Introdução:
A Constituição Federal, em seu art. 7º, inciso XXXIII, proíbe qualquer forma de trabalho aos menores de 16 (dezesseis) anos, ressalvada a condição de aprendiz, a partir dos 14 (quatorze) anos completos. Aos 16 (dezesseis) anos completos, o menor já se encontra juridicamente apto a dispor de sua força de trabalho como empregado, porém de forma limitada por dispositivos de proteção à sua higidez física, mental, moral e espiritual, em atendimento a princípios e preceitos constitucionalmente insculpidos (CF, art. 227), irradiando-se tais regras pela legislação ordinária através do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Consolidação das Leis do Trabalho, além de outras fontes isoladas em legislação esparsa.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, Considera-se criança, para os efeitos desta lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. ("caput" do art. 2º da Lei n. 8.069/90)
Portanto, no Brasil é vedado expressamente o trabalho de crianças, assim como o dos adolescentes, estes desde que menores de 14 (quatorze) anos.
Uma vez que por imposição legal, antes dos 18 (dezoito) anos completos a pessoa humana ainda é considerada adolescente, não vejo como deixar de assim rotular inclusive os emancipados, dotados de plena capacidade para a prática de atos e negócios jurídicos de caráter civil lato sensu.
É que a noção de criança e adolescente, ao que me parece, não leva em consideração apenas o desenvolvimento racional, necessário ao discernimento das atividades e suas consequências jurídicas, mas também, e essencialmente, o desenvolvimento inerente ao próprio organismo fisiologicamente considerado em seu processo de formação. Por razões óbvias afetas à necessidade social de estabilização e segurança nas relações jurídicas, bem como objetivando atender ao princípio da igualdade de todos perante a lei, nada mais justificável que se estabelecesse um termo objetivo a partir do qual a pessoa humana estaria submetida aos cânones da Jurisdição, em seus diversos ramos de atuação.
Nas palavras de Maria Helena Diniz, "a segurança jurídica requer abstração destas circunstâncias individuais, daí impor limites precisos de idade, prazos determinados, etc. (...) A segurança jurídica levou o legislador a estabelecer um limite de idade." (in Conflito de Normas, Ed. Saraiva, 1998, p. 27).
Recentemente entrou em vigor o novo Código Civil brasileiro (lei 10.406/02), trazendo como uma das mais interessantes e aplaudidas inovações em relação ao Diploma antigo, a redução da idade emancipatória de 21 (vinte e um) para 18 (dezoito) anos (art. 5º, caput), e ainda no campo das novidades, dispôs acerca da emancipação do empregado menor, desde que em função do emprego detenha economia própria (art. 5º, parágrafo único, V).
Mas afinal, em que hipóteses é possível afirmar a existência de economia própria ? quais os aspectos a serem analisados ? como se opera a emancipação por esse motivo ?
A questão torna-se ainda mais complexa, se verificarmos a pluralidade de situações jurídicas vivenciáveis, assim como a potencialidade do universo das relações humanas, cada qual submetida a uma determinada esfera jurídica, a uma disciplina do Direito ou a um fundamento diferente.
Em sendo assim, questões das mais variadas ordens nos desafiam a buscar soluções adequadas, objetivando condensar as regras da capacidade civil com outras de caráter processual, penal, trabalhista, etc. A dissociação total das disciplinas nem sempre é possível, e o choque por vezes é inevitável, irradiando toda sorte de questões derivadas dessa interligação das disciplinas jurídicas, tais como:
aplica-se ao menor emancipado, o disposto no art. 793 da CLT, relativamente à capacidade processual? e o disposto no art. 439, relativamente à outorga de quitação na rescisão contratual? e quanto aos demais dispositivos de proteção ao menor, constantes na Consolidação e legislação esparsa?
Assim, podemos constatar o quão diversificadas são as hipóteses envolvendo a presente temática, não sendo possível aplicar-se uma única solução para todas elas, sob pena de, à antinomia verificada, ministrar-se remédio impróprio.
A Economia Própria:
Prescreve o art. 5º do Código Civil:
Art. 5º - A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Parágrafo único - Cessará, para os menores, a incapacidade:
I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;
II - pelo casamento;
III - pelo exercício de emprego público efetivo;
IV - pela colação de grau em curso de ensino superior;
V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.
Neste estudo em particular, trataremos do disposto no inciso V, que diretamente implica em duas questões de imediato interesse no Direito do Trabalho, sendo a primeira delas, a própria formação do vínculo de emprego do menor quando preenchidos os requisitos dos arts. 2º e 3º da CLT, questão que por certo muitas vezes deverá ser apreciada incidentalmente por magistrados da Justiça Comum, como pressuposto necessário à verificação da capacidade de estar em juízo do menor, que se diz - ou contra o qual se atribui - a pecha de empregado. A segunda questão, e que por certo nos irradia maior curiosidade no momento, é no que diz respeito à formação de economia própria, esta por seu turno apreciável segundo critérios objetivos e subjetivos de diversas ordens, como veremos mais adiante.
Mas... que critérios são esses? o que teria pretendido ou idealizado o legislador, com tão imprecisa colocação? Qual seria a mens legis da economia própria ?
A primeira impressão que dita referência legal nos causa é sua sinonímia com o conceito de independência econômica, a qual se traduz em absoluta desvinculação de qualquer outra fonte de subsistência que não a própria; não depender economicamente de ninguém; sustentar-se através de meios próprios, enfim, gerar e administrar sua própria fonte de renda e sustento, à custa de vínculo empregatício, sendo esta, ao que parece, a essência do dispositivo sob comento.
Contudo, a questão não se limita unicamente a conceituar a economia própria como status jurídico, indo mais além, percorrendo não apenas o que é, mas principalmente a partir de quando é e como dar ao dispositivo aplicação prática, ou seja, queremos respostas a algumas questões imediatas:
- Como atribuir a emancipado ao menor em razão de seu emprego?
- Como exteriorizar essa situação jurídica?
- Como convencer as demais pessoas que com ele contratam, de que o mesmo detém plena capacidade civil e disponibilidade sobre seu patrimônio ?
Tendo em vista que o legislador civil limitou-se a dispor a regra sem qualquer parâmetro de aferição, cabe à doutrina e à jurisprudência, cada qual em seu papel didático e criador, darem os contornos necessários à tipificação da economia própria. Em razão da jovialidade da matéria, infelizmente nossas fontes de estudo e pesquisa ainda são escassas, o que não impede que formulemos algumas considerações sobre o tema de forma despretenciosa, como medida de incentivo e amor aos estudos.
Falávamos anteriormente acerca da sinonímia entre as expressões economia própria e independência econômica.
Cumpre-nos a tarefa de visualizar a caracterização da economia própria, para efeitos de reconhecimento da capacidade adquirida, objetivando conhecer qual o melhor critério e quais os elementos a serem avaliados para se concluir se um menor com 16 anos completos, em virtude de seu emprego, possui ou não economia própria.
Citemos um exemplo prático:
Um jovem com idade de 17 anos, precocemente famoso atleta de futebol, percebendo rendimentos de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) mensais, poderia enquadrar-se no status jurídico como "empregado possuidor de economia própria" ?
Todos os ventos parecem soprar em direção a uma única afirmação: "sim, sem dúvida", diríamos em uníssono. Em que pese também pendermos pelo acatamento à referida resposta, não olvidamos que a mesma carece de uma maior amplitude, vale dizer, de uma análise mais aprofundada do caso concreto.
Com efeito, sequer questionamos se o atleta de futebol referido possui o necessário discernimento e maturidade para gerir a vultosa quantia que transparentemente possui e que aumenta a cada mês que mantém o seu vínculo de emprego. Em face de tal questionamento, constatamos que não seria prudente analisar apenas a questão fática e objetiva das cifras (R$ 500.000,00 mensais!), as quais, de início, impressionam o intérprete e tendem a persuadi-lo em optar por uma resposta induzida, a qual nem sempre será a melhor, posto ter ignorado outros fatores de indispensável análise e consideração.
As cifras, ora, as cifras... são apenas dinheiro. Riqueza material acumulável. Assim como o dinheiro, sozinho, pode não trazer toda a felicidade à pessoa humana, como se infere do tão conhecido adágio de sabedoria popular, também pode, no campo do Direito, não ensejar a sua plena capacidade jurídica. Não vemos como fulcrar a caracterização da economia própria unicamente em um conceito financeiro, afinal, a lei não emancipa o empregado que possua finança ou poupança própria, mas economia própria em função de vínculo empregatício, conceitos terminantemente distintos.
A economia, como ciência que é, empresta seu significado para conceituar o fenômeno, ou a situação jurídica que ora estamos buscando. Economia provém do grego óikos (casa) + nomós (regra). Ao pé da letra, regras da casa, que podemos facilmente entender como organização de uma atividade, de um negócio ou mesmo de uma simples casa ou lar. Economia estatal, negocial, doméstica, não importa. Em todos os ramos de atuação humana onde se verifique o uso ou predominância de valores, temos que esses valores merecem e exigem organização. A organização ou administração de uma fonte produtiva de bens ou valores, pode ser conceituada como economia, e sob todos os ângulos pelos quais se analisa, constata-se o indissociável elemento da administração, organização e regramento, sem os quais não se têm economia, mas mero acúmulo material de riquezas. "Casa onde ninguém manda, desanda", já diria um outro antigo adágio popular.
A idéia de economia própria, segundo pensamos, vem calcada em elementos objetivos e subjetivos. Os elementos objetivos transparecem pela própria condição de empregado; nos rendimentos auferidos; na aquisição de bens materiais e imateriais e no acúmulo de riquezas. São os indícios (não certeza!) primários de que determinada pessoa com 16 anos completos possui economia própria. Mas só isso não basta, em nossa modesta opinião.
Os elementos subjetivos demandam certa análise intrínseca do agente, bem como de sua vida pessoal e estado psicológico. Um atleta com 17 anos, como o do nosso exemplo, pode ser financeiramente milionário, mas absolutamente imaturo e dependente, de modo que todos os seus negócios sejam acompanhados (e até celebrados) por seu pai ou algum parente sob cujo teto conviva ou dependa. Havendo ainda essa presença marcante e fundamental da figura paterna ou materna (ou do representante legal) na vida negocial do menor, e sendo esta presença fundamental para lhe garantir parte do sucesso no empreendimento realizado, estará caracterizada a sua imaturidade e a consequente dependência moral ou psicológica, fatores que a nosso entender, desde que devidamente constatadas e provadas, por excepcionais, impediriam a caracterização da economia própria, e consequentemente, da emancipação prevista no art. 5º, parág. Único, inciso V do NCC. Ressaltamos, contudo, que diante dos fatos objetivamente auferíveis, deve-se presumir (presunção hominis iuris tantum) que o menor, dotado de tamanha fortuna material, detenha economia própria; o contrário é que deve ser provado, e isto voltaremos a comentar, quando abordarmos os aspectos do requerimento judicial da emancipação pelo menor, ou por seus representantes legais.
Com efeito, vimos que economia não é sinônimo de dinheiro na poupança - e nem poderia ser; economia traduz a idéia de operação e gerenciamento de uma determinada atividade ou renda, constituindo um universo próprio que requer administração para bem continuar e produzir utilidades.
Sendo assim, apenas dinheiro não bastará para conferir ao menor a sua economia própria emancipatória. É necessário, a nosso ver, que o jovem empregado, menor de 18 (dezoito) anos e maior de 16 (dezesseis), detenha também a plena independência gerencial de seus negócios, a maturidade suficiente para dele dispor e a independência moral e psicológica de que cuidamos linhas atrás, revelando-se assim, apto a tal mister, sob pena de se traduzir o dispositivo legal sob comento, em nociva arma operante contra aqueles a quem se pretendeu beneficiar.
Por tudo o que até aqui foi mencionado, somos obrigados a divergir do ilustre jurista Lima Teixeira, o qual contudo parabenizamos por ter sido um dos poucos que, das obras consultadas, enfrentaram o tema de frente. Diz o mestre que "por economia própria, pode-se entender a obtenção de renda ou remuneração suficientes para o próprio sustento, ou seja, pelo menos o correspondente a um salário mínimo" (in "Instituições...", Ed. Saraiva, 2003, p. 245).
Conforme se verifica, o posicionamento adotado por Lima Teixeira confere a emancipação a todo e qualquer empregado menor, entre 16 e 18 anos, desde que contra ele não seja infringida a cláusula legal de pagamento do salário mínimo. Adotando tal entendimento, teríamos nesse caso um critério objetivo de aferição da capacidade dos menores-empregados, o que na prática acabaria por significar a emancipação ipso factu de todo e qualquer menor-empregado, exceto aqueles que, em situação irregular, percebessem salário inferior ao mínimo legal.
Não cremos tivesse o legislador percorrido em busca de tal finalidade, pois fosse assim, desnecessário seria a menção legal à economia própria, cuja riqueza do contexto parece transbordar da simples hipótese objetiva do percebimento, pelo empregado, de um salário mínimo mensal (o que não significa que um empregado menor, ganhador de tão ínfima quantia, não pudesse vir a obter a emancipação com base no art. 5º, parág. Único, V do NCC, conforme as condições verificadas no caso concreto).
Em sendo assim, pensamos que, mesmo percebendo vultosos salários, não se haverá de constituir a emancipação do menor, quando imaturo e dependente moral, o que se constata das mais variadas formas, entre as quais, o gasto irresponsável (no sentido informal do termo), a presença constante da figura paterna ou tutelar nos negócios, a ausência de juízo e bom senso nas aquisições, doações, vida desregrada, fracassos grosseiros nos investimentos, ser tapeado nos negócios, etc. Como já mencionado, tais fatos devem ser rigorosamente provados, presumindo-se sempre que o menor empregado, com 16 anos completos, esteja apto a ser emancipado.
Em sentido diametralmente oposto ao exemplo prático que vínhamos expondo, passemos agora a apresentar o seguinte quadro imaginário (mas tão real neste Brasil!): menor com 16 (dezesseis) anos completos obtém um emprego remunerado pelo salário mínimo, com o qual sustenta seu pai e mãe idosos e/ou inválidos, e irmãos pequenos. Controla as contas domésticas, põe comida em casa e auxilia seus pais nos tratos com terceiros.
Em que pese o salário ser muito baixo, a ponto de muitos negarem a possibilidade de se vislumbrar qualquer sombra de economia própria num caso como esse, de nossa parte, não temos dúvida a respeito de sua plena caracterização, d’onde uma vez mais constatamos que as cifras não constituem elemento único e isolado do referido status jurídico, pois somam-se aos demais elementos já verificados, os quais são objetivos e subjetivos, sendo que o salário, em verdade, representa apenas um dos elementos objetivos, restando outros do mesmo gênero, além dos subjetivos, que neste último exemplo demonstram estar inequivocamente presentes (arrimo de família com senso de responsabilidade, discernimento, organização do lar, independência moral e psicológica, etc), demonstrando haver plenas razões para se atribuir a emancipação a este jovem, ainda que recebedor de tão ínfimo salário, que se esvai mensalmente no sustento precário de todos que dele se aproveitam.
Tecidas tais considerações, cabe agora um questionamento interessante, pertinente em face da notória sazonabilidade do contrato de trabalho em nosso país (em que pese a adoção pelo Direito do Trabalho, do princípio da continuidade do vínculo de emprego), pois sabemos o quão fácil é para um empregador despedir um empregado, bastando que pague indenização de 40% sobre os depósitos de FGTS, aliás, é possível despedir mesmo sem pagar qualquer indenização, ficando esta, quiçá, posteriormente reduzida a um iníquo acordo judicial parcelado.
Queremos com isso ressaltar que a realidade nua e crua que se apresenta nos moldes atuais, nos informa que infelizmente o empregado de hoje pode vir a ser - e com certeza será - o desempregado de amanhã. Razões de ordem pública, atinentes à segurança nas relações jurídicas justificam a irreversibilidade do status emancipatório. Em sendo assim, uma vez verificada a emancipação decorrente de emprego com economia própria, ainda que, antes de completar 18 (dezoito) anos, venha o menor a ser despedido, ou que posteriormente venha a tornar-se dependente, não mais retornará ao estado anterior, conservando portanto, a plena capacidade adquirida e somente vindo a perdê-la por outras causas legalmente previstas (enfermidade ou deficiência mental, toxicomania, ebriedade, prodigalidade, etc). No mesmo sentido, a doutrina majoritária se manifesta em relação ao menor emancipado pelo casamento: "...mesmo havendo a dissolução da sociedade conjugal (pelo divórcio, separação judicial ou morte), o emancipado não retorna à anterior situação de incapacidade civil." (in Novo Curso de Direito Civil, Vol. I, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Ed. Saraiva, ano 2002, p. 113).
Face a tais constatações, é perfeitamente possível que venhamos a ter notícias de um menor atleta de futebol, que aos 16 anos seja considerado um milionário fenômeno esportivo, e aos 17 venha a contrair uma patologia que o impeça de continuar nos campos, vindo a perder tudo o que ganhou, retornando à miséria de onde surgiu, conservando, porém, o status de emancipado. É um quadro possível, que a lei possibilita e para o qual não se vislumbra solução, pois o retorno ao estado anterior, ou seja, ao status de relativamente incapaz poderia ser um duro golpe a terceiros de boa-fé, assim como à sociedade em geral, que não admite tamanha inconstância e instabilidade nas relações jurídicas.