diversas faculdades, entendem que na DOAÇÃO COM RESERVA DE USUFRUTO, é transmitida somente a nua-propriedade, e o usufruto que se reserva o doador, não é senão o mesmo direito primitivo e remanescente de uso e gozo que ele já desfrutava anteriormente, razão pela qual não é necessário fazer-se um registro posterior à transmissão da nua-propriedade, vez que o direito de usufruto, por não ter sido transmitido, não poderia ser instituído do doador para sí próprio. Seria tão apenas uma reserva a ser feita no registro, a título de ‘condição do contrato’ de doação, a teor do disposto no artigo 176, inciso III, n° ‘5’ da Lei 6.015/73:

          "Art° 176...................

Inciso I .....................

III – São requisitos do registro no Livro 2:

1 – a data;

2 – o nome, domicílio e nacionalidade do transmitente, ou do devedor, e do adquirente, ou credor, bem como:

a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da Cédula de identidade, ou à falta deste, sua filiação;

b) tratando-se de pessoa jurídica, a sede social e o número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda;

3 – o título da transmissão ou do ônus;

4 – a forma do título, sua procedência e caracterização;

5 – o valor do contrato, da coisa ou da dívida, prazo desta, condições e demais especificações, inclusive os juros, se houver."(o grifo é nosso)

Esta condição (reserva de usufruto) de conformidade com o artigo 118 do CCB, é uma condição suspensiva, que se implementará quando do falecimento do usufrutuário, reunindo a plenitude da propriedade na pessoa do nú-proprietário.

A esta segunda corrente nos filiamos, embora reconheçamos e respeitemos a quantidade e a qualidade de tantos quantos defendem a primeira. Por diversos motivos, que abaixo discorreremos, entendemos que é inconteste a opção do direito pátrio pela propriedade divisível nas suas diversas faculdades, senão vejamos:

O artigo 524 do Código Civil Brasileiro é do teor seguinte:

          "Art° 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua" (o grifo é nosso)

          Está expresso de forma clara que a propriedade não é um direito uno e indivisível, mas uma reunião de faculdades, e que quando agrupadas todos na mesma pessoa chama-se ‘domínio’.

          O artigo 713, por sua vez, assim define o direito de usufruto:

          "Art° 713. Constitui usufruto o direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade" (o grifo é nosso)

Da interpretação conjunta destes dois artigos, 524 e 713, parece-nos evidente a opção do legislador pátrio em permitir a cisão, mesmo que temporária, dos direitos inerentes à propriedade, de um lado uso e gozo, de outro disposição e seqüela.

Dentro da boa técnica registral, qualquer que seja a opção doutrinária, parece-nos desnecessário, mas impossível um segundo ato de registro de ‘reserva de usufruto’, seja sob a forma de registro seja sob a forma de averbação. Justificaremos:

O registro, como elemento constitutivo de direito, é um ato que se encerra em sí mesmo, que não pode depender de nenhum apêndice, nenhuma referência, nenhum complemento, nenhum acréscimo para gerar seus efeitos. Encerrado o ato de registro com a assinatura do registrador, o ato está perfeito e completo, e de nada mais depende para produzir todos os seus efeitos legais. Somente por exceção, e caso tenha sido cometido algum engano ou sido omitido algum elemento essencial do registro, é que se pode lavrar um ato complementar, ou seja, uma averbação ‘ex-ofício’, e que fará parte integrante do registro original. O registro da transmissão seja ela qual for, se faz através de um único ato.

A dita ‘RESERVA DE USUFRUTO’ que alguns entendem ser possível em registro autônomo, não encontra-se elencada nem entre os atos de registros, no Artigo 167, inciso I, nem entre as averbações, no Artigo 167, II da Lei 6.016/73, e não sendo nem ato de registro nem de averbação legalmente previstos, é ato impossível de ser praticado pelo registrador, sob pena de lesão ao princípio da ‘Tipicidade’ expresso no Artigo 285, inciso IX da CNNR (CGJ/RS), e artigo 172 da Lei 6.015/73, que afirmam serem registráveis, apenas títulos relativos a direitos reais, previstos em lei.

O único registro autônomo, envolvendo ‘usufruto’, seria o da instituição do usufruto convencional, cujo registro está previsto no artigo 167, Inciso II, n° ‘7’ da Lei 6.015/73.

Especialmente se admitida como correta a interpretação de que o artigo 167 da Lei 6.015/73 não é simplesmente exemplificativo, mas sim, relaciona e exaure todos os atos de registro e averbação possíveis de serem praticados no Registro de Imóveis. Assim nos parece a opção do legislador pátrio. Se assim não fosse, e aquela relação de atos fosse simplesmente exemplificativa, não seria necessário que o artigo 40 da lei 9.514/97 (Alienação Fiduciária de Imóveis) tivesse acrescido o n° ‘35’ ao inciso I do Artigo 167 da Lei 6.015/73. Bastaria simplesmente ser necessário este tipo de registro, que deveria ele ser lavrado pelo registrador, independente de sua previsão na Lei 6.015/73. Da mesma forma em relação à lei n° 9.785/99 (altera o artigo 4° da Lei 6766), que acresceu o n° ´36´ ao inciso I do artigo 167 da Lei 6.015/73.

Tampouco encontra previsão na tabela de emolumentos o registro ou a averbação de ‘reserva de usufruto’. Incluí-la como registro ou averbação sem valor declarado não nos parece lícito, embora rotineiramente este segundo ato seja cobrado das partes, ora como registro sem valor, ora como registro com o mesmo valor do registro da doação.

Analisando sob a ótica daqueles que entendem ser cindível a propriedade, o segundo ato - da reserva de usufruto - não pode ser lavrado porque no momento do registro da Doação com Reserva de Usufruto, a propriedade cinde-se, dividindo-se em nua-propriedade de um lado e direito de usufruto de outro. Somente a nua-propriedade é transmitida e nas ‘condições do contrato’ é explicitado que os doadores reservaram para sí o usufruto vitalício. Assim, é lavrado um único ato de registro da escritura de doação com reserva de usufruto, que num mesmo momento registra a transmissão da nua-propriedade e reserva o usufruto. O segundo ato, da ‘reserva de usufruto’ não deve ser realizado pois seria redundante. O usufruto sequer chega a ser transmitido e não é necessário a lavratura de novo ato para noticiar e dar oponibilidade ‘erga omnes’. O ato pelo qual se constituiu o direito de uso e gozo do imóvel em favor do doador, foi aquele no qual ele anteriormente adquiriu a propriedade plena, da qual, na doação transmitiu somente parte.


Fazendo um exercício e tentando visualizar sob a ótica dos pensadores da propriedade una e indivisível, também nos parece desnecessária a lavratura de dois atos, um de registro da doação e outro da reserva de usufruto. Aquela corrente sustenta a necessidade do segundo ato de registro basicamente por dois motivos:

Primeiro porque a transmissão do imóvel não seria somente da nua-propriedade. A transmissão seria daquele bloco monolítico que entendem ser a propriedade, una e indivisível, simplesmente onerada com o usufruto. Rebatendo este argumento e justificando a impossibilidade de um segundo registro, parece-nos ser obrigatório que este ônus ou gravame imposto pelo doador conste no próprio ato de registro da doação, e não em ato posterior, razão pela qual somente um ato é necessário e possível de ser lavrado.

Segundo, pela exigência expressa no artigo 715 do CCB, de que o usufruto de imóveis, quando não resulte do direito de família, dependerá de transcrição (atualmente registro) no respectivo registro imobiliário. Contra-argumentando, parece-nos que o sentido pretendido pelo legislador foi o de, em exigindo a formalização de um ato no registro, fazer contra-ponto ao usufruto decorrente do direito de família, que não requer registro algum. Assim, o usufruto em favor do doador não pode ser presumido pelo simples fato de haver sido transmitida a nua-propriedade. É necessário que o usufruto se consubstancie expressamente na ‘reserva de usufruto para o doador nas ‘condições do contrato’ e no título transmissivo que deverá ser ‘Doação com Reserva de Usufruto’.

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Necessário aqui definir ‘registro’: segundo ‘De Plácido e Silva’ in ‘Vocabulário Jurídico’, registro é assento ou cópia em livro próprio, de ato que se tenha praticado ou de documento que se tenha passado, ou ainda em sentido amplo, a soma de formalidades de natureza extrínseca a que estão sujeitos certos atos jurídicos, a fim de que se tornem públicos e autênticos e possam valer contra terceiros.

Entendemos ter sido este o sentido pretendido pelo legislador pátrio ao exigir a transcrição (atualmente registro) como formalidade necessária à validade do usufruto, o de consubstanciar o usufruto em um ato que desse publicidade e oponibilidade erga omnes. Assim sendo, a ‘Doação com Reserva de Usufruto’ e a condição expressa, integrante do registro, de que o doador reserva para sí o usufruto, supre a necessidade do artigo 715 do CCB.

O segundo registro - da reserva de usufruto -, por sobre ser oneroso para a parte, é desnecessário e inócuo, pois não gera nenhum efeito ou direito adicional, vez que a ‘reserva de usufruto’ já foi transcrita no registro da doação da nua-propriedade.

Há um argumento que não encontramos dissecado na literatura pesquisada: O aspecto tributário.

Desnecessário declinar a capitulação legal que determina a incidência de Imposto de Transmissão sobre a transmissão tanto da ‘propriedade’, quanto do ‘direito de usufruto’.

Admitido o ponto de vista da corrente da propriedade una, seria necessário um registro para a doação, sobre o qual inequívocamente há incidência de imposto de transmissão, vez que haveria a transmissão da propriedade plena. Por esta corrente é necessário um segundo registro para a constituição do usufruto, e o usufruto aí constituído não seria o mesmo direito remanescente do doador, seria um direito instituído do donatário para o doador, de modo que haveria novamente a incidência do Imposto de Transmissão, uma pela transmissão da propriedade para o donatário, e outra pela constituição do usufruto para o doador. Somente por uma ficção jurídica é que se pode admitir que os dois atos fazem parte de uma mesma transmissão e que sobre o segundo não incide imposto.

Pela corrente contrária, a doação com reserva de usufruto realiza-se em um único ato e configura-se em doação somente da nua-propriedade, razão pela qual, não tendo sido transmitido o direito de usufruto - que é reservado -, não incide imposto de transmissão. Convém lembrar que no Estado do Rio Grande do Sul, por força da Legislação Estadual, o ITCD na Doação com Reserva de Usufruto é antecipado para o momento da transmissão da nua-propriedade, e na extinção do usufruto nada se recolhe ao estado, pois o tributo já foi recolhido antecipadamente.

Contendo em sí o ato de registro todos os elementos necessários e indispensáveis, tendo sido indicada a reserva de usufruto como condição do contrato, a lavratura de um segundo ato, é completamente vazio, vez que não produz nenhum efeito adicional ao ato primitivamente lavrado.


Por fim expomos aqui um depoimento pessoal, que embora não tenha nenhum valor como argumento de sustentação de nossa tese, tem valor para entender o porque as escrituras de Doação com Reserva de Usufruto são lavradas em dois atos: A grande maioria dos registradores com quem nos entrevistamos para a realização deste trabalho justificou este procedimento basicamente por dois motivos: Primeiro, por uma espécie de moto contínuo, segundo o qual, há muito lavram estes dois atos, e questionar este precedimento exigiria algum tempo e esforço do registrador; segundo porque este segundo ato é remunerado, e deixar de fazê-lo implicaria em redução de receita.

Por todo o exposto, entendemos devam ser registradas as DOAÇÕES COM RESERVA DE USUFRUTO em um único ato, suprimindo-se o registro da dita RESERVA DE USUFRUTO.

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Sobre o autor
Gilceu Antonio Vivan

tabelião e registrador do Serviço Notarial e de Registros de Capela de Santana (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIVAN, Gilceu Antonio. Transmissão de imóvel com reserva de usufruto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/571. Acesso em: 28 mar. 2024.

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