Precedentes judiciais: um argumento para o gigantismo jurisdicional?

24/04/2017 às 18:54
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Estaria as altas Cortes legislando através dos provimentos jurisdicionais contidos no art. 926 da Lei de nº. 13.105/15?

Introdução

A nova coluna vertebral do NCPC, findada nas normas processuais fundamentais irradiadas da Constituição Federal (arts. 1º e ss) e pelo sistema de precedentes judiciais (arts. 926 e 927), traz, além-código, o imbróglio exsurgido na comunidade jurídica acerca dos novos horizontes propiciados pelas inovações do diploma, bem como o seu basilar fundamento frente a ele.       

 

1.Commow Law e Civil Law: O Paradoxo Metodológico de Pindorama

Designa-se “paradoxo metodológico”, termo inicialmente cunhado por Pontes de Miranda e Galeno Lacerda, a contraposição lógica de tradições jurídicas[1] que se relaciona intimamente com o hibridismo do sistema processual brasileiro. Portanto, tem-se de um lado um processo meramente infraconstitucional, herdado da tradição romano-germânica de civil law, onde o juiz devia decidir seguindo a literalidade da lei, e de outro um processo constitucional, de matriz constitucional, herança da tradição norte-americana de commow law, onde a preocupação do processo é a justiça, e nem toda a justiça se esgota na lei[2]. Ponto em que o discurso de precedentes judiciais começa a se delinear.

 

Quanto às diferenças basilares e primordiais entre tais tradições, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira[3] entende que, na conjuntura do civil law as regras jurídicas são tidas como normas de conduta, vinculadas à preocupação de justiça e moral. Em contraposição a esse sistema, tem-se o commow law, de jurisdição una, com um sistema de freios e contrapesos (checks and balances) e o judicial review.

Destarte, coube ao brilhante jurista Rui Barbosa, em ousada e inovadora empreitada, uma inovação na matriz institucional do direito brasileiro, considerada por Hermes Zaneti Jr como uma revolução copernicana[4], efetuada mediante importação dos writs constitucionais, responsável pela implantação de célebres institutos, tal como o habeas corpus; o pleito civil lato sensu; o sistema de checks and balances, eloquente com a ideia de controle judicial sobre os atos dos demais poderes; o controle difuso de constitucionalidade, ou seja, o controle exercido por todo os juízes e tribunais que podem - e devem - rejeitar a aplicação de norma violadora ou contrária ao escopo da Constituição[5] e, sobretudo, a atipicidade das ações: “remedies precede rights” (os remédios precedem os direitos), ressaltando a função criativa da jurisprudência no direito brasileiro, com o escopo de sempre realizar a justiça, que inicialmente fora consolidada na Constituição Republicana de 1891 e atualmente encontra fórmula na cláusula aberta de inafastabilidade da jurisdição, art.5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988.

 

O artigo primeiro do Novo Código de Processo Civil traz expressamente em seu caput - e em outros tantos dispositivos espalhados pelo código, tais como os arts.3º, 8º e 11º... - o respeito, submissão, adequação e interpretação de todo o processo civil para com as raias constitucionais.

Nessa senda, demonstra-se a indubitável superação do paradoxo aqui supracitado, preferindo-se falar em um direito processual constitucional, que, nas palavras de Araújo, Grinover e Dinamarco, refere-se à “condensação metodológica e sistemática dos princípios constitucionais do processo”[6]

 

2.A doutrina se diverge: precedentes vinculantes?

Ao se debruçar acerca do polêmico e incontroverso tema dos precedentes, a classe doutrinária brasileira se diverge constantemente sobre os aspectos fundamentais do sistema agora implementado pela Lei 13.105/16 nos dispositivos 926 e 927.

De um lado, juristas como Hermes Zaneti Jr, Luiz Guilherme Marinoni, Fredie Didier, Daniel Mitidiero, dentre outros, defendem arduamente a sistematização e a aplicação indubitável desse produto originário da tradição commow law.                                    

De outro, encontram-se operadores como Luiz Lenio Streck, Georges Abboud, Nelson Nery Jr e todos àqueles interessados por fomentar, desenvolver e enriquecer o debate há pouco disperso em solo pátrio.

Seja como for, a importância propiciada pelo duelo entre “precedencialistas” – expressão de Streck – e críticos da inovação tem, acima de tudo, demonstrado o viés dialético que se deve ter, e ater, a comunidade jurídica mediante aparição de temas geradores de repercussão e modificação (rectius: inovação) no ordenamento jurídico brasileiro, bem como em toda a sua estruturação advinda das veias do Estado Constitucional Democrático de Direito.

 

Em uma série de artigos publicados no site Conjur, Luiz Lenio Streck desenvolveu, e sobretudo, atiçou a comunidade jurídica nacional ao pôr em perspectiva o sistema de precedentes (sic) em uma espécie de compêndio denominado pelo mesmo como “Tetratologia” dos Precedentes.  

Nesta esteira, o jurista empeza a desenrolar o problema do sistema ao ser implementado no direito brasileiro verberando que os precedentes à brasileira não possuem a áurea democrática própria da tradição que advém. Em suas palavras:

“No commow law, o que confere à dimensão de precedente à decisão do tribunal superior é sua aceitação primeiro pelas partes e, em seguida, pelas instâncias inferiores do judiciário. ”[7]

O que acontece na praxe brasileira é o inverso, uma vez que a altas Cortes primeiro constroem, abstratamente, normas a serem aplicadas no futuro. Elucidando, e dando margem, à sujeição das instâncias inferiores para com o decidido em alto patamar. Uma vez que posto o precedente, ele vale.

Afinal, segundo Hermes Zaneti Jr, “a jurisprudência é fonte primária no direito contemporâneo brasileiro. ”[8]

Dessa forma, observa-se o desmensurado viés de realismo jurídico (o direito é aquilo que os juízes querem que seja), ao designar aos membros das altas cortes a função de dizer o que é o direito através desse provimento jurisdicional. Uma versão atualizada – e mal rearranjada – do brocardo-norte consolidado à época da fase instrumentalista do processo: Da mihi factum, dabo tibi ius - Dá-me a tese, que te darei o precedente. Nada mais seria que o amarro entre poder discrionário e subsunção.

 

Tais ideais, de espectro um pouco idílico, põem em clara perspectiva a preocupação do judiciário brasileiro em pôr fim a incongruência de decisões proferidas, elucidando a preocupação quantitativa, funcional e estabilizadora em reduzir o número de litígios que inundam as cortes.

Os precedentes serviriam como uma válvula de “escape” normativa para remediar a inflação processual, fruto de uma cultura de litigâncias.

Porém, a implantação de um sistema como esse – digo pelo alto teor de discussões acerca do tema -, não pode ser realizado sem os cuidados e adaptações exigidos pela própria índole e estrutura do nosso sistema de direito codificado.

Tais acepções acabam por levar, inevitavelmente, a um ciclo vicioso de impetração de recursos contra essas decisões abstratas e alheias às circunstâncias do caso, advindas de uma tese jurídica consolidada como vinculante.

O problema dessa perspectiva é o inegável esquecimento (rectius: desobediência) de todos os valores contidos na Carta Magna. Sobretudo aquele considerado por Georges Abboud como o direito fundamental do século XXI[9], o da fundamentação das decisões judiciais, entendimento insculpido no artigo. 93, IX da CF/88 e também no 11º do NCPC. (Vide, REsp.992.299, com decisão proferida pelo ministro Barroso).                                      

Nessa mesma senda, o fluxo de decisões discricionárias, volitivas e de essência contrária ao pregoado nas raias constitucionais, pautada na má utilização do sistema de precedentes, seria capaz de provocar uma enorme disparidade na divisão dos três poderes intrínsecos aos Estado Democrático de direito. Fomentado, sobretudo, a hipertrofia daquele responsável pela administração da Justiça na sociedade, o poder judiciário.           

 

O sistema de precedentes da cultura commowlista, visando, sobretudo, a racionalização, congruência, harmonização – vide art. 927, CPC - e, de certa forma, celeridade, na solução dos litígios, são, em sentido lato, segundo Fredie Didier Jr, “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos. ”[10]

Nessa esteira, em recente artigo publicado, Hermes Zaneti Jr verberou a importância da jurisprudência dos precedentes para o constante aperfeiçoamento e nutrição da justiça racional.       Claro, não é forçoso, e muito menos infundamentado, admitir os avanços da teoria da interpretação jurídica. O dispositivo não mais se confunde com a norma; o trabalho hermenêutico dos julgadores hoje é capaz de extrair de um dado dispositivo uma gama de normas.

Destarte, assentando nos entendimentos brevemente expostos acima, não há mais espaço para julgadores adstritos à vontade concreta da lei ou do direito (mens legis ou mens legislatoris).  O direito carece e requer de uma árdua e constante tarefa de interpretação. Trabalho capaz de proporcionar a criação de precedente, contanto se verifique os requisitos predispostos no art.927 do código de processo civil.

 

Tome-se como exemplo o art.700 do supramencionado código, hipótese que versa sobre ação monitória, ou seja, ação capaz de constituir um determinado título executivo (art.515, CPC), através de prova documental (rectius: prova escrita) comprovada pelo credor. O termo “prova escrita” é, deveras, vago, necessitando indispensavelmente da tarefa interpretativa do julgador. Tanto é assim que o STJ decidiu: “cheque prescrito” e “contrato de abertura de conta corrente acompanhado de extrato bancário” (respectivamente, súmulas nº. 299 e 247, STJ), são exemplos de prova escrita mencionada no art.700 do CPC. Assim, à luz desse determinado caso, há criação de uma norma, consolidando a tese jurídica (ratio decidendi) a ser usada naquele caso concreto e, possivelmente, em futuras lides análogas.

 

Nas conclusivas e elucidativas palavras de Claudio Madureira:

“Por isso, entre nós, o Direito aplicado aos casos concretos, assim como a atividade intelectiva que o concebe, sofrem decisiva influência dos precedentes judiciais. Essa circunstância, no entanto, não “engessa” a criação do Direito pelos intérpretes, de modo a afastar (ou a mitigar) a compreensão de que o Direito é construído como função do “auditório”.[11]

                                                            

3.Considerações finais

O esboço de cunho meramente exemplificativo aqui abordado tem por escopo, mais que a própria discussão acerca da positivação do novel legislador do sistema de precedentes, estimular cada vez mais discussões capazes de salutar o direito brasileiro.

Ainda sobre a discricionariedade do judiciário e sua íntima ligação com os precedentes, convêm salientar a mixórdia atual dos Tribunais Superiores e sua (in) constante incongruência para com os direitos e garantias fundamentais em seus julgados. A realidade fala per se: o extermínio da presunção de inocência; as decisões judiciais que determinam a condução coercitiva; o juiz da Infância e Juventude que mandou usar “instrumentos de persuasão” contra crianças e adolescentes; e, sobretudo, as decisões do STJ acerca da tramitação da PEC 241/55 – a pior agressão ao âmago das cláusulas pétreas vista em anos.

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Por conseguinte, retornando à problemática dos precedentes, a praxe forense nos demonstra um ambiente marcado por anomalias sistemáticas que não comportam mais, sem um prévio estabelecimento de instrumentos e formação necessárias, implementação de sistemas e institutos que, em vez de auxiliar na solução de conflitos, acaba por abarrotar o ordenamento jurídico.

Por fim, nas ilustríssimas lições de Cândido Rangel Dinamarco:

“ É óbvio [...] que a outorga de caráter vinculativo a decisões judiciais que equivale a dotar os tribunais de poder normativo e alterar a vigente formula brasileira de separação entre os chamados poderes do Estado, não deve ser feita sem os cuidados e adaptações exigidos pela própria índole e estrutura do nosso sistema de direito escrito. [...] se a questão é político-institucional na medida da reformulação proposta ao sistema de checks and balances constitucionais, que se tenha a coragem de dar-lhes solução política porque já se sabe que em regras puramente técnicas de direito processual nenhum resultado eficaz se encontrará. ”[12]

 

 

 

 


[1]ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: o modelo constitucional da justiça brasileira e as relações entre processo e Constituição. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014, p.18.

 

[2] Idem. Processo Constitucional: Reflexões sobre a judicial review e o stare decisis no direito brasileiro. 2005, p.06.

 

[3] ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.89-90.

[4] ZANETI, op.cit., p.44, nota 1.

 

[5] Idem, A Constitucionalização do Processo.2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014, p.43.

 

[6] CINTRA, Antonio Carlos Araujo; GRINOVER. Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p.79

 

 

[7] http://www.conjur.com.br/2016-ago-18/senso-incomum-isto-sistema-sic-precedentes-cpc. Acesso em: 09 abr. 2017.

 

[8] ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: o modelo constitucional da justiça brasileira e as relações entre processo e Constituição. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014, p.233.

[9] https://jota.info/justica/nucleo-duro-novo-cpc-e-inconstitucional-diz-jurista-21122016. Acesso em: 24 abri. 2017.

[10] DIDIER JR., Fredie; BRAGA. Paulo Sarno; DE OLIVEIRA. Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil. 10ª. ed. São Paulo: editora JusPodivm, 2015, p.441. vol. 2.

[11] MADUREIRA. Claudio Penedo. Direito, processo e justiça – o processo como mediador adequado entre o direito e justiça. 2009. 196 p. Dissertação (mestrado em Direito Processual) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, 2009.

 

[12] DINAMARCO, Cândido Rangel. Decisões vinculantes. Revista de Direito Processual, ano 25, n. 100, p. 166-192, out. /dez. 2000. 

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