A Fazenda Pública, na sua notória ânsia arrecadatória, por vezes, acaba por ferir direitos constitucionalmente garantidos aos contribuintes, ficando, em várias ocasiões, à mercê das vontades (leia-se, arbitrariedades) fazendárias.
Deveremos, no momento, nos ater na negativa de AIDF – Autorização para Impressão de Documentos Fiscais, sob o fundamento (fazendário) de supostos débitos em nome do contribuinte requisitante da referida autorização.
Cumpre salientar que as empresas, no exercício de suas atividades econômicas, estão obrigadas a emitir nota fiscal dos serviços que prestam ou vendas que efetuem, nos termos da legislação vigente. Assim, diante de tal dever, necessário se faz o requerimento, perante a autoridade fiscal competente, seja ela municipal ou estadual, da concessão da citada AIDF.
Contudo, em alguns casos, as autoridades competentes se recusam a emitir a almejada autorização, sob o argumento de que estaria o contribuinte em débito ou em divergência acerca de tributos já arrecadados.
O ato abusivo e arbitrário configura-se manifestamente ilegal e inconstitucional, porquanto implica óbice ao exercício regular das atividades econômicas dos contribuintes.
Com efeito, a recusa de autorizar a impressão de novos blocos de nota fiscal evidencia-se como uma sanção política, na medida em que o contribuinte necessita emitir nota fiscal para o regular desenvolvimento de seus negócios. Isso implica restrições a direitos constitucionais que lhe são assegurados, como o direito ao livre exercício de atividade econômica, ao devido processo legal e à ampla defesa, sendo, pois, uma forma indireta de obrigar o contribuinte ao pagamento do tributo, afigurando-se, por conseguinte, via oblíqua de restringir as atividades enquanto sob fiscalização.
As sanções políticas são flagrantemente inconstitucionais, posto que, com fins de garantir a arrecadação tributária, implicam restrição a direitos assegurados legalmente. Nesse sentido, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ao analisar a questão, adotou posição repelindo qualquer tipo de sanção política. As Súmulas 70, 323 e 547, do referido Tribunal, determinam serem ilícitos quaisquer procedimentos coercitivos para pagamento de tributo. Confira-se:
"Súmula 70 – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para a cobrança de tributo".
"Súmula 323 – É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributo".
"Súmula 547 – Não é lícito à Autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais".
Insta salientar que a autoridade fiscal tem à sua disposição, diante da inadimplência do devedor, os meios legais para compeli-lo ao adimplemento da obrigação. De fato, na medida em que tal prática ofende direitos constitucionalmente assegurados ao contribuinte, deve ser repelida pelo Judiciário, mediante a impetração, por parte do contribuinte lesado, do competente Mandado de Segurança.
De outro norte, diante da essencialidade das Notas Fiscais para o exercício regular das atividades do contribuinte, a negativa de Autorização de Impressão de Documentos Fiscais (AIDF) pela Autoridade Fiscal tem constituído violação à garantia do contribuinte, constitucionalmente assegurada, qual seja, o direito de exercer livremente atividade econômica lícita, amparado tanto no art. 1º, IV, quanto nos arts. 5º, XIII e 170, da Carta Magna.
O livre exercício de qualquer trabalho constitui, nos termos do art. 1º, inciso IV, da Constituição Federal, um dos fundamentos da República Federativa Brasileira:
"Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;" (g.n.)
No mesmo sentido, o art. 5º, inciso XIII, da CF/88 estabelece ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.
Percebe-se que este dispositivo consagra a liberdade do exercício profissional entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão, cogitando como única condição a capacitação profissional.
Vale dizer, dessa forma, só existir uma única condição exigível validamente para o exercício de atividades profissionais, qual seja, estar habilitado tecnicamente. Desse modo, para que determinado contribuinte possa exercer determinada profissão, basta que ele tenha a capacitação exigida por lei como suficiente, não sendo possível a imposição de qualquer outra condição.
O Estatuto Maior do País consagra, ainda, o princípio constitucional da liberdade de exercício de atividade econômica, em seu parágrafo único do art. 170, ao dispor que "é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo os casos previstos em lei".
A liberdade de exercício de atividade econômica consagrada neste dispositivo é a mais ampla possível, não comportando exigência alguma, à exceção daquelas expressamente previstas em lei. Isso porque, mesmo a ressalva feita ao final do dispositivo, não restringe a liberdade conferida pelo dispositivo, uma vez que se refere apenas a certas atividades que, por questão de segurança, ficam a depender da autorização estatal, como, por exemplo, a atividade bancária, a fabricação e comercialização de determinadas armas.
Assim, mesmo o contribuinte mais reincidente em violações à lei tributária não pode ser proibido de exercer livremente suas atividades econômicas; mesmo aquele que tenha sido condenado criminalmente por sonegação fiscal tem o direito de continuar exercendo o comércio, uma vez que a lei não prevê para esse crime a pena de proibição do exercício do comércio.
Hugo de Brito Machado [1] esclarece:
"Uma coisa é a ilicitude inerente a certa atividade cujo exercício é proibido pelo ordenamento jurídico. Outra, bem diversa, é a ilicitude na qual consiste o descumprimento da obrigação tributária. Mesmo incorrendo nesta última, quem exercita atividade econômica continua amparado pela garantia constitucional, cabendo ao Fisco a utilização dos meios que a ordem jurídica oferece para cobrar o crédito tributário constituído, mediante a ação de execução fiscal." (g.n.)
Assim, filio-me ao entendimento de que o livre exercício de atividade econômica, em razão dos dispositivos constitucionais citados, é inquestionavelmente inviolável, não podendo, pois, ser restringido pela negativa de autorização para impressão de novos documentos fiscais, essenciais ao seu regular funcionamento.
A citada negativa para concessão de AIDF implica, ainda, ofensa ao direito de todo e qualquer contribuinte questionar pendência fiscal que haja em seu nome, seja no âmbito administrativo ou na esfera judicial. Tal ato viola abertamente o princípio do devido processo legal, insculpido no art. 5º, incisos LV e LIV da CF/88, relembre-se:
"Art. 5º.(...)
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;"
Desta forma, existindo procedimentos legalmente previstos para a devida cobrança do crédito tributário, que, inclusive, já possui suficientes garantias e privilégios (art. 183 a 193, do CTN), é vedado à Administração Pública a utilização de outros mecanismos neste mister, mormente de vias indiretas, não previstas em lei. De fato, se o Estado já dispõe de um meio eficaz e idôneo para a exigência da suas dívidas, que é a execução fiscal prevista pela Lei 6830/80, não é lícito se valha de outras formas, principalmente se inconstitucionais, para satisfazer seu propósito.
Assim, está a Autoridade Fiscal, por vias transversas, procedendo à cobrança de tributo sem o devido processo legal, pretendendo, via oblíqua, compeli-la a regularizar os tributos supostamente devidos ao Erário, em flagrante violação à ampla defesa e ao contraditório.
Patente não estarmos fazendo apologia à sonegação fiscal, contudo, não podemos coadunar com as abusividades cometidas pela Administração Pública que, insistentemente, viola os direitos constitucionais garantidos aos contribuintes, com o fito de arrecadar, por vias oblíquas, os tributos supostamente devidos.
Notas
1Sanções Políticas no Direito Tributário. In Revista Dialética de Direito Tributário, n.º 30, Dialética, São Paulo.