Como nossos pais: o retorno ao estado de exceção criado por nossas próprias antinomias políticas

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Uma análise dos problemas político-jurídico que vivemos a partir da sua conexão com as músicas de Belchior.


 

As músicas de Belchior sempre deixaram intrinsecamente um caráter de busca da liberdade de uma geração reprimida por um Estado de exceção, onde direitos e garantias foram suprimidos e, por conseguinte, o medo tomava conta daqueles que pensavam ideologicamente diferente. Belchior foi apenas um dos vários outros cantores da década de 70 da música popular brasileira que criticou em suas letras a sociedade vivida e a preocupação com futuro, o que fez com muito esmero e brilhantismo.

Em uma de suas músicas, Belchior exclama que: “a minha dor é perceber apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” [3]. Tal explanação compactuava com um pensamento, de uma parte da geração, que estava com anseio de liberdade e efetividade plena dos direitos civis, o que era impedido pelo Estado.

Tal contextualização precisa ser feita, pois em 1976, ano de lançamento de tal música, o Brasil passava por uma ditadura que mitigava a liberdade de expressão nas rádios, nos jornais, na cultura etc. Destarte, os músicos se desdobravam para burlar a censura da ditadura em suas letras, para que, com ambiguidades e metáforas, pudessem para criticar o detentor do poder da época. Assim, Belchior promoveu a sua crítica a uma grande parcela da sociedade que viviam no passado, como os seus pais, já que nada faziam contra aquele estado de coisas que se impunha.

Na época do referido compositor, vivia-se o Estado da opinião imposta, o que segundo Paulo Bonavides [4] afirma, ocorre quando a“(...) opinião, enfim, organizada e que traduz, ao exprimir-se, a ideologia do partido único, instrumento da ditadura totalitária.” Daí surge o objetivo de Belchior ao falar sobre os anseios de uma sociedade reprimida em sua época.

Passados uma série de anos, podemos ver estas mesmas situações hoje ocorrendo, já que estamos novamente vivendo “como nossos pais.” Mas esta crítica social feita a mais de 40 anos por Belchior em suas letras, pode estar se repetindo novamente no atual momento do Brasil? Pois bem, explica-se. É notório que o Brasil vive nos últimos anos um turbilhão de escândalos de corrupção e nascimentos de polos efervescentes de antagonismos ideológicos na opinião pública.

Define a opinião pública Alfred Sauvy [5] como “um árbitro, uma consciência, diremos que quase um tribunal desprovido de poder jurídico, mas receado. É o foro interior de uma nação. A opinião pública, esse poder anônimo, é uma força política e essa força não foi prevista por nenhuma constituição.” Com efeito a sociedade responde ao que é colocado por suas autoridades, ou seja, vivia-se um período de repressão, com restrição de liberdades, sendo que a opinião pública era sobrepujada pela opinião do Estado, o que leva a Belchior gritar por liberdade, só que de forma metafórica em suas obras.

A isso podemos comparar o atual momento vivido no Brasil, nada mais que é uma reação do povo as atitudes do Estado, onde a opinião pública vem sendo controlada pelo interesse, não mais do Estado somente e, também, de uma parcela da sociedade de busca o retorno ao controle estatal. Tais atitudes acabam por fomentar um Estado policial, promovido pela mídia e pela própria máquina estatal.

Mas como essas reações políticas podem virar fundamentos desenfreados, voltado até em discursos? É possível ver isso em opiniões odiosas em redes sociais, de pessoas para com as outras pelo simples fato de pensar diferente politicamente, o que tem levado à separação da convivência social de quem pensa diferente. É perceptível tais atos também pelo afã de vingança que ocorre em certas atuações públicas, em todas as esferas e poderes, demonstrando a volta deste estado de exceção. Não é mais possível a realização do pleno direito de manifestação, de greve, de publicidade dos atos públicos, entre outros, e também querem arruinar certas associações para enfraquecer suas atuações. Ou seja, o retorno a como viviam os nossos pais.

Belchior criticava em sua época este tipo de repressão, que era colocada pelo Estado para com a sociedade com o intuito de promover o seu policiamento, sua vigília, sua condução. Atualmente vemos a mesma repressão, mas pela incivilidade, pública ou privada, que se criou ao lidar com a opinião alheia ao se tratar de política. Muros ideológicos impedem o diálogo e catapultam o bom senso nestes dias, como repetição de vários outros momentos na recente história do Brasil.

O referido cantor em seus versos exprimi que “o que há algum tempo era jovem novo, hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer” [6]. Esta é clara crítica ao Estado aonde se encontravam jovens de uma geração sem perspectivas plenas para um futuro, onde se reproduzia aquela atitude excessiva estatal, entretanto, além desse anseio, podemos ver sua a reflexão sobre a necessidade de se analisar o passado para rejuvenescer o presente, para termos um futuro onde não sejamos “como os nossos pais”.

Ao analisamos o atual momento civilizatório de indiferenças políticas ideológicas, será que conseguimos rejuvenescer aprendendo com o passado? Essa que é a questão a analisar, já que temos um momento de tantas opiniões políticas enraizadas pela simples repetição de ideias prontas, sejam públicas ou privadas, que sequer se pensam no que se deve aprender com o passado para evoluirmos para o futuro. Cogita-se por alguns a volta da ditadura militar, pois para estes só assim se pode promover ‘ordem’ em um país que estar em frangalhos moralmente, devido aos incessantes casos de corrupção que envolvem políticos. Ao analisarmos esse saudosismo a ditadura, podemos novamente nos remeter a obra de Belchior, onde este descreve que das “lágrimas dos jovens podem renascer um mal antigo.” [7]

Obviamente ao se tratar de um povo deve-se esperar as ideias mais singulares uma das outras, ou seja, mais um motivo para convergência comum em prol da sociedade. Mas seria possível isso? Esta ideia é contraditória? Não, ao analisamos a sociedade temos que ver que apesar de sua pluralidade, a mesma parece sempre buscar o bem comum de todos. Bonavides, por exemplo, descreve a necessidade finalística quando conceitua que “o povo é compreendido como toda a continuidade do elemento humano, projetado historicamente no decurso de várias gerações e dotado de valores e aspirações”[8].

O autor supracitado compreende que a continuidade do elemento humano, se inspirando em discursos de várias gerações deve servir de inspiração para o futuro da própria sociedade, deve formar um objetivo, finalidade ou bem comum social. Uma ideia que Belchior, de certa forma, traz em dos seus versos, já citados nesse texto, da primordialidade de “que precisamos rejuvenescer”.

Belchior possuía conflitos de sua alma ferida pela censura Estatal, pela indiferença destinada à sua cidadania e pelas adversidades emocionais que todos de sua época sofriam, independente de classe social. Mas seu grito que poderia ficar inerente só a sua geração, faz-se presente até hoje e continuará a ecoar por muito, já que o seu pensamento parece estar sempre atual.

Dessarte, ao analisamos o atual momento de conflito entre pessoas por questões políticas, ideológicas, estatais, sobre liberdades, sobre direitos, parecem importam num perfeito encaixe ao que este derramava em suas músicas, da necessidade de batalharmos contra as exceções, as arbitrariedades, as ofensas, a barbárie, o que demonstra que há uma atuação estatal e social sobre os mais diversos temas, mas que não vem buscando a ideia de encontrar o comum, o anseio de uma sociedade melhor, e sim o bem de poucos, de uma parcela, de um ‘homem de bem’ como tanto se propagava nos regimes totalitários que enfrentamos.

O cantor sempre prezou por ser um cronista das questões políticas, do cotidiano e evolução de nossa sociedade, tanto que, com o devido esmero, apõe o seu cântico de “amar e mudar as coisas me interessam mais” [9] e “que eu quero é a voz ativa (ela é que é uma boa!)”[10], onde demonstra a urgência de progredirmos enquanto sociedade, na busca de um futuro melhor, longe do lugar-comum. Tal reflexão pode e deve ser utilizada por uma geração que anseia sair do ócio e dos defeitos que se tornam presentes, mas que deve buscar o diálogo, com negociação, com liberdades de manifestação e pensamento, com deliberação, com “uma nova invenção”[11].

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O Brasil passa por um momento conturbado em todos os sentidos, numa crise ética e moral dos representantes do poder, que não ajudam em nada a evolução da sociedade, mas o retorno ao passado, aos abusos tampouco resolverá tais situações, como também não o racha político criado nos últimos anos, aonde antagonismos políticos se tornam presentes e não se dialoga, para compreendermos os anseios da sociedade, numa atuação mais convergente e próspera.

Assim, não há como continuarmos neste eito onde “há perigo na esquina, eles venceram e o sinal está fechado para nós que somos jovens...” [12]

Belchior foi capaz de traduzir as inquietações iniciais da sua geração, a partir dos anos 1970, de uma forma tão genial que ela pode ser aplicada nos dias atuais, pois estes anseios expressos em suas músicas por mais diversos que sejam de uma geração para outra, acabam em muito se aparecerem, já que tratam das complicações de uma sociedade jovem e uma jovem democracia, o que pode levar a necessidade de mudanças de cursos e mentalidades, mas nunca por via da exceção.

Não é por via do pensamento de “quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude, tá em casa, guardado por Deus, contando vil metal….”[13], que vamos mudar e “sonhar e escrever em letras grandes” [14] nosso futuro, mas sim por via do diálogo, do respeito ao Direito e às liberdades de todos, sem a promoção do excesso, público ou privado, é que conseguiremos evoluir como povo, pois mesmo com as nossas inúmeras diferenças e defeitos, com muita “ferida viva do meu coração….” [15], só atingiremos outra realidade com a queda de nossos antagonismos e a busca do bem comum, para que não mais sejamos “Como os nossos pais.” [16]


 

[3] BELCHIOR, Antônio Carlos. Música: “Como nossos pais”, presente no disco: “Alucinação” do ano de 1976. Gravadora: Phonogram.

[4] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. P. 483. São Paulo, Ed.14. 2007.

[5] Alfred Sauvy, L’Opinion Public, Paris, Presses Universitaires de France (PUF), Colection Que Sais-Je?, 1977, p. 3

[6] BELCHIOR, Antônio Carlos. Música: “Velha roupa colorida”, presente no disco: “Alucinação” do ano de 1976. Gravadora: Phonogram.

[7] BELCHIOR, Antônio Carlos. Música: “Não Leve Flores”, presente no disco: “Alucinação” do ano de 1976. Gravadora: Phonogram.

[8] Op. cit

[9] op. cit

[10] BELCHIOR, Antônio Carlos. Música: “Conheço o Meu Lugar”, presente no disco: “Era uma Vez um Homem e Seu Tempo” do ano de 1979. Gravadora: WEA.

[11] Op. cit.

[12] Op. cit.

[13] Op. cit.

[14] BELCHIOR, Antônio Carlos. Música: “Comentários a respeito de John”, presente no disco: “Era uma Vez um Homem e Seu Tempo” do ano de 1979. Gravadora: WEA.

[15] Op. cit

[16] Op. cit

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Sobre os autores
Walter Gustavo Lemos

Advogado, formado em Direito pela Universidade Federal de Goiás (1999), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2015) e mestrado em Direito Internacional - Universidad Autonoma de Asuncion (2009). Doutor em Direito Público pela UNESA /RJ (2020). Pós-doutorando em Direitos humanos pela Universidad de Salamanca. Atualmente é professor da FARO - Faculdade de Rondônia. Ex-Secretário-Geral Adjunto e Ex-Ouvidor da OAB/RO. OAB/GO 18814, OAB/RO 655A

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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