O caminho da humanidade tem passado por tortuosas vias, mas é possível entender que o senso de coletividade cresceu. A sociedade está mais consciente do contexto, da inevitável interação entre pessoas e instituições em todo o mundo e do quanto qualquer relação afeta e é afetada pelas demais relações, incorporada a compreensão do efeito borboleta. Muito disso se deve à globalização e, claro, à internet e seus desdobramentos.
Ocorre que algo aconteceu nessa nova onda. Se a idolatria já acompanhava a humanidade desde a era bíblica, nos tempos atuais há uma intensificação do culto a celebridades, algo mais ou menos antecipado nas palavras de Andy Warhol. Justamente por causa das inovações tecnológicas, a combinação de globalização com internet e o tal “celebritarianismo” gerou um cenário, por incrível que pareça, menos humano. Isto porque muitas vezes as pessoas na verdade são “coisas”, objetos de admiração, com uma perenidade incrível.
No Brasil de hoje os super heróis são titulares de poderes públicos, como juízes, ministros, presidentes. Agentes que nada mais são, na letra da lei, que peças de uma engrenagem estatal. Tal qual um árbitro de futebol que chama mais atenção que os craques dos times numa partida, algo está fora de lugar. Talvez a razão disto esteja na falta de uma base de formação cultural e, especialmente, espiritual. Numa visão de mundo reduzida ao materialismo, por exemplo, o culto a celebridades tem muito mais espaço. O fato é que estas circunstâncias têm sido responsáveis, em parte, pelo retardamento na evolução humana.
Na contramão disto, e de forma muito positiva, a Constituição Federal brasileira, na esteira do conceito de Estado Democrático de Direito, tem como um de seus princípios a impessoalidade. Este critério é a salvaguarda dos direitos da coletividade no tocante ao interesse público, porque impede que haja privilégio a interesses individuais. Pode não parecer, mas a impessoalidade não esfria as relações interpessoais, não distancia as pessoas e nem deixa o mundo com menos calor humano. O efeito é outro. A propósito, a impessoalidade pode conviver perfeitamente com a proximidade sadia entre público e privado. Exemplo disso é o conceito de polícia comunitária, em que a instituição se aproxima da população, conhece e convive com as pessoas, tudo sem ferir princípios, sem violar regras e sem que haja qualquer privilégio ou favorecimento.
A impessoalidade é dirigida às relações entre as pessoas e os interesses coletivos, o que garante a preservação de direitos individuais e inibe abusos, de modo a firmar a consciência de que público e privado merecem ser separados com com proveito geral. Quando alguém sabe que não precisa ser amigo de um político para passar num concurso público, ou para conseguir um medicamento na rede pública de saúde, está consciente de que o interesse público está acima de qualquer pessoa, de qualquer círculo de poder, e que nem mesmo um cargo importante pode dar ao seu titular um direito a mais dentre aqueles estabelecidos para a coletividade.
Daí porque é inevitável concluir que a impessoalidade conduz à despersonalização. Despersonalizar aqui é verbo programático, presente na compreensão de que as instituições públicas não estão sujeitas ao direito de propriedade. Não há feudos. Na relação de um particular com uma autoridade, não se trata de Fulano ou Beltrano, mas dos órgãos que estes representam, seja qual for o poder constituído, e aí não deve haver espaço para favores, apenas direitos e deveres.
A despersonalização enseja novas oportunidades de que, fora das relações indivíduo/coletividade, as pessoas tenham mais liberdade para externar suas ideias, sentimentos, emoções, enfim, manifestações humanas, mais livres, justamente porque independentes das amarras de um sistema baseado em círculos de poder e dependência. Assim, a despersonalização é o caminho para a humanização da sociedade.