2 Comparando as legislações
Todos os países mencionados permitem o aborto em caso de estupro, alguns com condições quanto à duração da gestação ou o reconhecimento jurídico do crime que resultou em gravidez. Também é permitido em todos o aborto a qualquer tempo para salvar a vida da mãe. Já a África do Sul e Uruguai permitem o aborto em casos de grave deformidade do feto, que impossibilite a vida extrauterina plena.
Como vimos, no Brasil somente são permitidos o aborto em caso de estupro, não sendo, entretanto, necessário a comprovação judicial do ato, apenas a manifestação de vontade da vítima mediante o procedimento previsto na Portaria MS/GM nº 1.508, de 1º de setembro de 2005[30]. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 54 também coincide com o previsto nas legislações do Uruguai e da África do Sul, ao permitir o aborto em caso de anencefalia, já que esta má formação ocasiona, na maioria dos casos, morte do bebê pouco tempo após o parto.
As hipóteses discutidas ao longo da tramitação do PL 1135/91, com a legalização da interrupção da gravidez por vontade da gestante até a 12ª semana, estão em consenso com a maioria dos países estudados, sendo este prazo o mais comumente adotado nas legislações trabalhadas.
Oposição à legalização do aborto é encontrada, dentre os países estudados, principalmente nos Estados Unidos, África do Sul e Brasil. No primeiro, apesar de o procedimento ser regulamentado há várias décadas e não poder ser proibido permanentemente sem que haja afronta aos princípios constitucionais, a interrupção da gravidez vem encontrando entraves e restrições nas legislações estaduais.
Na África do Sul, por sua vez, ainda há um estigma social cercando a prática do aborto, que leva muitas mulheres a buscar abortos inseguros por medo de não serem bem tratadas pelos profissionais credenciados, de não terem seu direito a confidencialidade respeitado e pelos longos períodos de espera encontrados nos centros de saúde[31]. Já no Brasil, apesar de recomendações feitas pelo próprio CFM, ainda é possível verificar uma forte rejeição à possíveis modificações na legislação, encabeçada por movimentos conservadores.
Já nos demais países estudados, percebe-se uma maior aceitação da prática, com especial destaque para a França. Ao longo das décadas seguintes à legalização do aborto, diversas leis foram implementadas a fim de assegurar maior facilidade no acesso à interrupção da gravidez. No Uruguai, dado o curto decurso de tempo desde a promulgação da lei, ainda não foi verificado uma forte oposição à interrupção da gravidez, sendo a mais expressiva até o momento uma decisão judicial que afirma a possibilidade de médicos se recusarem a praticar abortos por questões morais ou religiosas pessoais.
Percebe-se, então, que mesmo nos países onde o aborto já é legalizado há muito tempo, diversos debates ainda surgem a respeito do assunto, tanto no campo legislativo como no meio social. Novas projetos de lei são, a todo momento, sugeridos, com medidas visando criar novas restrições, banir permanentemente ou, em alguns casos, facilitar o acesso das mulheres à interrupção da gravidez.
O aspecto religioso destaca-se nos debates relacionados ao aborto, especialmente nos Estados Unidos e Brasil. Segundo Dworkin:
O movimento antiaborto é liderado por grupos religiosos, utiliza uma linguagem religiosa, invoca Deus o tempo todo e frequentemente atribui uma grande importância à oração. Congrega membros de muitas religiões, como sugerem as estatísticas [...], incluindo não apenas fundamentalistas, mas também judeus ortodoxos, mórmons e muçulmanos negros. A liderança organizacional, porém, fica a cargo dos católicos[32].
As ideologias defendidas por estes grupos variam desde a completa proibição do aborto, em qualquer caso, até a simples maior regulamentação. No Brasil, por sua vez, os movimentos são dirigidos especialmente por membros de religiões cristãs. Destacam-se documentos distribuídos pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), como o Manual de Bioética para Jovens[33], onde condena-se o aborto em todos os casos, além de criticar alguns métodos contraceptivos por considera-los abortivos. Merece comentário, também, o fato de que grande parte dos PL que visam endurecer as leis sobre direitos reprodutivos no Brasil são apresentadas por legisladores associados a bancadas religiosas.
Apesar das peculiaridades encontradas em todos os países estudados, percebe-se que a oposição à interrupção voluntária da gravidez geralmente baseia-se em conceitos similares, como a defesa da vida do feto, em geral fortalecida por noções religiosas.
3 Aborto e direitos humanos
A decisão da Suprema Corte americana que descriminalizou o aborto se baseou no direito à privacidade da mulher, de não permitir que o Estado tome decisões que caberiam exclusivamente ao indivíduo. Desta forma, o aborto pode ser considerado neste país como uma forma de expressão de um direito fundamental constitucionalmente assegurado.
A Organização das Nações Unidas, na Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em Pequim, no ano de 1995, urge os Estados participantes a “considerar a possibilidade de rever as leis que preveem medidas punitivas contra as mulheres que se tenham submetido a abortos ilegais”[34], por reconhecer a ineficácia das medidas criminais. Ainda nesta Conferência, afirma-se que “A capacitação das mulheres para controlar sua própria fertilidade constitui uma base fundamental para o gozo de outros direitos”[35]. Caberia então ao Estado apenas o papel de informar, educar e fornecer meios seguros para que a mulher faça valer suas decisões.
Neste mesmo sentido, destacam-se duas decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU de 2016, uma relativa a um caso na Irlanda[36], onde o aborto é proibido em todas as hipóteses, e outro no Peru[37], onde a prática é parcialmente permitida. Em ambos os casos os fetos exibiam graves deformidades físicas que impediam a vida extrauterina, o que, ao menos no Peru, caracterizava uma hipótese de aborto legal. No entanto, em ambos os casos as mulheres foram impossibilitadas de realizar o procedimento.
O Comitê julgou que as leis irlandesas submeteram a mulher a tratamento discriminatório e degradante, já que esta teve que se deslocar para um país vizinho em busca do procedimento. No Peru, apesar de permitido, o aborto foi recusado com a justificativa de que não haveria regulamentação suficiente, obrigando a mulher a levar sua gestação a termo, apenas para ver o bebê falecer poucos dias depois. Em ambos os casos a ONU reconheceu que os impedimentos no acesso ao aborto ocasionaram graves violações aos direitos humanos.
No Brasil, ainda há uma grande relutância em diversos setores da sociedade em associar o aborto com os direitos reprodutivos e sexuais, defendidos nos tratados mencionados, e com o direito ao planejamento familiar, presente na própria CF/88. Nas palavras de Piovesan[38], é “necessário dar maior visibilidade à construção conceitual de direitos reprodutivos, que, em sua complexidade, envolvem a concepção, o parto, a contracepção e o aborto, como elementos interligados”, em que, segundo Ávila[39], “a impossibilidade de acesso a qualquer um deles remete a mulher para um lugar de submissão”.
A manutenção do aborto como crime põe em risco toda uma parcela da população, que, ao tentar por em prática o seu direito de autodeterminação, liberdade sexual e de planejamento familiar, acaba arriscando a própria vida e integridade física. O direito à vida em potencial, no caso do feto, não pode se sobrepor completamente aos demais direitos da mulher, visto que esta negação do acesso ao direito à saúde e à igualdade de tratamento violam, por si só, o princípio da dignidade humana.
No plano prático, o direito à igualdade não é violado apenas nas relações de gênero, já que em nenhum momento a lesgislação obriga indivíduos do sexo masculino a tamanha perda da “soberania sobre si mesmo”[40], nas palavras de Franco. A igualdade é também ferida no momento em que a parcela mais pobre da população acaba por ser a mais penalizada por essa criminalização. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA)[41], publicada em 2010, o índice de mulheres que afirmam ter realizado ao menos um aborto na vida é maior dentre aquelas com escolaridade mais baixa. Esta pesquisa revelou também que mais da metade das mulheres tiveram que receber atendimento hospitalar por causa do aborto, revelando que o nível de complicações resultantes de abortos inseguros ainda permanece alto. Desta forma, segundo Emmerick, percebe-se que:
[...]apesar de todos os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro perante a ordem internacional e das recomendações internacionais, não há, efetivamente, um empenho do governo brasileiro (muito menos do legislativo) em descriminalizar/legalizar o aborto. Tal fato faz com que a prática do aborto permaneça tipificada como crime na legislação penal, violando os direitos humanos das mulheres.[42]
A classificação do aborto como crime está presente na legislação brasileira a quase dois séculos, e, levando em consideração números apontados pelo MS já apresentados, não tem causado outro resultado que não a morte de milhões de mulheres ao longo dos anos e gerando, nas palavras de Sarmento, uma “lesão coletiva ao direito de saúde das mulheres brasileiras em idade fértil”[43].
Considerações finais
Dentre os objetivos deste trabalho, idealizados ainda na fase de projeto, destacava-se, inicialmente, conhecer de que maneira o aborto se apresenta na legislação estrangeira. Através da pesquisa bibliográfica e documental, foi possível montar um panorama sobre a interrupção voluntária da gravidez em alguns países escolhidos, através da análise de leis e escritos doutrinários relativos a cada um deles. Estados Unidos, França, África do Sul e Uruguai, países tomados como amostras, tem em comum o fato de que todos legalizaram o aborto nas últimas décadas, entretanto, conforme demonstrado ao longo do texto, cada um apresenta particularidades no debate que ainda cerca o assunto.
Enquanto em alguns, como Estados Unidos, o aborto enfrenta forte oposição, organizada especialmente por grupos religiosos, em outros, como França e Uruguai, a prática é aceita de maneira bem mais suave, com visível empenho dos governos em fazer valer o que está previsto em lei. Na África do Sul, por sua vez, o que se verifica é a falta de informação e a dificuldade de acesso físico aos centros médicos.
Em seguida, buscamos analisar a forma como a legislação pátria trata o aborto, através do estudo da atual legislação em vigor e de diversos PL apresentados no decorrer do tempo. Foi possível notar que, apesar de ser considerado crime desde legislações anteriores, o tratamento dado ao aborto na legislação penal não vem obtendo êxito naquele que seria seu principal objetivo, a defesa da vida. Pesquisas apresentadas demonstram que o número de abortos e, em especial, mortes de mulheres decorrentes da prática de procedimentos inseguros, ainda figura como uma das maiores causas de internação e morte de gestantes.
Estes dados não impedem que, de maneira similar aos Estados Unidos, grupos conservadores e religiosos continuem a tentar reduzir ainda mais as hipóteses em que o aborto é legal. Não obstante, existem também iniciativas voltadas para o relaxamento das punições, como as recomendações do próprio CFM.
Comparando as legislações estudadas, percebe-se cada país, devido a suas diferentes influências culturais e sociais, vê o aborto de maneira diferente. Através da pesquisa exploratória, foi possível notar que, mesmo possuindo legislações semelhantes, cada um possui um foco diferente no debate que cerca a interrupção voluntária da gravidez. Entretanto, pode-se perceber que, em geral, as diversas formas de ação de grupos antiaborto acabam por impedir que milhares de mulheres destes países tenham acesso a um procedimento que lhes é legalmente autorizado.
Os entraves no acesso a este serviço médico pode então ser relacionado a violações graves de direitos humanos. No Brasil, apesar de assegurada a igualdade de gênero em todos os níveis, inclusive no planejamento familiar, o que ainda se vê rotineiramente são inciativas voltadas para dificultar ainda mais o acesso a direitos básicos como saúde e autodeterminação do próprio corpo.
Logo, apesar de o aborto em si não ser necessariamente considerado um direito, o impedimento e os entraves colocados no caminho da mulher que deseja praticá-lo acaba, sim, por violar outros direitos fundamentais, que deveriam ser assegurados sem distinção a todos os seres humanos. Nas palavras do relatório apresentado pelo CFM:
[...]os atuais limites excludentes da ilicitude do aborto previstos no Código Penal de 1940, os quais vêm sendo respeitados pelas entidades médicas, são incoerentes com compromissos humanísticos e humanitários, paradoxais à responsabilidade social e aos tratados internacionais subscritos pelo governo brasileiro.[44]
A busca pela proteção da vida não deve jamais se distanciar do princípio da dignidade humana, norteador de todas as relações jurídicas. O caminho para a solução da situação do aborto não deve passar exclusivamente pelo direito criminal, bem como não se pode esquecer que a vida do feto não é a única ameaçada. Novas soluções devem ser buscadas, onde devem ser ouvidas aquelas que mais sofrem com toda essa situação e postos de lado conceitos e preconceitos de cunho exclusivamente moral ou religioso. Conforme visto nos demais países estudados, é sim possível dar o poder de escolha à gestante e proteger a vida ao mesmo tempo.