IV – O Contraditório Capítulo Processual
Curiosamente, a Lei se ocupou em definir no art. 11 a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento dos crimes de terrorismo, preocupando-se até mesmo em afirmar que se presume o interesse da União no delito, quando já existe previsão constitucional no art. 109, IV, C.F. – e até mesmo procedimento recursal específico (art. 102, II, “b”) – para os chamados crimes políticos, categoria que a doutrina de forma praticamente unânime entende referir-se aos crimes contra a segurança nacional, nos quais se insere historicamente o terrorismo, o que não se confunde com crimes de natureza política, dentre os quais não pode ser incluído o terrorismo.
Estas disposições processuais, portanto, tangenciam uma potencial inconstitucionalidade formal, na medida em que induzem (ambiguamente) a uma possível usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, para o julgamento de recurso ordinário constitucional interposto das decisões do Juiz Federal em processos pelo crime de terrorismo, quando este for praticado com motivação político-ideológica.
Mais uma razão existe, desse modo, para concluir-se que continua vigorando o art. 20, da Lei de Segurança Nacional.
E, não bastasse afirmar de forma voluntariosa a competência da Justiça Federal, a Lei ainda se preocupa em complementar a Lei nº 10.446/2002, que define atribuições da Polícia Federal em casos de natureza interestadual ou internacional, para lá incluir os delitos de terrorismo, quando a própria Constituição Federal, em seu art. 144, § 1º, I e IV, já incumbe à Polícia Federal a missão de investigar crimes contra a ordem política e social, bem como de exercer, com exclusividade, a função de polícia judiciária da União.
Melhor teria feito se, pressupondo já vigentes as normas que tratam das atribuições do Departamento de Polícia Federal, houvesse estabelecido procedimentos de alçada da Agência Brasileira de Inteligência, à qual o art. 4º, III, da Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1998, encarrega da missão permanente de avaliar as ameaças internas e externas à ordem constitucional, no que se inclui, obviamente, a tarefa de contraterrorismo[xviii].
Verdade que o Projeto aprovado pelo Congresso Nacional continha um parágrafo único ao art. 11, que estipulava o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, ao que se subordina a Agência, como órgão de coordenação do sistema antiterrorista, mas este foi vetado pela chefe do Executivo, sob o tíbio fundamente de que a disposição limitaria a discricionariedade da Presidência da República para organizar a administração federal. Fosse esta realmente a razão para o veto, igualmente deveria ter incidido sobre as voluntariosas disposições anteriores, sobre o Departamento de Polícia Federal, também integrante da administração pública federal, e sob a direção do Poder Executivo.
V – Conclusões
Por todas as razões expostas nos itens anteriores, é forçoso concluir que a Lei nº 12.360, de 2016, é mais uma da nem tão pequena lista de diplomas normativos que mais tumultuam do que auxiliam o ordenamento jurídico pátrio.
O país conviveu por anos com uma lacuna normativa grave, no tocante à tipificação adequada do crime de terrorismo, apesar de diversas propostas bem harmonizadas com os valores e princípios consagrados pela Constituição Federal e com as tradições jurídico-penais do Brasil.
Porém, de forma açodada e desorganizada, terminou-se produzindo uma legislação antiterrorista incompleta, que não aborda uma das formas mais recorrentes de terrorismo, que é aquele de natureza político-ideológica. Com isto, manteve vigente a o art. 20, da Lei de Segurança Nacional, que tipifica os atos de terrorismo praticados com os objetivos de lesionar a integridade territorial e a soberania nacional; o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; e as pessoas dos chefes dos Poderes da União.
Ademais, criou uma esdrúxula modalidade de desistência voluntária em espécie de crime que logicamente não a admite (“participar de treinamento”), a qual, muito provavelmente, culminará por inviabilizar uma das únicas inovações elogiáveis da lei, que é a prevenção à radicalização, por meio da repressão ao recrutamento e treinamento de membros para organizações terroristas.
De outro lado, a nova legislação que se omitiu em partes tão essenciais, esmerou-se em reafirmar disposições constitucionais e legais já sobejamente estabelecidas, na esfera processual, com uma prolixidade tamanha que pode induzir a problemas na esfera recursal, diante da competência constitucionalmente reservada ao STF, para exercer o segundo grau de jurisdição nos crimes políticos.
Seja como for, promulgada a nova legislação, com todas as suas falhas, dela dependerá o país, pressupondo-se a necessária integração desta ao restante do ordenamento jurídico, aos instrumentos internacionais aplicáveis, e especialmente, com a Constituição Federal.
Espera-se, por fim, que as desventuras na aplicação da nova lei não acabem por produzir ineficácia das instituições jurídicas brasileiras na eventualidade de episódio terrorista que lhes seja dado a conhecer, caso em que somente uma avocação da controvérsia do Tribunal Penal Internacional seria capaz de evitar uma completa impunidade a crimes tão hediondos.
Notas
[i] DE SOUZA SOARES, Denise. De Marx a Deus: Os tortuosos caminhos do terrorismo internacional. Renovar, 2003.
[ii] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Code. “As used in this chapter— (1) the term “international terrorism” means activities that—(A) involve violent acts or acts dangerous to human life that are a violation of the criminal laws of the United States or of any State, or that would be a criminal violation if committed within the jurisdiction of the United States or of any State; (B) appear to be intended—(i) to intimidate or coerce a civilian population; (ii) to influence the policy of a government by intimidation or coercion; or (iii) to affect the conduct of a government by mass destruction, assassination, or kidnapping; and (C) occur primarily outside the territorial jurisdiction of the United States, or transcend national boundaries in terms of the means by which they are accomplished, the persons they appear intended to intimidate or coerce, or the locale in which their perpetrators operate or seek asylum; (2) the term “national of the United States” has the meaning given such term in section 101(a)(22) of the Immigration and Nationality Act; (3) the term “person” means any individual or entity capable of holding a legal or beneficial interest in property; (4) the term “act of war” means any act occurring in the course of— (A) declared war; (B) armed conflict, whether or not war has been declared, between two or more nations; or (C) armed conflict between military forces of any origin; and (5) the term “domestic terrorism” means activities that— (A) involve acts dangerous to human life that are a violation of the criminal laws of the United States or of any State; (B) appear to be intended— (i) to intimidate or coerce a civilian population; (ii) to influence the policy of a government by intimidation or coercion; or (iii) to affect the conduct of a government by mass destruction, assassination, or kidnapping; and (C) occur primarily within the territorial jurisdiction of the United States” . Tradução livre, texto com as adaptações do “USA Patriot Act” (Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism), promulgado como Public Law nº 107-056, de 26/10/2001, disponível em: <https://www.gpo.gov/fdsys/pkg/USCODE-2010-title18/html/USCODE-2010-title18-partI-chap113B-sec2331.htm>, acesso em 22 abr. 2017.
[iii]MÉXICO. Código Penal Federal. Disponível em: http://mexico.justia.com/federales/codigos/codigo-penal-federal/libro-segundo/titulo-primero/capitulo-vi/#articulo-139, acesso em: 22 abr. 1999.
[iv]DIAZ DE LEÓN, Marco Antonio. Código Penal Federal con Comentarios. México: Porrúa, 1994.
[v]F. PACE, Edgadrdo. Encicplopedia Jurídica Omeba – tomo XXVI. Buenos Aires: Ed. Bibliográfica Argentina, 1968 apud DIAZ DE LEÓN, Marco Antonio. “El Terrorismo como Delito em lo Internacional y em México” in Iter Criminis: Revista de Derecho y Ciências Penales. México, nº 1, p. 213-243, dic. 2001.
[vi]ARGENTINA. Código Penal da República Argentina – Lei nº 11.179 de 30/09/1921, disponível em <http://www.jusneuquen.gov.ar/share/legislacion/leyes/codigos/codigo_penal/CP_art209a213bis.htm>, acesso em 13 jan. 2006.
[vii]ARGENTINA. Lei nº 26.734, de 28 dez. 2011: “ARTICULO 41 quinquies — Cuando alguno de los delitos previstos en este Código hubiere sido cometido con la finalidad de aterrorizar a la población u obligar a las autoridades públicas nacionales o gobiernos extranjeros o agentes de una organización internacional a realizar un acto o abstenerse de hacerlo, la escala se incrementará en el doble del mínimo y el máximo. Las agravantes previstas en este artículo no se aplicarán cuando el o los hechos de que se traten tuvieren lugar en ocasión del ejercicio de derechos humanos y/o sociales o de cualquier otro derecho constitucional.”, disponível em: <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/15000-19999/16546/texact.htm#22>, acesso em: 22 abr. 2017;
[viii]PORTUGAL. Lei de Combate ao Terrorismo – aprovada pela Lei nº 52/2003, e suas alterações posteriores. Disponível em: < https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/67545383/201703311520/exportPdf/maximized/1/cacheLevelPage?rp=indice>, acesso em: 22 abr. 2017.
[ix]PORTUGAL. Decreto-Lei nº 400/82 – aprova o Código Penal da República Portuguesa.
[x]SARDINHA, José Miguel. O Terrorismo e a Restrição dos Direitos Fundamentais em Processo Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1989.
[xi]BRASIL. Lei de Segurança Nacional – 3ª ed.São Paulo: Saraiva, 1978.
[xii]FRAGOSO, Heleno Cláudio. A Nova Lei de Segurança Nacional in Revista de Direito Penal e Criminologia, nº 35 – Ed. Forense – Rio de Janeiro, jan./jun. 1983.
[xiii]FRAGOSO. Heleno Cláudio. Terrorismo e Criminalidade Política. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
[xiv]Portaria MJ nº 413 de 30/05/2000, constituída com o com o intuito de efetuar estudos sobre a legislação de Segurança Nacional e sugerir princípios gerais para nortear a elaboração de Projeto de Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito.
[xv]Projeto de Lei nº 6.764/2002, atualmente apensado ao Projeto de Lei nº 2.462/1991, aguardando a designação de Comissão Temporária pela Mesa da Câmara dos Deputados, disponível em <http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=18156&ord=1>, acesso em 12/01/2016.
[xvi] AMARAL, Vinícius Pasqueto. Lei 13.260/2016 "Antiterrorismo": A tipificação de atos preparatórios. Londrina, mai. 2016. Disponível em: <https://pascuetoamaral.jusbrasil.com.br/artigos/317284328/lei-13260-2016-antiterrorismo-a-tipificacao-de-atos-preparatorios>. Acesso em: 03 fev. 2017.
[xvii] “O crime habitual não admite tentativa, pois o que o caracteriza é a prática reiterada de certos atos que, isoladamente, constituem um indiferente penal. Conclusão: o há reiteração e o crime consumou-se, ou não há reiteração e não há crime. (...) A desistência voluntária só é possível na tentativa imperfeita, porquanto na perfeita o agente já esgotou toda atividade executória. BITTENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito: Uma visão panorâmica da dogmática penal brasileira. Coimbra: Almedina, 2007, pp. 427-429.
[xviii] BRASIL, Decreto nº 8.793, de 29 jun. 2016 (fixa a Política Nacional de Inteligência): “6.6 Terrorismo - É uma ameaça à paz e à segurança dos Estados. O Brasil solidariza-se com os países diretamente afetados por este fenômeno, condena enfaticamente as ações terroristas e é signatário de todos os instrumentos internacionais sobre a matéria. Implementa as resoluções pertinentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. A temática é área de especial interesse e de acompanhamento sistemático por parte da Inteligência em âmbito mundial. A prevenção e o combate a ações terroristas e a seu financiamento, visando a evitar que ocorram em território nacional ou que este seja utilizado para a prática daquelas ações em outros países, somente serão possíveis se realizados de forma coordenada e compartilhada entre os serviços de Inteligência nacionais e internacionais e, em âmbito interno, em parceria com os demais órgãos envolvidos nas áreas de defesa e segurança.