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Biotecnologia e direitos humanos:

o direito humano a se alimentar, soberania alimentar e transgênicos

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07/10/2004 às 00:00
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A aproximação entre biotecnologias e direitos humanos poderia causar certa estranheza a quem não estivesse familiarizado com a temática e com a polemização. O objetivo do trabalho é aproximar os conceitos de Direito Humano a se alimentar, Soberania Alimentar e Transgênicos.

I - Introdução

A princípio, tal aproximação entre biotecnologias (1) e direitos humanos poderia causar certa estranheza a quem não estivesse familiarizado com a temática e com a polemização. Entretanto, no decorrer do singelo trabalho, o objetivo primordial é o de aproximar os conceitos de Direito Humano a se alimentar, Soberania Alimentar e Transgênicos, com o intuito de identificar os pontos convergentes entre esses três aspectos, abordando principalmente as implicações que a adoção desta nova tecnologia terá na vida e na cultura das populações tradicionais de agricultores e camponeses, prejudicando, consideravelmente, o direito desses grupos a se alimentar, e por conseguinte, influindo, de maneira negativa, na soberania alimentar dos grupos e das nações que forem receptivos aos Organismos Geneticamente Modificados.


II - O Direito Humano a se alimentar

Conceitualmente, o Direito Humano a se alimentar é um direito com uma amplitude maior do que o Direito à Alimentação, visto que está embasado na defesa da capacidade da pessoa produzir, por seus próprios meios, os alimentos, qualitativa e quantitativamente necessários para a sua existência, o que implica em necessidades amplas de acesso aos meios de produção, acesso à água e à terra, aos recursos biotecnológicos e aos recursos financeiros indispensáveis à produção. Tal direito, não abrange apenas as pessoas que habitam o meio rural e produzem seu próprio alimento, necessitando de espaço físico, insumos, assistência técnica e financiamento para viabilizar a produção. É um direito extensível também àqueles que habitam os meios urbanos, que necessitam de condições propícias para adquirir os alimentos necessários à própria subsistência e ao desenvolvimento pleno da vida, tais como, emprego, salário digno, que supra todas as necessidades básicas (saúde, educação, vestimenta, moradia), condições de trabalho salubres e o amparo da seguridade social. (2)

No Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC, promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU), reconhecido e ratificado por mais de 130 países, inclusive o Brasil, o Direito à Alimentação está definido no Artigo 11 de seu texto, que dispõe, verbis:

"os Estados partes do presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive, alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a melhoria contínua das suas condições de vida. Os Estados partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento."

O inciso II do Artigo 11, explicita, verbis:

"os Estados, reconhecendo o direito fundamental da pessoa de estar protegida contra a fome, vai adotar medidas e programas concretos para 1º) melhorar as metas de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios, pela utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, reforma dos regimes agrários, de maneira a assegurar a exploração e a utilização mais eficaz dos recursos naturais, e assegurar uma repartição eqüitativa dos recursos alimentícios mundiais, em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores, quanto dos exportadores."

Entre as diferentes concepções de direitos humanos, sobressaem-se três correntes doutrinárias principais, que acabam por agrupar as diversas concepções. Primeiramente, temos a corrente jus-naturalista ou essencialista, baseada nos ensinamentos Kelsenianos, que apregoa serem os direitos humanos inerentes ao homem, decorrentes de sua própria existência, sendo um direito nato. A segunda corrente, intitulada liberal, ganhou força com os ideais da Revolução Francesa, e afirma que, juntamente com os direitos intrínsecos ao homem, da corrente jus-naturalista, existem direitos que devem ser reivindicados e assegurados, como condição essencial para o exercício do direito à liberdade. Por fim, a corrente chamada de histórico-estrutural, afirma que os direitos humanos são fruto de um processo histórico de construção e conquista, uma vez que não são inerentes ao homem, não estão dados a priori. (3)

O Direito Humano a se alimentar certamente estaria enquadrado em qualquer uma dessas três correntes, pois congrega elementos que se enquadram nas três perspectivas abordadas, visto que é certo que nascemos com o direito de nos alimentarmos (corrente jus-naturalista), sendo evidente que tal direito é fundamental para o exercício da liberdade (corrente liberal), e também temos a convicção de que devemos reivindicar esse direito quando o Poder Público se omite em reconhecê-lo ou a iniciativa privada nos supre a possibilidade de trabalhar e prover o próprio sustento (corrente histórico-estrutural).

Os Direitos Humanos são também reconhecidos em diversos âmbitos ou dimensões, que na tradição jurídica contemporânea são delimitados da seguinte forma: direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos. O enquadramento dos diversos direitos existentes em cada uma dessas dimensões, nunca foi objeto de consenso, ocasionando inúmeras divergências doutrinárias quanto ao conteúdo de cada um desses âmbitos.

No âmbito econômico, os direitos humanos referem-se, principalmente, aos aspectos relativos ao direito do trabalho, questões como salubridade, segurança, higiene, salários justos e compatíveis com a função, limite de horas diárias de trabalho, direito de associar-se e de formar sindicatos, bem como direito de greve, são questões inclusas nesta dimensão econômica dos direitos humanos.

Os direitos sociais, por sua vez, abrangem, primeiramente, o direito a um nível de vida adequado, que incorpora vários elementos em sua composição, tais como: direito à moradia adequada, direito à alimentação adequada, direito ao lazer, direito à saúde, entre outros. Num segundo momento, tais direitos defendem o direito à segurança social, compreendendo, a aposentadoria, o seguro-saúde, o seguro-desemprego, o salário mínimo. O direito à alimentação, enquanto direito social, incorpora pelo menos seis elementos que estão relacionados com a segurança alimentar, quais sejam: a quantidade suficiente de alimentos; a qualidade dos alimentos, inclusive o valor nutricional e o fato de não conter substâncias nocivas; a adequação cultural da alimentação; o acesso digno ao alimento e dois outros aspectos do acesso sustentável do ponto de vista econômico e ecológico. (4)

No aspecto cultural, os direitos humanos compreendem o direito à participação na vida cultural, abrangendo aspectos relacionados às artes (música, dança, cinema, teatro, artes plásticas), às ciências, ao direito à educação e aos direitos de grupos específicos, sejam eles étnicos, religiosos, culturais, linguísticos.

Já os direitos civis, englobam, prioritariamente, aspectos atinentes ao direito à vida e à integridade física. Também protegem a segurança pessoal contra a prisão arbitrária, o direito a um julgamento justo, além dos aspectos relativos aos direitos dos que se encontram presos, encarcerados, tais como, o direito contra a tortura, contra a pena de morte, a favor de um tratamento justo e humanitário e à separação entre categorias de periculosidade, através dos tipos de crimes que foram cometidos, e idades dos presos.

Por fim, a última dimensão tradicionalmente aceita, a dos direitos políticos, que abrangem o direito à participação na vida política, o direito à liberdade de expressão, o direito à privacidade, o direito à liberdade de associação, direito à cidadania, o direito à mobilização pacífica e o direito de ir e vir. Como acontece com as outras dimensões, mas principalmente entre os direitos civis e políticos, há grande confusão quanto à delimitação dos direitos que se enquadrariam em determinada categoria.

Entretanto, embora as dimensões anteriormente citadas sejam as cinco dimensões tradicionalmente reconhecidas pela doutrina jurídica, existem dimensões novas ou emergentes, que foram prioritariamente discutidas no âmbito das Organizações das Nações Unidas (ONU), quais sejam: o direito ambiental e o direito ao desenvolvimento. O primeiro ganhou ênfase após a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente realizada no Rio de Janeiro, em 1992, a ECO-92, enquanto o segundo passou a ser mais discutido após a Conferência de Viena, em 1993.

O Direito Humano a se alimentar, transversalmente, está relacionado a todos os âmbitos descritos anteriormente, pois necessitamos de trabalho para obter remuneração e comprar alimentos (direitos econômicos), necessitamos de alimentação adequada (âmbito social), necessitamos de tecnologia para produzir e de preservar nossa cultura para que os hábitos alimentares sejam preservados (direitos culturais), necessitamos garantir nossa integridade física para podermos produzir ou trabalhar (direitos civis), necessitamos de organização para formar associações visando garantir condiçoes favoráveis de comercialização da produção (direitos políticos), necessitamos de um ambiente saudável para que os alimentos tenham qualidades nutricionais e não façam mal ao ser humano (direitos ambientais) e, por fim, devemos nos desenvolver de maneira a preservar nosso patrimônio natural e cultural para as gerações futuras (direito ao desenvolvimento).

Outras correntes doutrinárias, dividem os direitos humanos e suas dimensões através de gerações. De acordo com esta interpretação, os direitos civis e políticos são denominados direitos de primeira geração; os direitos econômicos, sociais e culturais, por sua vez, correspondem aos direitos de segunda geração; por fim, os emergentes, direitos ambientais e direito ao desenvolvimento são denominados direitos de terceira geração.

Os Direitos Humanos são pautados em alguns princípios, que determinam diretrizes básicas para a sua aplicabilidade. Os principais princípios são três: o princípio da indivisibilidade, o princípio da universalidade e o princípio da não-discriminação. O primeiro deles, que determina a indivisibilidade dos direitos humanos, assegura uma homogeneização de valores, pautada na não-hierarquização das dimensões, que apresentam valores complementares, sendo indivisíveis, não admitindo assim, que algumas dimensões sejam mais importantes que outras. O segundo princípio é o da universalidade dos direitos humanos, entendido frente à concepção histórico-estrutural. Desta forma, os direitos humanos tornam-se universais à medida em que são criados consensos em torno deles, seja ao nível local, regional, nacional ou internacional. O terceiro princípio, o da não-discriminação, significa que os direitos humanos valem para todos os seres humanos, independentemente de sua religião, sexo, cor, etnia ou língua. No princípio da não-discriminação está presente a questão da sustentabilidade, pois considera que a não-discriminação é considerada tanto para o presente quanto para as futuras gerações. (5)

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Tais princípios são de fundamental importância para assegurar aplicação plena do Direito Humano a se alimentar, visto que tal direito não pode ser tratado isoladamente, dependendo de outros direitos humanos para que se efetive (princípio da indivisibilidade). Além disso, apresenta características peculiares historicamente e culturalmente, dependendo do âmbito em que será aplicado (princípio da universalidade). Por fim, é um direito que se estende a todos, independentemente de suas crenças religiosas, da etnia a que pertençam, e até mesmo da língua que estes falem (princípio da não-discriminação), devendo ser protegido e resguardado para a geração atual e para as futuras gerações..

Em última instância, a responsabilidade pelo atendimento aos direitos humanos cabe ao Estado, representante da esfera pública de regulação, que deve atuar em três campos distintos para garantir a efetividade e aplicação dos direitos humanos. O Estado deve respeitar, proteger e garantir as condições de realização dos direitos humanos. A obrigação de respeitar os direitos, faz-se presente na ação positiva do Estado, ou seja, em suas práticas e atos, este deve prezar pela não-violabilidade dos direitos humanos. A obrigação de proteger os direitos humanos reflete-se na conduta omissiva do Estado em relação aos atos de terceiros, ou seja, é quando o Estado não toma as devidas providências, deixando de exercer as funções de fiscal e regulador da ordem pública, quando visualiza na ação de outrem o não-cumprimento dos direitos humanos. O último campo de atuação concernente ao Estado é o de garantir as condições de realização dos direitos humanos, situação que se exterioriza quando os direitos humanos não são atendidos, cabendo, pois, ao Estado, uma função de prover e facilitar as condições para garantir sua realização plena. Esta também é uma obrigação positiva.

Pela análise dos campos de atuação do Estado, percebe-se que não é através de programas assistencialistas que o Estado irá realizar plenamente o Direito Humano a se alimentar, o Estado deve primar pela construção de políticas, instrumentos e mecanismos estruturadores, que compreendam os três campos de atuação de sua competência, o respeito, a proteção e a garantia das condições de realização, para que o Direito Humano a se alimentar seja realmente efetivado.


III - Soberania Alimentar: a questão das sementes

Nos primórdios da civilização, o ser humano integrava-se em grupos de coletores e caçadores, que viviam de plantas silvestres, da caça e da pesca. Com o passar do tempo e a observação das plantas de seu interesse, começaram a selecionar e cultivar aquelas que lhes davam mais rendimento. Desta forma, as plantas frutíferas e as que produziam sementes comestíveis foram as primeiras a serem aproveitadas na alimentação. A agricultura, como prática produtiva, se originou nas regiões montanhosas dos países de clima quente e temperado. A partir daí, se espalharam pelo mundo através da migração humana.

Desde a pré-história, as primeiras plantas cultivadas, como o milho, a batata e o tomate, originárias da América, foram levadas para Europa. O arroz, por sua vez, saiu da Ásia e foi trazido para a América. Com o passar dos tempos, essas plantas que foram trazidas de outras regiões, se adaptaram nas regiões onde foram posteriormente cultivadas, sendo sempre selecionadas naturalmente, por processo biológico, e também pelos processos simples dos agricultores. Assim, surgiram as sementes rústicas, totalmente adaptas ao solo, ao clima e às condições peculiares destas diversas regiões, sendo conhecidas, cultivadas e armazenadas pelos agricultores, camponeses e povos tradicionais.

Desta forma, os agricultores, e principalmente as agricultoras, que nas comunidades tradicionais são as responsáveis pelo cultivo das terras, foram os primeiros cientistas empíricos da humanidade, seu contato direto com as plantas e sua observação da natureza, permitiram a aquisição de conhecimentos fundamentais para o posterior cultivo das diversas variedades de plantas. Desde os tempos mais remotos, portanto, os agricultores têm conservado, selecionado e melhorado suas sementes para semeadura, inclusive através das trocas que realizavam com outros grupos camponeses, construindo um processo de partilhas, que lhes permitiu aumentar a diversidade genética das variedades que cultivavam. Com essa prática milenar, o resultado foi uma impressionante diversidade de cultivos e variedades utilizadas na produção agrícola. (6)

Em virtude deste histórico, é que as sementes são de suma importância para a soberania alimentar, que é o direito que um povo tem de definir sua própria produção, distribuição e consumo de alimentos. Qualquer país ou povo que não tenha terras, tecnologia, insumos ou liberdade para produzir sua própria comida, é um povo dependente, pois ficará à mercê de outros povos ou nações para se alimentar. Nenhum país será soberano se não tiver o domínio da produção de suas sementes, e conseqüentemente, dos alimentos necessários para a sua própria subsistência. As transnacionais sementeiras, ao disseminarem suas formas de cultivo e suas tecnologias, obrigam as populações tradicionais a cultivar determinados produtos, influenciando no consumo, na produção e na distribuição de alimentos, verdadeira afronta ao princípio da soberania alimentar.

Historicamente, as sementes pertenciam aos povos camponeses, comunidades tradicionais e povos indígenas. Pertenciam a toda a comunidade, eram um bem comum, partilhado entre as comunidades adjacentes e compartilhado entre todos os que viviam em determinado lugar, sem restrições ao uso ou benefícios a determinados grupos. Em algumas culturas, como as pré-colombianas, as sementes são algo sagrado, verdadeiro símbolo da vida, pois eles acreditam que os seres humanos são provenientes da união dos milhos branco e amarelo.

A cada uma das etapas de relacionamento entre a humanidade e as sementes, corresponderam diferentes formas de propriedade dos recursos genéticos. Antes da entrada das multinacionais, os recursos genéticos eram considerados patrimônio da humanidade e assim foi subscrito nos tratados internacionais. Nesse contexto, firmaram-se os conceitos acerca dos direitos dos agricultores sobre os recursos genéticos. Posteriormente, as empresas dedicadas às sementes e aos insumos, se organizaram para que fossem reconhecidos os direitos dos obtentores, sendo criada a União Internacional de Proteção aos Direitos de Obtentor sobre Variedades Vegetais (UPOV). Atualmente, um grande número de trabalhos da biotecnologia é conduzido sob o esquema de patentes protegidas pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual e pela OMC. Desta forma, a vida, os genes, fazem hoje, parte de um regime similar ao da propriedade industrial.

A propriedade do conhecimento sobre formas de vida, pode levar a uma situação que representa um grande risco para a bidodiversidade: a monopolização das patentes. Este é um problema que pode ser impedido pela ação governamental, visto que o uso inadequado dos genes pela transnacionais sementeiras pode acarretar graves problemas de biossegurança, pois pode promover a utilização de grandes populações homogêneas suscetíveis a patógenos. Quanto menor o número de variedades cultivadas, mais elas se tornam suscetíveis a superpragas, pois há uma limitação da diversidade genética. Alguns dados ilustram essa proposição: a uniformidade genética leva à perda de variedades e à vulnerabilidade das plantas às pragas e doenças. Para se ter uma idéia da magnitude do problema: os povos pré históricos alimentavam-se de mais de 1.500 espécies de plantas e pelo menos 500 dessas espécies e variedades têm sido cultivadas ao longo da história. Hoje, a alimentação está baseada em apenas 30 vegetais cultivados e, desses, trigo, arroz, milho e soja representam mais de 85% do consumo de grãos. (7)

As patentes de plantas, animais e seus componentes implicam na perda do controle sobre os recursos que tradicionalmente os camponeses e as comunidades indígenas têm usado. Isso significa um acesso limitado e controlado aos recursos genéticos que, sem dúvida, levará a novas formas de controle sobre as nações e suas populações humanas. O uso, pelos agricultores, de produtos patenteados implica na aquisição, junto com a semente, de um pacote tecnológico, provocando a falta de sustentabilidade nos agrossistemas e na economia familiar, além de romper com as tradições culturais dos agricultores camponeses, como a de reservar sementes para os cultivos posteriores, a troca de sementes entre agricultores e comunidades e a geração de um conhecimento ligado à prática, no manejo dos recursos naturais. (8)

Juntamente com a venda das sementes, são vendidos ao agricultor os agrotóxicos e os adubos químicos, que as próprias multinacionais industrializam. A semente, hoje industrializada pelos grandes monopólios, é um produto dependente de um pacote agronômico para que se reproduza satisfatoriamente, é um produto propício aos interesses das transnacionais sementeiras. O mecanismo funciona da seguinte forma: as multinacionais controlam a produção e o comércio de sementes que são geneticamente "melhoradas", eliminando as resistências naturais e aumentando a vulnerabilidade das culturas. Cria-se assim, a dependência dos agrotóxicos. As multinacionais que fabricam agrotóxicos são as mesmas que controlam o "melhoramento", a produção e a comercialização das sementes. Essa apropriação privada da geração, reprodução e distribuição de novas variedades de sementes pelas empresas privadas multinacionais, assim como o controle da oferta dos insumos que elas requerem, vêm submetendo os povos de todo o mundo a uma tirania de um novo tipo: a tirania do conhecimento biotecnológico. (9)

As palavras da pesquisadora mexicana Silvia Ribeiro, em artigo intitulado "As corporações querem dominar o mundo", corroboram e explicam a ação das transnacionais em vários segmentos:

"No início do novo milênio, das 100 maiores economias do mundo, 51 eram empresas e 49 eram países. As fusões e aquisições corporativas se aceleraram na década passada e atualmente representam mais de 12% do produto global. As vendas das 500 maiores transnacionais equivalem a 47% do produto bruto do planeta, mas empregam apenas 1,59% da força de trabalho mundial.

Em 2000, cinco transnacionais controlavam mais de 75% do comércio mundial de grãos. Hoje, três empresas dominam o mercado: Cargill, Bunge e Dreyfus. Somando apenas mais algumas, poucas transnacionais controlam mais de 90% do comércio global de milho, trigo, café e cacau; cerca de 80% do comércio de chá; 70% do comércio de arroz e banana e mais de 60% do comércio de açúcar e cana.

No ano passado, as dez maiores empresas de agroquímicos controlavam 90% do mercado mundial; 58,4% no caso dos produtos farmacêuticos, 34% dos alimentos e bebidas; 30% das sementes.

A integração, seja vertical (dentro do mesmo segmento) ou horizontal (com outros segmentos), é alarmante nos setores agroalimentar e farmacêutico. Há 20 anos, existiam milhares de empresas produtoras de sementes e nenhuma atingia 1% do mercado. Hoje, dez empresas controlam 30% do mercado mundial. Na mesma época, existiam 65 empresas de insumos agrícolas. Hoje, uma dezena de empresas controla 90% do mercado. Há 15 anos, as dez maiores indústrias farmacêuticas controlavam 29% do mercado; hoje, controlam 58,4%." (10)

Hodiernamente, as sementes se tornaram mercadoria. Representam apenas negócios, lucros e a exploração das grandes empresas capitalistas transnacionais, que dominam e subjugam os produtores rurais de todo o mundo. Com a revolução biotecnológica que aconteceu nos países chamados desenvolvidos nos últimos 20 anos, as grandes empresas transnacionais, detentoras da mais avançada tecnologia em aumento da produtividade, aliada à diminuição da área cultivada, com o emprego da mais eficiente mão de obra, a mecanizada, redimensionaram o panorama agrícola internacional, sem, no entanto, alterar sua estrutura organizacional hierarquizada, apenas reavaliando os lucros e redirecionando os investimentos, é a seletividade rotulada praticada pelo conglomerado sementeiro internacional.

A pesquisadora Maria Laura Silveira, elucida a questão:

"Os híbridos povoam o campo e assinalam uma nova modernidade. P. George (1974, pp. 13-14) reconhece três domínios da pesquisa aplicada que produzem a agricultura moderna: a construção de máquinas, a química e a biologia. As regiões agrícolas tornam-se um palimpsesto que expressa, mais ou menos veladamente, as contradições da situação geográfica. Formas novas são reescritas sobre formas pretéritas que mantêm sua inércia; o mapa das demandas de um mercado globalizado grava-se nos lugares traçados por políticas públicas pretéritas; e as formas de um mandar externo talham-se sobre as formas de um fazer interno. Mas, como num palimpsesto, os vestígios da antiga ordem construída com letras menos perfeitas – objetos e formas de ação locais comandadas pelo Estado-nação – não podem ser completamente apagados pela nova escrita da modernidade." (11)

As grandes empresas detentoras de biotecnologia, que apenas se preocupam com a expansão da produção, a acumulação da tecnologia, e a concentração dos crescentes mercados consumidores, visam apenas intensificar a produção, a comercialização e o cultivo dos OGM, fundamentando suas decisões unilaterais com proposições matemáticas, que enfatizam a fome do terceiro mundo e as toneladas relacionadas aos acréscimos na produção, justificando a utilização daqueles. (12)

Entretanto, esta justificativa, a de que as sementes híbridas ou transgênicas combatem a fome, é uma das formas mais utilizadas pelas grandes emrpesas para dominarem o mercado de sementes e convencerem governos a se submeter a seus planos. Desde a década de 1950, justamente no início da Revolução Verde, que se afirma que é necessário aumentar a produtividade agrícola para combater a fome no mundo. A Organização para a Alimentação e a Agricultura - FAO, órgão pertencente à Organização das Nações Unidas, foi uma das instituições multilaterais que estimulou a introdução de sementes híbridas no mundo com essa finalidade.

As grandes empresas se tornaram cada vez maiores. Compraram outras empresas, dominaram o mercado, controlaram os agricultores. E a fome continua. Hoje, em todo mundo, 800 milhões de pessoas passam fome e 2,4 bilhões são mal nutridas. Está claro que não faltam alimentos. Com a produção atual, cada pessoa no mundo poderia comer todos os dias: 1,7 kg de cereais, feijões e nozes; 200 g de carne, leite e ovos; 0,5 kg de frutas e vegetais. A verdadeira causa da fome está no latifúndio e na falta de apoio à agricultura familiar, que marginaliza 1,35 bilhões de agricultores e suas famílias. (13)

Novamente nos utilizamos da contribuição da pesquisadora Maria Laura Silveira, para contextualizar a problemática:

As firmas globais alimentares Cargill, Continental, Dreyfus, Bunge e Born impõem, nos lugares, as espécies valorizadas e as formas de produção e comercialização, desafiando-os a uma guerra cadenciada por cotas de importação e preços internacionais oscilantes. Desse modo, enquanto os cereais tradicionais marcam a permanência da vocação histórica e da coerência funcional dos pampas, a hierarquização global de outras espécies, como a soja, redesenha no campo como num pergaminho, o novo mapa da divisão territorial do trabalho." (14)

Partindo-se das afirmações anteriormente citadas, o quadro que se vislumbra é de que há uma indústria transnacional extremamente organizada, com vínculos e ramificações em diversos setores da economia, que opera através de pacotes tecnológicos, obrigando agricultores e até mesmo nações inteiras, a utilizarem-se do desenvolvimento tecnológico por eles patenteado, o que suscita uma situação de extrema dependência, visto que a escolha sobre o que será plantado, as formas de cultivo, e até mesmo a comercialização dos produtos provenientes das safras agrícolas, não caberá aos próprios agricultores, e muito menos estarão enquadradas em políticas governamentais, mas serão escolhas feitas pelas transnacionais, apenas baseadas em cifras, como números da produção e retorno dos investimentos, mas sem uma preocupação real com a preservação da biodiversidade, a manutenção dos aspectos culturais das populações tradicionais, os impactos no meio ambiente e na saúde animal e humana. Numa previsão caótica e pessimista, porém real e provável, o conglomerado transnacional controlará todo o alimento plantado e consumido no mundo, ditando regras para a produção e comercialização, visto que serão os detentores das patentes de toda a vida da Terra.

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Sobre o autor
Bruno Gasparini

advogado, gestor ambiental, professor universitário, mestrando em Direito pela UFPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPARINI, Bruno. Biotecnologia e direitos humanos:: o direito humano a se alimentar, soberania alimentar e transgênicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 457, 7 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5785. Acesso em: 22 nov. 2024.

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