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A Justiça Desportiva na Constituição Federal e o principio do acesso à justiça

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04/06/2017 às 08:38
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A ATUAL JUSTIÇA DESPORTIVA

Antes mesmo de discutirmos as afinidades características que são apresentadas entre o Direito Desportivo e os seus comparativos, é necessário saber como o Direito Desportivo é visto atualmente nos meios acadêmicos e suas implicações no mundo jurídico.

Ao analisarmos a matéria discutida, temos que nos confrontar com dois sub-ramos que lhe são atinentes: o Direito Desportivo puro e o Direito Desportivo híbrido, examinando esse 2.º sub-ramo com mais atenção, para deixar claras as três correntes existentes.

 O Direito Desportivo puro é assim considerado conforme preceitos estipulados em princípios fundamentais das ciências jurídicas, pois segue lições de Hans Kelsen. O Direito Desportivo é a matéria desportiva em si mesma e a Justiça dele advinda, como deixa explícito Kelsen em seus estudos, ao demonstrar que pureza é expurgação; é a exclusão de todo e qualquer tipo de matéria que não seja concernente ao estudo jurídico.

Conforme Kelsen diz:

“(...) Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza de seu objeto.”{C}[13]{C}

O Direito Desportivo Puro também é considerado como “puro” porque tem legislação, regras específicas à sua matéria e seus próprios julgadores e julgados, como ressalta do artigo 217 da Constituição Federal. A autonomia é a principal característica dessa pureza a que se referem os doutrinadores no tocante a este sub-ramo.

O Direito Desportivo híbrido apresenta diversas controvérsias quanto à sua natureza jurídica. Isso decorre em virtude da existência de sua interdisciplinaridade e da sua dependência com as matérias judiciais. Os conhecimentos das matérias jurídicas Desportivas geralmente são superficiais, o que significa, muitas vezes, inaptidão dos juristas em lidar com esse assunto.

Três são os entendimentos, sobre a natureza do direito do desporto. O primeiro entendimento diz existir o Direito Desportivo; que este ainda não é decorrente do mundo jurídico por não existir relevância socioeconômica sobre o assunto. Entende, também, que as questões concernentes à lide podem ser dirimidas por qualquer ramo do direito, regularmente constituído, que sejam condizentes com a matéria utilizada na solução do debate.

Nesse sentido, o Prof. inglês E. Grayson explicita:

“No subject exists which jurisprudentially can be called sports law. As a sound bite headline, shorthand description, it has no juridical foundation; for common law and equity creates no concept of law exclusively relating to sports does not differ from how it is found in any other social or jurisprudential category...”[14].

O posicionamento dessa corrente é, em suma, de que não há a necessidade da criação de qualquer tipo de direito quando se podem utilizar as tradicionais áreas do direito. Uma segunda corrente entende que o Direito Desportivo é matéria já corriqueira no mundo jurídico, pois esse instituto é proveniente das relações sócio-evolutitva. Entende também que, embora se relacione com o direito constituído é independente, uma vez que possui suas regras próprias.

Para os doutrinadores dessa corrente, como Luiz Roberto Martins Castro, existe, a necessidade da criação de regras gerais e a disciplina não é apresentada nos bancos acadêmicos por falta de profissionais capacitados com real conhecimento a respeito da disciplina. Por fim, essa linha acredita que o esporte passa muito além de ser apenas uma atividade de lazer e ócio.[15]

Um exemplo claro da interdisciplinaridade que ocorre no direito desportivo pode ser visto em eventos esportivos em que se faz necessária a aplicação das normas gerais cíveis nas relações contratuais ou a aplicação de Código de Defesa do Consumidor nas relações de venda e compra, entre outras inúmeras situações.

Outro exemplo são as corridas de velocidade (Formula Truck, Formula 1, Gran-Turismo, entre outros), ou nas lutas de boxe e artes-marciais em que há uma flagrante infração ao Código Nacional de Trânsito e ao Código Penal respectivamente.

Para os seguidores dessa corrente o Direito Desportivo é autônomo por possuir legislação e aplicação próprias, por acompanhar a evolução social e por ter princípios próprios.

A terceira e última corrente é um meio termo entre as duas correntes anteriores. Essa temática encontra-se em fase embrionária, pois segue as evoluções sociais, mas ainda necessita de reconhecimento no mundo jurídico.

Segundo Luiz Roberto Martins Castro, para que haja a autonomia desse ramo do Direito, são necessários dois requisitos:

“– autonomia científica da matéria; e

– o seu respectivo reconhecimento científico”[16].

A autonomia científica é apresentada por meio das publicações, como revistas e artigos especializados em Direito Desportivo, e que o reconhecimento científico ocorrerá com o tempo, como ocorreu com o Direito do Consumidor e o Ambiental.

A segunda corrente, que parece ser mais adequada, baseia suas idéias em fatos historicamente ocorridos, na evolução social na legislação e na aplicação desta ao cotidiano nacional.


DA COISA JULGADA, DA SENTENÇA ADMINISTRATIVA E DA SENTENÇA DESPORTIVA

Inicialmente, partiremos da premissa de que não há coisa julgada administrativa. É sabido que as sentenças administrativas são meros atos administrativos que trazem o caráter declaratório, criador, certificador e extintivo, mas todos com a característica homologatória, não abrigando os atos materiais, sendo estes destinados apenas ao cumprimento de atos concretos que a administração venha requerer, criando, modificando ou compatibilizando ao bom funcionamento da estrutura administrativa.

Conforme Diógenes Gasparini:

“(...)Da definição restam excluídos os atos legislativos, destinados a inovar a ordem jurídica. A indicação de que podem ser submetidos ao crivo do judiciário exclui da definição as decisões judiciais.(...)”(Grifo Nosso)[17]

Segundo esse autor, as sentenças administravas, por mais que emanem do Estado e sejam para particulares, não possuem a firmeza a que a coisa julgada está destinada, trazendo a segurança jurídica as relações sociais. Demonstra o STF, em sua Súmula 473, a possibilidade de alteração das sentenças administrativas no âmbito interno da sua estrutura, como apresentado a seguir.

A Súmula 473 editada pelo Egrégio STF, sobre o assunto prescreve que:

"A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los por motivos de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial” (grifos nossos).

O artigo 467 do atual diploma processual civil, disciplina que:

"denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário".

Assim, pela própria definição do Código Processual Civi, percebe-se o fenômeno da coisa julgada, qual seja, em coisa julgada material e coisa julgada formal. A coisa julgada formal consiste na inalterabilidade, na imutabilidade da sentença no mesmo processo em que foi proferida. Contudo, vale ressaltar que, a res judicata formal não evita que o objeto da apreciação da demanda volte a ser debatido em outra lide, haja vista que atua somente dentro da relação processual em que a sentença foi proferida.

O artigo 6.º da LICC protege a “Coisa Julgada” dos efeitos da Lei Nova:

"A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada".

Mas a coisa julgada segundo Enrico Tullio Liebman é:

"(...) o comando imutável quando o processo tenha chegado à sua conclusão, com a preclusão dos recursos contra a sentença nela pronunciada.

Nisso consiste, pois a autoridade de coisa julgada, que se pode definir, com precisão, como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato.(...)"[18] (grifos nossos) .

Para Chiovenda[19], a coisa julgada é a aplicação da lei ao caso concreto, transformando a abstração teórica a que os legisladores buscam, na realidade do real fato existente.

Já Carnelutti[20] entendia que a força da coisa julgada provinha da imperatividade que a sentença tem por emanar do Estado, de um ato estatal. Entendimentos destoantes entre si, mas que trazem ótimos conceitos e visões fundamentadoras para o atual conceito.

Autores como Moacyr Amaral dos Santos[21], entre outros, filiam-se a Liebman, discípulo de Chiovenda, no entendimento de que a força da coisa julgada está na eficácia, na imutabilidade e na segurança que a sentença transitada em julgado inclui ao mundo jurídico.

O artigo 467 do atual diploma processual civil apregoa que "denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário".

Assim, pela própria definição citada pelo Código Processual Civil, percebe-se que há uma divisão do fenômeno da coisa julgada, qual seja, em coisa julgada material e coisa julgada formal.

Nos dizeres do notável processualista Humberto Theodoro Júnior, a diferença precípua entre a coisa julgada material e a coisa julgada formal, reside apenas no grau de um mesmo fenômeno, uma vez que ambas decorrem da impossibilidade de interposição de recurso contra a sentença.

Desse modo, segundo a melhor doutrina, a coisa julgada formal consiste na inalterabilidade, na imutabilidade da sentença no mesmo processo em que foi proferida, ou seja, "ocorre à coisa julgada formal quando não mais se pode discutir no processo o que já se decidiu."

Contudo, vale ressaltar que, a res judicata formal não evita que o objeto da apreciação da demanda volte a ser debatido em outra lide, haja vista que atua somente dentro da relação processual em que a sentença foi proferida.

Os motivos que obstam essa possibilidade residem em duas questões: seja pelo fato de a sentença ter sido proferida pelo órgão de mais alto grau de jurisdição, ou seja, porque decorreu o prazo para recorrer sem que o vencido interpusesse recurso.

No que concerne a coisa julgada material, diferentemente da coisa julgada formal, há o impedimento de que se discuta em outro processo o que já se decidiu. Assim, encontra-se na res judicata material as características da imutabilidade e da indiscutibilidade.

Logo, na coisa julgada material, há a perfeita prestação jurisdicional do Estado, ou seja, há a própria decisão de mérito do processo, ensejando a resolução completa da lide. Isto posto, como aduz o artigo 468 do CPC, "a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas."

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Por fim, cabe pormenorizar que a coisa julgada formal está contida na coisa julgada material, sendo inerente a esta. Isto porque, como bem asseverado pelo douto Humberto Theodoro Júnior, a diferença destes dois institutos reside apenas no grau de um mesmo fenômeno.

Em síntese, em qualquer esfera do Direito, o fenômeno da res judicata como a decisão propalada pelo Estado-juiz, a qual não seja passível a rediscussão da matéria que foi levada à apreciação.

Quanto à questão da Justiça Desportiva, reaplicaremos a afirmação de Álvaro Melo Filho[22] de que é a única que tem natureza administrativa constitucionalmente prevista.

No entanto, mesmo das decisões administrativas cabe revisão no tocante à sanções, conforme dispõe o art. 65 da Lei 9.784/1999, que diz:

"Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada”.

Adotemos o entendimento, sobre o direito adquirido, dos doutrinadores Celso Ribeiro de Bastos e Luís Roberto Barroso[23] de que, seguindo a LICC no seu art. 6ª, o direito adquirido seria a possibilidade de exercer seu justo direito contra outrem, sendo que este está previsto em lei e que o poder legiferante do Estado torna-se impotente nas devidas proporções.

A doutrina processual é extremamente clara quando fala em justiça administrativa e suas sentenças, como abaixo citado:

“c) os atos administrativos não são definitivos, podendo ser revistos jurisdicionalmente em muitos casos. Acima de tudo, só na jurisdição reside o escopo social magno de pacificar em concreto os conflitos entre pessoas, fazendo justiça na sociedade[24] (grifos nossos).

Então, vale ressaltar a natureza jurídica dos entes responsáveis pela prolação de sentenças administrativas, já que o artigo 217, §§ 1.º e 2.º, da Constituição Federal dá força à Justiça Desportiva, mesmo deixando para lei ordinária regulamentá-la.

Como exemplo da força do Direito Desportivo, seu poder está presente nas decisões tomadas pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o mais conhecido dos tribunais desportivos. Os artigos 50, § 4.º, e 52 da Lei 9.615/1998 também é claro ao afirmar que:

“Art. 50. A organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva, limitadas ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, serão definidas em Códigos Desportivos

Art. 52. Aos Tribunais de Justiça Desportiva, unidades autônomas e independentes das entidades de administração do desporto de cada sistema [do Estado] compete processar e julgar, em última instância, as questões de descumprimento de normas relativas à disciplina e às competições desportivas, sempre assegurados a ampla defesa e o contraditório” (grifo nosso).

Tendo esses conceitos como princípio, não se pode falar que temos sentenças que possam transitar em julgado, já que elas não emanam do poder jurisdicional estatal; também não podemos dizer que são sentenças administrativas, pois não regulam nenhum ato proveniente do Estado.

Segundo Ricardo Graiche[25], também não há autonomia, pois a Justiça depende economicamente das “entidades dirigentes para funcionar”. Assim como não há falar em independência se, por exemplo, os auditores, são indicados pelos entes administradores do desporto (Estado) e pelas entidades de prática do desporto (clubes).

Continuando sobre o assunto, Ricardo Graiche diz que:

A verdadeira independência ocorrerá somente quando a Justiça Desportiva conseguir manter-se financeiramente sem as benesses concedidas pelas entidades de administração do desporto e com um corpo funcional cuja escalada tenha acontecido por méritos próprios, independente de nomeação política” {C}[26]{C} (grifos nossos).

Como se classifica a decisão de um tribunal que é eminentemente híbrido? Trata-se de um contrato entre partes, uma vez que “o contrato faz lei entre as partes”. Entende-se que nenhuma dessas classificações seja a mais apropriada, já que um contrato pode ser discutido em juízo, assim como a sentença administrativa.

A Justiça Desportiva é responsável pelo julgamento de questões estritamente desportivas. Não há a discordância nesse sentido, mas o desporto relaciona-se com todas as matérias, independente de como são aplicadas no mundo real, pois possuem repercussões e implicações positivas ou negativas no mundo jurídico também.

Seguindo esse raciocínio, entende-se que a importância da coisa julgada – tanto formal, como material – no mundo jurídico desportivo é de extrema importância para o bom desenvolvimento das relações esportivas em razão de sua repercussão social, econômica e educacional.

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Sobre o autor
Giordano Melges

Especialista na área trabalhista, mestrando em Direito Desportivo pela PUC/SP. Ex-monitor na matéria de Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Atuo na Grande SP e Baixada Santista, trabalhando em conjunto com advogado das mais diversas áreas de atuação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Giordano Melges. A Justiça Desportiva na Constituição Federal e o principio do acesso à justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5086, 4 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58192. Acesso em: 26 abr. 2024.

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