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Biotecnologia e direitos humanos:

o direito humano a se alimentar, soberania alimentar e transgênicos

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07/10/2004 às 00:00
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IV - Os Organismos Geneticamente Modificados (transgênicos)

Nos últimos 40 anos, a agricultura passou por um processo de modificação em seus métodos e técnicas, em virtude dos vários problemas ambientais que vinha ocasionando; a erosão, o desmatamento, a alteração do ciclo hidrológico, são frutos de uma modernização desenfreada que apenas visionava economizar trabalho humano, com a utilização de variedades com alta produtividade, maquinário, herbicidas e fungicidas, que acabaram por dar origem a desastres ambientais e sociais.

Fruto da chamada "Revolução Verde", conhecida corrente iniciada na década de 60, baseada na genética convencional (mendeliana), na qual os agrônomos se utilizam de todas as técnicas que a biotecnologia lhes oferecem para o melhoramento das técnicas de engenharia genética (15), que consiste na "transformação da composição genética de um organismo resultante da introdução direta de material genético de um outro organismo, ou construído em laboratório" (16), e posterior incremento da produção, a utilização de OGM (Organismos Geneticamente Modificados) (17), por meio da fusão de genes adicionais (vírus, bactérias, plantas ou animais), foi intensificada em meados da década de 80, tendo qualificativo aumento tecnológico na década de 90, com o mapeamento das moléculas de ADN/ARN recombinante, tanto dos animais, quanto dos humanos e vegetais, o que iniciou a denominada biorevolução.

Nas palavras dos pesquisadores Gonzalo G. Mateos, R. Lázaro e M.I. Gracia, em palestra realizada na Conferência APINCO’ 2000 de Ciência e Tecnologia Avícolas, as várias possibilidades de aplicação da biotecnologia, tanto no campo industrial, da agricultura, da saúde humana ou animal e da alimentação animal. verbis:

"Dentro do campo da agricultura, a biotecnologia pode ser utilizada em diversos processos e com diferentes finalidades. Assim, graças a ela, se desenvolvem novas variedades de plantas resistentes ao meio (salinidade do solo, estiagem, vírus, insetos, fungos, etc), a diversos herbicidas (round up ready), ou diversos tipos de frutas e verduras com maior capacidade de conservação, melhorando assim a produtividade real e o valor econômico dos cultivos. Processos industriais tais como café descafeinado, ervilha e milho doces de alta produtividade, plantas que acumulem plásticos biodegradáveis no lugar de amido ou açúcares como material de reservas, e em fibras de algodão coloridas, serão produtos usuais no futuro.

Dentro do campo da saúde humana ou animal, a biotecnologia permite a criação de novas variedades vegetais, ricas em oligofrutanos (substância que melhora os ecossistemas microbianos do intestino) que resultarão num menor uso de antibióticos, o desenvolvimento de plantas produtoras de fitasas e diversos hormônios e medicamentos, e a modificação da composição do óleo de sementes, permitindo o enriquecimento em AGPI ou em ácido linoléico conjugado, que melhora a imunidade e reduz a incidência de distintos tipos de câncer. As novas tecnologias podem inclusive, permitir a criação de variedades ricas em anticorpos contra coliformes, salmonellas e outros microorganismos patogênicos.

Dentro do campo da alimentação animal, o uso das novas tecnologias permitirá a obtenção de um leque de novos produtos de interesse comercial. Assim, poderemos modificar ou enriquecer, as diversas matérias primas com vitaminas, aminoácidos essenciais e ácidos graxos de interesse, bem como reduzir seu conteúdo em ácido fíticom fibra bruta e oligossacarídeos não digeríveis (estaquiose, verbascose, rafinose e outros)." (18)

Embora apresentem várias utilizações que podem beneficiar o Homem, os adeptos dessa doutrina apenas se preocupam com a utilização das técnicas que a moderna ciência lhes oferece, para utilizar-se dos métodos nas diversas formas de cultivo e plantio, sempre visando um aumento da capacidade produtiva relativa à área, a redução dos insumos e consequente diminuição dos custos, sem no entanto, ater-se a conteúdos éticos, morais e até mesmo sociais, na difusão de seus meios de trabalho, é o que Hans Jonas sintetizou na expressão "vazio ético" (ethical vacuum), resultante do fato da ciência contemporânea ser essencialmente reducionista, mecanicista e despreocupada com os anseios atuais acerca do futuro da vida sobre a Terra. (19)

Em reportagem veiculada no site da Revista Globo Rural, intitulada Nova Fronteira, sob a responsabilidade do jornalista Ernesto de Souza, a mesma linha de argumentação, só enfatizando os benefícios da nova tecnologia, verbis:

"É o caso da soja transgênica Roundup Ready, da Monsanto, um vegetal que recebeu genes de uma bactéria para tolerar a aplicação de determinado tipo de herbicida. Hoje são vários os métodos utilizados para fazer essa transferência de genes de um organismo para o DNA de outro. Além do bombardeio de micropartículas (biobalística), da microinjeção e da transformação direta para protoplastos (células sem parede celular), o método que tem se mostrado mais eficiente é o que usa as Agrobacterium (A. tumefaciens ou A. rhizogenes), bactérias de solo que funcionam como vetores para transportar o gene selecionado até o interior do código genético da planta.

O processo tecnológico que identifica a seqüência de genes que constituem um organismo é conhecido como seqüenciamento do genoma. Do genoma humano ao genoma de uma bactéria patogênica em laranjais, a ciência vem descobrindo cada letra do alfabeto de que são feitos os seres vivos. O desafio daqui para a frente é chegar às palavras que essas letras formam e o que significam. Essa próxima etapa, que vai adiante da descoberta genômica, concentra-se no estudo do ‘proteoma’, quer dizer, das proteínas que os genes produzem e de suas funções – é a genômica aplicada ou pesquisa do genoma funcional. Como diz o professor Paulo Arruda, todo mundo quer saber agora para que serve o seqüenciamento dos genes.

Quem vai ajudar muito nesse passo são os experimentos de campo. O melhoramento genético convencional, que parecia superado ante a manipulação genética, é que vai dar sentido aos seqüenciamentos de genes e mapeamento molecular. ‘O simples fato de anotar genes e gerar bancos de dados de seqüências não resultará em saltos qualitativos e quantitativos esperados de projetos genoma. A capacidade de seqüenciamento de DNA tornou-se hoje secundária. A questão-chave agora é o que fazer com aquelas dezenas de milhares de seqüências geradas. E uma das ferramentas mais poderosas é o trabalho nos campos experimentais’, defende Dario Grattapaglia, especialista em genoma funcional do eucalipto e professor da Universidade Católica de Brasília.

Na argumentação de muitos cientistas e algumas empresas, os benefícios apontados na adoção de todas essas biotécnicas são inumeráveis e promissores. Na agricultura, a pesquisa já chegou a plantas modificadas geneticamente para ter resistência a pragas e a doenças. Com isso, a produtividade aumenta, e a aplicação de defensivos diminui.

Grãos, tubérculos, verduras e frutas passarão por modificações genéticas para resistir ao frio, à seca, à salinização ou à umidade dos terrenos, incorporando fronteiras agrícolas até então improdutivas. As plantas crescerão mais rápido e darão alimentos mais ricos em proteínas e possíveis de serem armazenados por muito mais tempo. Os agricultores terão lavouras não mais para colher apenas alimentos, mas também remédios, pois as plantas receberão genes exógenos que as tornarão capazes de diminuir os riscos de vários tipos de câncer ou de atuar como vacinas para combater inúmeras doenças." (20)

Os grandes detentores de conhecimento avançado em biotecnologia no mundo e de dinheiro suficiente para o desenvolvimento de novos cultivares, são as multinacionais do setor de sementes, Novartis, Cargill, Pioneer, Monsanto. Entretanto, pelo fato de que o custo para o desenvolvimento de uma nova cultivar chegue até 200 milhões de dólares, gastos num período aproximado de 10 anos de experimentos (21), a inviabilidade econômica para o desenvolvimento de espécimes transgênicos para as mais variadas microrregiões climáticas do planeta será prejudicada, ocasionando, uma seleção dos países que se beneficiarão da nova tecnologia.

Se os mercados consumidores nâo forem receptivos aos cultivares de determinada localidade, esta não será beneficiada pela nova tecnologia, pois a adaptação de cultivares geneticamente modificadas, não se dá como nas cultivares tradicionais, as primeiras devem ser desenvolvidas para cada localidade específica, o que acarreta custos exorbitantes; se pensarmos que cada microrregião geomorfoclimática do planeta deverá merecer pesquisas direcionadas e investimentos vultosos para o desenvolvimento de uma nova variedade, entenderemos porque as localidades com clima, geografia e relevo mais homogêneas foram as primeiras a serem beneficiadas com a nova tecnologia. Esta é a seletividade rotulada do conglomerado sementeiro internacional, que escolhe as regiões que serão beneficiadas, segregando o restante do mundo das alternativas e benefícios que a biotecnologia poderá lhes trazer.

Na entrevista que o empresário do setor de biotecnologia Alberto Leonardo concedeu ao periódico Seed News, de setembro de 1997, essa situação é explicitada:

"As diferentes condições de clima e solo, por exemplo, exigirão novas tecnologias suplementares. Ele mostra que nos EUA, por exemplo, onde cerca de 2.500 variedades de soja são plantadas, houve mudança genética em cerca de dez apenas, adaptadas às condições médias do país. Em outros locais a produtividade, mesmo das transgênicas, nem sempre será interessante como as cultivares tradicionais. E exemplifica: uma região com características diferenciadas, mas onde se comercializa anualmente em torno de US$ 15 milhões de sementes, certamente não estimulará a criação de uma variedade própria. E nem sempre a transgênica, destinada a outro clima, será a solução. Daí a necessidade complementar." (22)

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José Maria da Silva diz que a discussão sobre os transgênicos envolve o interesse de dois grupos empresariais principais: a grande indústria do capital estrangeiro, que lidera a produção de insumos para a agricultura, e a grande empresa rural. Afirma o professor da Universidade Federal de Viçosa que os pequenos produtores só teriam a perder, já que normalmente, são excluídos das grandes vantagens proporcionadas pelas tecnologias de ponta. Segundo ele, o efeito para os médios produtores seria incerto. Enfim desperta a atenção para a questão do emprego, entendendo que desde que as variedades transgênicas lançadas até agora seriam predominantemente do tipo que economizam trabalho, a sua utilização também aumentaria o desemprego agrícola. (23)

Notícia veiculada pela Agência Brasil, em 28 de janeiro de 2004, noticia a contenda entre agricultores e empresa multinacional sobre a questão do pagamento de royalties, verbis:

"PORTO ALEGRE - O presidente da Fetag - Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul, Ezídio Pinheiro, disse que ainda é muito alto o acordo acertado na terça-feira (27/01) por representantes dos produtores e da Monsanto, para o pagamento da soja transgênica. Ficou acertada a cobrança de royalties de R$ 0,60 por saca de 60 quilos, na próxima safra.Segundo Pinheiro, embora o valor tenha baixado bastante desde o início das negociações - quando o pedido era de R$ 1,30 por saca - o valor ainda está elevado e certamente acabará sendo repassado ao consumidor. Ele disse que haverá novas tentativas de negociações, já que o ideal seria R$ 0,30 por saca. Pinheiro destacou que a cobrança não é direta, mas indireta, paga pelo exportador. O produtor terá os royalties descontados na hora de receber o pagamento. Com uma safra superior a nove milhões de toneladas, só o Rio Grande do Sul deve pagar entre R$ 60 e R$ 70 milhões de royalties à Monsanto. Pinheiro ressaltou, no entanto, que não é contra a cobrança de royalties. "Se não fosse assim, ninguém investiria em pesquisa. Por isso, defendemos a pesquisa e o incentivo à pesquisa", concluiu." (24)

Desta forma, os transgênicos podem significar a perda da autonomia camponesa e uma maior dependência em relação às empresas multinacionais, tanto economicamente, quanto ecologicamente. O que exemplifica a situação é o fato de as indústrias sementeiras transnacionais que promovem a utilização e comercializam as variedades geneticamente modificadas exigirem dos camponeses a assinatura de um contrato em que estes se obrigam a adquirir sementes e insumos, além de serem proibidos de partilhar as sementes com outros agricultores e de assumirem responsabilidade quanto aos possíveis danos ambientais que os organismos geneticamente modificados venham a trazer. Ao mesmo tempo em que atestam a segurança e a eficácia de seu produto, as transnacionais transferem aos agricultores a responsabilidade por eventuais danos ambientais e patrimoniais. Tal fato, denuncia o real desígnio destas empresas, que é o de reaver seus investimentos com pesquisa a qualquer custo, além de subordinar as comunidades tradicionais à tirania de seu jogo mercadológico.


V - Conclusão

Nesta perspectiva é que está enquadrada a luta dos camponeses e das comunidades tradicionais contra a adoção desta nova tecnologia, visto que apenas a agroindústria, entendida como o setor de produção agrícola que engloba os latifundiários e as grandes cooperativas, será beneficiada com a utilização dos organismos geneticamente modificados em sua cadeia produtiva, levando em conta apenas os aspectos financeiros, de uma economia crematística, que não contabiliza as externalidades, os impactos ao meio ambiente e à saúde humana.

A compra de insumos, herbicidas e sementes, além do pagamento de royalties às grandes empresas, é uma realidade compatível apenas com a grande propriedade, com vastas extensões de terra, não com uma agricultura familiar, de pequenas extensões, que se utiliza de métodos diferenciados, próprios, que vêm sendo utilizados à várias gerações; agricultores que partilham e trocam suas sementes com comunidades vizinhas para assegurar a variabilidade genética, possuem uma relação cultural, e por vezes religiosa, com as sementes, jamais poderão se submeter às vicissitudes do direito patrimonial moderno, que transformou a vida em propriedade particular, dando um caráter patrimonial ao que antes era res nullius, se transformou em patrimônio comum e, por fim, está nas mãos dos detentores de recursos e tecnologia para desenvolver pesquisas e adquirir as patentes.

O que mais avulta o direito de personalidade coletivo das comunidades tradicionais, que desenvolveram as cultivares durante vários séculos, é que esta apropriação da vida, por parte da conglomerado sementeiro internacional, não lhes apresenta contrapartida, e muito menos, retribuição. Estas comunidades merecem a proteção do mundo jurídico, para que suas culturas sejam preservadas, seu direito a se alimentar seja conservado e sua soberania alimentar seja mantida. Se não houver retribuição pecuniária, pelo menos o direito de plantar e se alimentar do modo como estão habituados, sem interferência externa, nem imposição de espécie alguma, deverá lhes ser assegurado. Além disso, a conservação da biodiversidade e da variabilidade genética dos seus cultivares deverá ser mantida, sob pena de fazerem jus à indenização diante de tal violação de direitos.

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Sobre o autor
Bruno Gasparini

advogado, gestor ambiental, professor universitário, mestrando em Direito pela UFPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPARINI, Bruno. Biotecnologia e direitos humanos:: o direito humano a se alimentar, soberania alimentar e transgênicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 457, 7 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5785. Acesso em: 23 dez. 2024.

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