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Limites do exercício discricionário e a desconstrução do princípio da supremacia do interesse público.

Uma abordagem sob a perspectiva da participação popular na Administração Pública

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08/05/2017 às 13:40
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IV. Conclusão

O artigo teve o intuito de evidenciar a participação popular como meio essencial de conectividade entre a discricionariedade e o melhor interesse público afeito ao caso concreto, no processo de construção do juízo discricionário. A partir desse objetivo, desenvolveram-se reflexões, cujas conclusões podem ser sintetizadas.

Em primeiro lugar, mostrou-se a nova configuração do interesse público, cuja noção resta fundamental para a melhor compreensão da discricionariedade administrativa, uma vez que esta possui naquele seu fundamento e sua finalidade (esta, compreendida em sentido amplo).

Da nova afeição de interesse público, é desconstruída a ideia de supremacia e adotada a concepção de que o interesse público é sempre construído em cada situação concreta, o que implica, por sua vez, a conclusão de que o juízo discricionário também acompanha a mesma construção, pois não pode existir fora dos limites de seu próprio fundamento e finalidade. O princípio da supremacia do interesse público, portanto, cede em face do conceito de construção do melhor interesse público.

Disto, decorre a relevância do processo de construção do interesse público que será, outrossim, o mesmo processo de elaboração do juízo discricionário. É exatamente neste ponto que o presente artigo procurou expor a relevância da participação popular, como o meio mais legítimo para que o agir discricionário da Administração Pública possa alcançar o melhor interesse público.

De extrema relevância consignar que a participação popular ganha essa importância exatamente em razão da nova acepção de interesse público. Ao restarem positivados os diversos direitos – individuais ou coletivos – dos mais variados grupos sociais, o Estado passa a ser o grande guardião e concretizador deles. A clássica finalidade do Estado, conforme Dalmo de Abreu Dallari[16], o alcance do bem comum, sofre exatamente a mesma transformação aludida quanto ao conceito de interesse público e, neste sentido, a atuação estatal ganha maior intensidade na concretização desses direitos de seus cidadãos e não de relações havidas prioritariamente para o próprio Estado. Ou seja, mudou-se de uma visão “ex parte principi” para “ex parte populi”. Exatamente ter o Estado o grande objetivo de satisfazer os direitos de seus cidadãos, é que se justifica a intensa participação popular em todos as funções estatais, inclusive na Administração Pública, até mesmo na construção de seu juízo discricionário, o qual tradicionalmente sempre fora tido como núcleo exclusivo, insindicável e intocável da autoridade administrativa. É preciso, no entanto, rever esse posicionamento, que não mais se coaduna com a redefinição do papel do Estado Contemporâneo. 

Advém daí, também, a noção de dever fundamental do cidadão, o qual deve ser entendido como peça fundamental na construção dos modelos nucleares de atuação do Estado, seja pelo aspecto orgânico, seja pelo funcional

É sob este viés que se torna inadmissível a conclusão de que toda a teoria exposta acabaria por extinguir, em termos práticos, a discricionariedade administrativa. O que se dá é uma reestruturação do conceito de discricionariedade, que deve acompanhar a própria evolução do papel do Estado. Os juízos de oportunidade e conveniência continuam existindo, mas devem ser construídos nos moldes coerentes de uma Administração Pública Democrática. Reserva-se a opção final do administrador, mas se estabelecem procedimentos a serem observados que viabilizem uma escolha consciente e madura, por parte do administrador no cumprimento de sua função pública, coibindo-se uma decisão arbitrária. Tanto que se enfatizou, no transcorrer da exposição, que a participação popular deve se restringir à colheita de informação e subsídios para a motivação e não quanto à fase decisória.

Ressalta-se, ainda, que por meio de tal processo, viabiliza-se ainda a maior possibilidade de controle do ato discricionário, seja pela própria Administração Pública, seja pelo Poder Judiciário, tema a respeito do qual se fôssemos analisar com maior minúcia, fugiríamos do propósito inicial do trabalho.

Portanto, a efetiva participação democrática, como autêntico princípio informador do Estado e da sociedade, é a grande ponte que viabiliza a legítima conexão entre a discricionariedade e o melhor interesse público para a situação concreta, amoldando-se ao sentido contemporâneo de cidadania. Tal perspectiva torna mais próxima da realidade do cidadão a concretização das finalidades do Estado e aproxima a realidade social dos centros decisórios da Administração Pública.   


Notas

[1] Fundamento dos Direitos Humanos, texto disponível em www.iea.usp.br/artigos, acessado em 25/10/2010.

[2] Teoria Geral do Direito e do Estado, 4ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2005.

[3] A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São Paulo, Cia. das Letras, 1988.

[4] A título exemplificativo, citam-se alguns Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, que refletem a ampliação da complexidade normativa: “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos” (de 1966, ratificado em 1992), “Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” (de 1966, ratificado em 1992), “Convenção sobre a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes” (de 1984, ratificado em 1989), “Convenção sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher” (de 1979, ratificado em 2002), “Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial” (de 1965, ratificado em 1968), “Convenção sobre os Direitos da Criança” (de 1989, ratificado em 1990), “Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (de 2006, ratificado em 2008).

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[5] Tribunal Regional Federal da Quarta Região - APELAÇÃO CÍVEL Nº 2006.72.04.003887-4/SC – “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIRETO AMBIENTAL. DIREITO À MORADIA. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. DESOCUPAÇÃO FORÇADA E DEMOLIÇÃO DE MORADIA. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. POSSE ANTIGA E INDISPUTADA. AQUIESCÊNCIA DO PODER PÚBLICO. DISPONIBILIDADE DE ALTERNATIVA PARA MORADIA. TERRENO DE MARINHA. DESNECESSIDADE DE PERÍCIA JUDICIAL. PROTEÇÃO À DIGNIDADE HUMANA, DESPEJO E DEMOLIÇÃO FORÇADAS PARA PROTEÇÃO AMBIENTAL. PREVENÇÃO DE EFEITO DISCRIMINATÓRIO INDIRETO”.

[6] ALEXY, Robert, Teoria de los Derechos Fundamentales, Madrid, Centro de estudos constitucionales, 1993.

[7] Uma Teoria do Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Renovar, 2006.

[8] Discricionariedade e Controle Jurisdicional, São Paulo, Malheiros, 1992.

[9] A título de exemplificação, cita-se: art. 194, § único, VII (gestão democrática e descentralizada da Seguridade Social), art. 198, III (serviços de saúde), art. 204, II (assistência social), art. 206, VI (ensino público), art. 216, § 1º (conservação do patrimônio cultural), art. 225 (tutela do meio ambiente), etc.

[10] Atividade Administrativa e Procedimentalização, in Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005.

[11] As audiências Públicas e o Processo Administrativo Brasileiro, disponível em http://www.advcom.com.br/artigos, acessado em 26/10/2010.

[12] A Processualidade no Direito Administrativo, São Paulo, RT, 1993.

[13] Súmula 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

[14] Podem-se citar alguns dispositivos legais: artigo 39, caput, da Lei nº 8.666/93, artigo 2º, caput, da Resolução CONAMA 119/87, artigo 32, da Lei nº 9784/99, artigo 10, VI, da Lei nº 11.079/2004. 

[15] Súmula Vinculante nº 11: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

[16] Elementos de Teoria Geral do Estado, 24ª edição, São Paulo, Saraiva, 2003.

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Sobre o autor
Renato Campolino Borges

Defensor Público do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Renato Campolino. Limites do exercício discricionário e a desconstrução do princípio da supremacia do interesse público.: Uma abordagem sob a perspectiva da participação popular na Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5059, 8 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57485. Acesso em: 24 abr. 2024.

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