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Investigação criminal e Ministério Público

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30/09/2004 às 00:00
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6. Investigação criminal, Ministério Público e devido processo legal

Um último argumento merece ainda ser enfrentado. Trata-se da afirmação segundo a qual os procedimentos investigatórios levados a cabo pelo Ministério Público são inconstitucionais porque ferem o princípio do devido processo legal e as garantias daí decorrentes.

Antes de mais nada é preciso lembrar que o Constituinte conferiu aos membros do Ministério Público a garantia da independência funcional - similar à dos juizes - não apenas para a atuação profissional livre de pressões, mas também para que pudessem não acusar quando fundamento jurídico para tanto não existisse. Este aspecto da instituição ministerial representa garantia para o Estado e, principalmente, para os cidadãos.

As garantias constitucionais não podem, nem devem, ser afastadas na investigação criminal realizada por membros do Ministério Público tanto quanto na realização do inquérito policial. Isso para se dizer o mínimo, já que, como sabido, o descrédito das instituições policiais (nem sempre justo, é verdade!) tem pesado muito no juízo de justiça do cidadão comum, a ponto de conferir um plus de legitimidade ao procedimento realizado pelo Parquet (33). Mas aqui, convém citar Luís Roberto Barroso (34), segundo o qual as vicissitudes pelas quais passa a polícia devem ser tributadas menos às qualidades ostentadas pelos seus integrantes, e mais ao contexto no qual operam suas funções. Por isso, não é demais imaginar que, eventualmente, um Ministério Público transformado em polícia possa conduzir os seus membros a experimentarem semelhantes contingências e demonstrações de fragilidade moral. Não se fala, portanto, da qualidade intrínseca das instituições em tela ou dos seus membros, e mais do lugar, mais seguro ou mais suscetível aos apelos da vantagem injustificável, no qual necessariamente transitam durante o desenrolar de suas atividades. Aqui, sim, a real compreensão do problema robustece, ao contrário de enfraquecer, a solução defendida neste texto. Se a sedução é real, e tão real que as próprias forças armadas são reticentes quanto à utilização de seu corpo, no campo da segurança pública, em vista dos riscos que tal atividade oferece à integridade moral da tropa, melhor que as interferências recíprocas entre os órgãos estatais, o intercruzamento de objetivos, a cooperação necessária, ajustem as condutas dos agentes públicos e a atuação dos órgãos, tudo com o fito de melhor facilitar a vida em sociedade e a proteção dos valores constitucionalmente tutelados. Sem se transformar em polícia, portanto, porque não é disso que se trata, é justificável, à luz de argumentos racionais deduzidos do texto constitucional, a ação investigatória do Ministério Público, em particular nos casos especialíssimos e mesmo naqueles nos quais, diante do material probatório já colacionado, em face do encaminhamento por outros órgãos públicos ou de investigação de outra natureza que não criminal (v.g, improbidade administrativa ou matéria ambiental ou vinculada ao direito do consumidor ou da criança e adolescente ou ao idoso, etc.) não se justifique a instauração de inquérito policial, eis que singelas ou poucas, emboras complexas, diligências complementares são suficientes para a formação da convicção a propósito da necessidade ou não da propositura da ação penal.

A possibilidade de desvirtuamento da competência investigatória por membros do Ministério Público e conseqüente lesão a direitos e garantias fundamentais não justifica a proscrição de seu exercício pela simples razão de que falhas humanas podem acontecer e acontecem no ambiente de qualquer instituição. As distorções devem ser prevenidas, corrigidas ou punidas no plano concreto, seja internamente através de instâncias superiores ou fiscalizadoras, seja externamente através da atividade jurisdicional em cada caso. O excesso no manejo de competências constitucionalmente assinaladas, expressamente ou não, é um risco inerente ao exercício das funções públicas, cuja gravidade não justifica a irracionalidade do arranjo hermenêutico limitado, perigoso e materializador do monopólio titularizado por determinado órgão. Ao contrário, trata-se antes de, aceitando a interpretação mais condizente com os desafios projetados em nosso tempo e, por isso mesmo, ajustada com as démarches por essa temporalidade requeridas, reclamar a satisfação dos direitos do homem no sítio investigatório. Neste ponto avulta a importância dos Procuradores-Gerais, autoridades necessárias para, sem risco de quebra do princípio constitucional da independência funcional, condensar os parâmetros norteadores da atividade, tudo em prol da efetivação de outro princípio constitucional por vezes esquecido: - o determinante da unidade do Ministério Público. A unidade, para além do sentido clássico, neste novo momento constitucional, haverá de significar também o delinear de parâmetros mínimos necessários para a ação ministerial, ação pautada, antes de tudo, pela obediência aos cânones da legalidade e, também, da racionalidade controlável e justificável, tudo no contexto de uma coerência consensual e coletivamente construída no âmbito de cada carreira, a partir da provocação dos Procuradores-Gerais. A idéia da independência funcional não prescinde do sentido, das diretrizes necessárias para dotar a instituição de coerência, ainda que consensualmente construída. O Ministério Público haverá de agir como orquestra e não como coletivo despido de organicidade no qual, sem regente, cada um toca a música de sua predileção com o instrumento que bem entender. Avulta, igualmente, neste caso, o papel do legislador, que poderá também, a partir da liberdade de conformação que lhe é própria, e comprometido com a integral realização da Constituição, dispor sobre o assunto no momento mais oportuno. Fala-se, aqui, de meios para melhor definir os limites da investigação levada a termo pela autoridade ministerial, especialmente para ajustá-los aos demais valores, regras e princípios dotados de dignidade constitucional. Está-se, aqui, todavia no campo das medidas cuja ausência não importa, em absoluto, a supressão ou a paralisação da eficácia do conjugado normativo que, corretamente interpretado, confere ao Parquet atribuição de natureza investigatória.

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Afinal, a apuração das infrações penais, antes de constituir atribuição deste ou daquele órgão público, reveste-se da característica inafastável de matéria de interesse coletivo que deve ser eficazmente concretizado. Isso reclama frentes de trabalho múltiplas e não a compressão, mediante este ou aquele artifício doutrinário, da importante atividade de combate à criminalidade. Tal entendimento guarda consonância com a diretiva constitucional da colaboração entre as entidades estatais, repise-se, razão a mais para não serem repelidas as diligências investigatórias do Ministério Público.

Sabe-se que a investigação criminal preliminar deve servir como um "filtro processual" através do qual somente passarão para o plano jurídico-processual as condutas revestidas de evidente tipicidade. A eficácia desse filtro é garantia para os cidadãos, que não terão contra si promovidas ações descabidas, e também para o sistema judicial, que não desperdiçará recursos e esforço em processos natimortos. O bom funcionamento deste sistema requer amplo conhecimento, por parte dos encarregados da atividade investigatória, do ordenamento jurídico, especialmente dos princípios constitucionais, e sensibilidade quanto ao problema do abarrotamento dos órgãos judiciais. Este é mais um motivo para se creditar ao Ministério Público a realização direta e pontual de diligências investigatórias.


7. Conclusão

Confiar, em função de uma operação hermenêutica singela, o monopólio da investigação criminal preliminar a um único órgão, no caso a polícia judiciária, equivale a colocar uma pá de cal nos avanços que a cooperação e, em determinadas circunstâncias, o compartilhamento de tarefas tem possibilitado. O país tem avançado, ninguém pode negar. A instituição ministerial tem acertado mais do que errado. As eventuais falhas podem ser corrigidas pela ação concertada dos membros do Ministério Público, ou em virtude da manifestação do legislador. O modelo, todavia, haverá de ser preservado.

A Constituição de 1988 desenha o novo Estado brasileiro a partir de um nítido perfil democrático, desafiando, para o que aqui interessa, a correta compreensão das competências conferidas aos órgãos encarregados de sua defesa. Neste caso, o modelo adotado não é mais o das atividades radicalmente apartadas, mas, antes, o da cooperação, o das interferências, o da interpenetração e, mesmo, em determinados casos, o do compartilhamento. Da leitura pertinente da Constituição vigente, operacionalizada por uma teoria constitucionalmente adequada ao nosso espaço-tempo, infere-se, inegavelmente, a possibilidade, em hipóteses justificadas, pontuais, e transparentes à luz da razão pública, das investigações de natureza criminal, conduzidas pelo Ministério Público. Afinal, o inquérito policial, este sim instrumento exclusivo da autoridade policial, não consome todas as hipóteses de investigação. Trata-se, com efeito, de apenas uma delas, sendo certo que as investigações, mesmo com repercussão criminal, podem ser desenvolvidas das mais variadas formas no contexto da normativa constitucional vigente. O direito compreendido como integridade haverá de reconhecer o fato e dele extrair a inevitável conseqüência: - sim, o Ministério Público, autorizado pela Constituição Federal, pode, quando haja fundamento para tanto, conduzir investigações criminais. A discussão que haverá de ser travada, portanto, não envolve a possibilidade, mas, sim, os limites da atividade.


Agradeço à advogada Alessandra Ferreira Martins, responsável pelo Departamento de Pesquisa do Escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados, pela preciosa colaboração no processo de elaboração do presente texto.


NOTAS

  1. Cf. BARROSO, Luís Roberto. Investigação pelo Ministério Público. Argumentos contrários e a favor. A síntese possível e necessária. Parecer disponível na Internet em: <http://www.mp.rs.gov.br/hmpage/homepage2.nsf/pages/spi_investigadireta2>. Acesso em: 23/08/2004; STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003; LOPES JR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no Processo penal, 2.º ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Controle externo da atividade policial pelo Ministério Público. Curitiba: Juruá Editora, 2004; ROXIN, Claus. Posición jurídica y tareas futuras del ministerio publico In MAIER, Julio B. J. El Ministerio Público en el Processo Penal. Buenos Aires: Ad hoc s.r.l., 2000, p. 37-57; MESQUITA, Paulo Dá. Notas sobre inquérito penal, polícias e Estado de Direito Democrático (suscitadas por uma proposta de lei dita de organização de investigação criminal). Revista do Ministério Público, Lisboa, abr./jun. 2000, p. 137-149; CHOUKR, Fauzi Hassan. O relacionamento entre o Ministério Público e a polícia judiciária no processo penal acusatório. Disponível na Internet em: www.mundojuridico.adv.br; MOREIRA, Rômulo de Andrade. Ministério Público e poder investigatório criminal. Disponível na Internet em: jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=1055. Acesso em 23/08/2004.
  2. RECURSO ESPECIAL n. 331.903-DF (2001/00844503) Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI. Julgado em 25 de maio de 2004. Ementa: RESP - PENAL E PROCESSO PENAL - PODER INVESTIGATIVO DO MINISTÉRIO PÚBLICO - PROVAS ILÍCITAS - INOCORRÊNCIA - TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL - IMPOSSIBILIDADE. - A questão acerca da possibilidade do Ministério Público desenvolver atividade investigatória objetivando colher elementos de prova que subsidiem a instauração de futura ação penal, é tema incontroverso perante esta e.g. Turma. Como se sabe, a Constituição Federal, em seu art. 129, I, atribui, privativamente, ao Ministério Público promover a ação penal pública. Essa atividade depende, para o seu efetivo exercício, da colheita de elementos que demonstrem a certeza da existência do crime e indícios de que o denunciado é o seu autor. Entender-se que a investigação desses fatos é atribuição exclusiva da polícia judiciária, seria incorrer-se em impropriedade, já que o titular da Ação é o Órgão Ministerial. Cabe, portanto, a este, o exame da necessidade ou não de novas colheitas de provas, uma vez que, tratando-se o inquérito de peça meramente informativa, pode o MP entendê-la dispensável na medida em que detenha informações suficientes para a propositura da ação penal. " (g. n.) Cf. RECURSO ORDINÁRIO EM HC n.º 15.507-PR (2003/0232733-3) Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA. Julgado em 28 de abril de 2004 e RECURSO ORDINÁRIO EM HC n.º 12.871-SP (2002/0058385-0). Rel. Min. LAURITA VAZ. Julgado em 13 de abril de 2004.
  3. RHC 81.326-DF. RELATOR : MIN. NELSON JOBIM. EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. MINISTÉRIO PÚBLICO. INQUÉRITO ADMINISTRATIVO. NÚCLEO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL/DF. PORTARIA. PUBLICIDADE. ATOS DE INVESTIGAÇÃO. INQUIRIÇÃO. ILEGITIMIDADE. 1. PORTARIA. PUBLICIDADE .A Portaria que criou o Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial no âmbito do Ministério Público do Distrito Federal, no que tange a publicidade, não foi examinada no STJ. Enfrentar a matéria neste Tribunal ensejaria supressão de instância. Precedentes. 2. INQUIRIÇÃO DE AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. ILEGITIMIDADE. A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligência nesse sentido à autoridade policial. Precedentes. O recorrente é delegado de polícia e, portanto, autoridade administrativa. Seus atos estão sujeitos aos órgãos hierárquicos próprios da Corporação, Chefia de Polícia, Corregedoria. Recurso conhecido e provido. Informativo STF n.º 314.
  4. Cf. MS 21729 / DF (DJ 19/10/2001) Rel. Min. MARCO AURÉLIO; HC 75769-MG STF (DJ 28/11/97) Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI; HC 77371-SP STF (DJ 23/10/98) Rel. Min. NELSON JOBIM; HC 80948 / ES (DJ 19/12/2001) Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA; HC 81303 / SP (DJ 23/08/2002) Rel. Min. ELLEN GRACIE.
  5. "De um lado, a compreensão do significado como o conteúdo conceptual de um texto pressupõe a existência de um significado intrínseco que independa do uso ou da interpretação. Isso, porém, não ocorre, pois o significado não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e interpretação, como comprovam as modificações de sentidos dos termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir a um texto legal. Por outro lado, a concepção que aproxima o significado da intenção do legislador pressupõe a existência de um autor determinado e de uma vontade unívoca fundadora do texto. Isso, no entanto, também não sucede, pois o processo legislativo qualifica-se justamente como um processo complexo que não se submete a um autor individual, nem a uma vontade específica. Sendo assim, a interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas como um ato de decisão que constitui a significação e os sentidos de um texto." (g. n.) ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 23.
  6. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 14º ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 494.
  7. STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 69-70.
  8. É de transcrever aqui apontamento particularmente feliz de Barbosa Moreira (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Poder Judiciário e a efetividade da nova Constituição. Revista Forense 304/152) sobre a postura dos juristas que operam interpretação com olhos voltados para o passado. "Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se o véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica".
  9. O Comitê de Ministros do Conselho da Europa aprovou e encaminhou aos Estados Membros a Recomendação – REC (2000)19 – sobre o papel do Ministério Público no sistema de justiça penal, que dispõe: "1. O ‘Ministério Público’ é uma autoridade pública encarregada de zelar, em nome da sociedade e no interesse público, pela aplicação da lei, quando o incumprimento da mesma implicar sanção penal, tendo em consideração os direitos individuais e a necessária eficácia do sistema de justiça penal. 2. Em todos os sistemas de justiça penal, o Ministério Público: - decide se deve iniciar ou prosseguir um procedimento criminal; - exerce a ação penal; - pode recorrer de todas ou algumas decisões. 3. Em determinados sistemas de justiça penal, o Ministério Público também: aplica a política criminal nacional, adaptando-a, quando for o caso disso, às realidades regionais e locais; - conduz , dirige ou fiscaliza o inquérito; (...)16. O Ministério Público deve, em qualquer caso, estar em condições de proceder criminalmente, sem obstrução, contra agentes do estado, por crimes por estes cometidos, particularmente de corrupção, abuso de poder, violação grave dos direitos humanos e outros crimes reconhecidos pelo direito internacional." (g. n.)
  10. LOPES JR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal, 2.º ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 85.
  11. STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano, op. cit., p. 67.
  12. A concepção de imparcialidade merece cuidados e deve afastar posições ingênuas a respeito da natureza humana. Neste sentido, a imparcialidade do Ministério Público, e de outros órgãos afins, deve ser compreendida em cotejo com a legalidade inerente às funções públicas. Por isso, alegações de impedimento de membros do Ministério Público nas ações em que realizaram diligências não são procedentes na jurisprudência pátria. Do Superior Tribunal de Justiça colhe-se o julgado: "RHC 8106/DF (1998/0089201-0). Rel. Min. GILSON DIPP. Ementa: CRIMINAL. RHC. ABUSO DE AUTORIDADE. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. COLHEITA DE ELEMENTOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. LIMINAR CASSADA. RECURSO DESPROVIDO. Tem-se como válidos os atos investigatórios realizados pelo Ministério Público, que pode requisitar esclarecimentos ou diligenciar diretamente, visando à instrução de seus procedimentos administrativos, para fins de oferecimento da peça acusatória. A simples participação na fase investigatória, coletando elementos para o oferecimento da denúncia, não incompatibiliza o Representante do Parquet para a proposição da ação penal." (DJ 04/06/2001)
  13. Lei 8137 de 1990: "Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
    I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; (...)
    V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. (...)
    Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V."
  14. Lei 9613 de 1998 : "Art. 14. É criado, no âmbito do Ministério da Fazenda, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta Lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades. (...)
    § 3º O COAF poderá requerer aos órgãos da Administração Pública as informações cadastrais bancárias e financeiras de pessoas envolvidas em atividades suspeitas.
    Art. 15. O COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito."
  15. DL 7661 de 1945: "Art. 103. Nas vinte o quatro horas seguintes ao vencimento do dobro do prazo marcado pelo juiz para os credores declararem os seus créditos (artigo 14, parágrafo único, n° V) o síndico apresentará em cartório, em duas vias, exposição circunstanciada, na qual, considerando as causas da falência, o procedimento do devedor, antes e depois da sentença declaratória, e outros elementos ponderáveis, especificará, se houver, os atos que constituem crime falimentar, indicando os responsáveis e, em relação a cada um, os dispositivos penais aplicáveis.
    § 1° Essa exposição, instruída com o laudo do perito encarregado do exame da escrituração do falido (art. 63, n° V), e quaisquer documentos, concluirá, se for caso, pelo requerimento de inquérito, exames e diligência destinados à apuração de fatos ou circunstâncias que possam servir de fundamento à ação penal.
    § 2º As primeiras vias da exposição e do laudo e os documentos formarão os autos do inquérito judicial e as segundas vias serão juntas aos autos da falência." (g. n.)
  16. Regimento Interno do STF: "Art. 42. O Presidente responde pela polícia do Tribunal. No exercício dessa atribuição pode requisitar o auxílio de outras autoridades, quando necessário.
    Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
    Art. 44. A polícia das sessões e das audiências compete ao seu Presidente.
    Art. 45. Os inquéritos administrativos serão realizados consoante as normas próprias."
  17. Conferir artigo 58, § 3.º da Constituição Federal: "As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores." (g. n.)
  18. Lei Complementar 35 de 1979: "Art. 33 - São prerrogativas do magistrado: (...)
    IV - não estar sujeito a notificação ou a intimação para comparecimento, salvo se expedida por autoridade judicial; (...)
    Parágrafo único - Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação."
  19. Não só no Brasil, como também em outros países, por exemplo, os europeus que adotaram a Recomendação REC (2000)19, que dispõe: "15. A fim de favorecer a equidade e eficácia da política criminal, o MP deve cooperar com departamentos e instituições do Estado, na medida em que isso esteja de acordo com a lei. (...) 23. Os Estados onde a polícia é independente do Ministério Público devem tomar todas as medidas para garantir que haja uma cooperação adequada e eficaz entre o Ministério Público e a Polícia." (g. n.)
  20. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. (trad. Luís Afonso Heck). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 369.
  21. HESSE, Konrad; op. cit., p. 57.
  22. Ilustra-se com o seguinte julgado do STJ:RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS Nº 13.728 - SP (2002⁄0161350-0) Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO Julgado em 15 de abril de 2004. EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGALIDADE.
    1."1. O respeito aos bens jurídicos protegidos pela norma penal é, primariamente, interesse de toda a coletividade, sendo manifesta a legitimidade do Poder do Estado para a imposição da resposta penal, cuja efetividade atende a uma necessidade social.
    2. Daí por que a ação penal é pública e atribuída ao Ministério Público, como uma de suas causas de existência. Deve a autoridade policial agir de ofício. Qualquer do povo pode prender em flagrante. É dever de toda e qualquer autoridade comunicar o crime de que tenha ciência no exercício de suas funções. Dispõe significativamente o artigo 144 da Constituição da República que ´A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio´
    3. Não é, portanto, da índole do direito penal a feudalização da investigação criminal na Polícia e a sua exclusão do Ministério Público.
    Tal poder investigatório, independentemente de regra expressa específica, é manifestação da própria natureza do direito penal, da qual não se pode dissociar a da instituição do Ministério Público, titular da ação penal pública, a quem foi instrumentalmente ordenada a Polícia na apuração das infrações penais, ambos sob o controle externo do Poder Judiciário, em obséquio do interesse social e da proteção dos direitos da pessoa humana." (g. n.)
  23. Neste sentido conferir STRECK e FELDENS: "Logicamente, ao referir-se à ‘exclusividade’ da polícia Federal para exercer funções ‘de polícia judiciária da União’, o que fez a Constituição foi, tão-somente, delimitar as atribuições entre as diversas polícias (federal, rodoviária, ferroviária, civil e militar), razão pela qual reservou, para cada uma delas, um parágrafo dentro do mesmo art. 144. daí porque, se alguma conclusão de caráter exclusivista pode-se retirar do dispositivo constitucional seria a de que não cabe à Polícia Civil ‘apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas’ (art. 144, §1º, I), pois que, no espectro da ‘polícia judiciária’, tal atribuição está reservada à Polícia Federal." Op. cit., p. 93.
  24. Lembra-se aqui os objetivos do Conselho Nacional de Segurança Pública estabelecidos no Decreto 2.169 de 04 de março de 1997:
    "Art. 1 º O Conselho Nacional de Segurança Pública - CONASP, órgão colegiado de cooperação técnica entre a União, os Estados e o Distrito Federal no combate à criminalidade, com sede no Distrito Federal, subordinado diretamente ao Ministro da Justiça, tem por finalidade:
    I - formular a Política Nacional de Segurança Pública; (...)
    IV - desenvolver estudos e ações visando a aumentar a eficiência dos serviços policiais e promover o intercâmbio de experiências;
    V - estudar, analisar e sugerir alterações na legislação pertinente;
    VI - promover a necessária integração entre órgãos de segurança pública federais e estaduais." (g. n.)
  25. "Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;"
  26. "Art. 5.º, LIX – será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;"
  27. Artigo 129, inciso IX da Constituição Federal de 1988.
  28. "Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:
    I - notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no caso de ausência injustificada;
    II - requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta;
    III - requisitar da Administração Pública serviços temporários de seus servidores e meios materiais necessários para a realização de atividades específicas;
    IV - requisitar informações e documentos a entidades privadas;
    V - realizar inspeções e diligências investigatórias;
    VI - ter livre acesso a qualquer local público ou privado, respeitadas as normas constitucionais pertinentes à inviolabilidade do domicílio;
    VII - expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar;
    VIII - ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública;
    IX - requisitar o auxílio de força policial."
  29. "Se o MP é o titular constitucional da ação penal pública – atividade fim -, obviamente deve ter ao seu alcance os meios necessários para lograr com mais efetividade esse fim, de modo que a investigação preliminar, como atividade instrumental e de meio, deverá estar ao seu mando." LOPES JR, Aury, op. cit., p. 264.
  30. Cf. LIMA, Marcellus Polastri, Ministério Público e persecução criminal, 3. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002; MAZZILI, Hugo Nigro, Regime Jurídico do Ministério Público, 2ª Ed., São Paulo: Saraiva, 1995; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, 14. ed., São Paulo: Atlas, 2003; STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003; LOPES JR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal, 2.º ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
  31. "Art. 200. As funções do Ministério Público previstas nesta Lei serão exercidas nos termos da respectiva lei orgânica.
    Art. 201. Compete ao Ministério Público: (...)
    II - promover e acompanhar os procedimentos relativos às infrações atribuídas a adolescentes; (...)
    VI - instaurar procedimentos administrativos e, para instruí-los:
    expedir notificações para colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela polícia civil ou militar;
    a) requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administração direta ou indireta, bem como promover inspeções e diligências investigatórias;
    b) requisitar informações e documentos a particulares e instituições privadas;
    VII - instaurar sindicâncias, requisitar diligências investigatórias e determinar a instauração de inquérito policial, para apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção à infância e à juventude;"
  32. "Art. 74. Compete ao Ministério Público: (...)
    V – instaurar procedimento administrativo e, para instruí-lo:
    a) expedir notificações, colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado da pessoa notificada, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar;
    b) requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administração direta e indireta, bem como promover inspeções e diligências investigatórias;
    c) requisitar informações e documentos particulares de instituições privadas;
    VI – instaurar sindicâncias, requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, para a apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção ao idoso;"
  33. A confiança da comunidade na instituição ministerial é verbalizada com a autoridade de Paulo Bonavides: "Sem embargo de quantos obstáculos lhe foram postos pelo Executivo ao legítimo exercício de seu papel essencial à conservação do sistema constitucional, a instituição vanguardista do combate à corrupção cresceu, conforme já mostramos, na estima dos cidadãos, na opinião comum, na fé pública. Cresceu como nenhuma outra neste País." In: Os dois Ministérios Públicos do Brasil: o da Constituição e o do Governo. Revista Latino-americana de estudos constitucionais, n.º 1, jan./jun. 2003, p. 58.
  34. BARROSO, Luís Roberto. Investigação pelo Ministério Público. Argumentos contrários e a favor. A síntese possível e necessária. Parecer disponível na Internet em: <http://www.mp.rs.gov.br/hmpage/homepage2.nsf/pages/spi_investigadireta2>. Acesso em: 23/08/2004.
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Sobre o autor
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Investigação criminal e Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 450, 30 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5760. Acesso em: 29 mar. 2024.

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