Cracolândia, autonomia da vontade, internação compulsória e direitos humanos

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Deixar que semelhantes morram, lentamente, pelo uso de drogas, é considerar um perversão à vida. É a banalidade do mal justificada como autonomia da vontade. Ou seja, um perfeito egoísmo à vida de outras pessoas

(Fonte: comentários no G1)

Discute-se sobre os usuários, que aumentam a cada dia, da droga crack. Potencialmente viciante, os usuários perdem a autonomia da vontade. Ter autonomia é ter a capacidade de deliberação: faço ou não faço?

Usuário de crack, assim como de outras drogas psicoativas, não possuem autonomia da vontade quando sob efeito das substâncias psicoativas. Autonomia da vontade é ter deliberação em fazer ou não fazer algo.

Dependente químico, principalmente de crack, não tem autonomia da vontade. Mesmo que se diga que ele tem, em alguns momentos, as substâncias presentes no crack continuam ativas. As recaídas são constantes. A luta para sair da dependência química é dolorosa, angustiante. Infelizmente, como na imagem acima, há pessoas que vivem na menoridade kantiana. Os outros nada valem. Se os outros caíram no vício é pelo motivo de serem 'fracos'. A dependência alcoólica é um problema mundial. A OMS (Organização Mundial de Saúde) já soou o alarme várias vezes. Os dependentes de nicotina sabem que a substância retira suas autonomias. Se antes o hábito de fumar era elegância do homem civilizado, contemporaneamente é uma estultícia sem tamanho.

No entanto, existem os usuários de crack. Em SP há discussões — Prefeitura, Ministério Público, defensores dos direitos humanos etc. — sobre as conduções coercitivas dos dependentes químicos (crack). Questões:

  • O medo de uma seletividade penal do tipo Cesare Lombroso e Francis Galto
  • A dignidade humana (autonomia da vontade) dos usuários de crack
  • A segurança dos moradores, não usuários de crack.
  • Qual dignidade humana tem peso maior, a dos usuários ou não usuários de crack?
  • Qual o interesse público maior, desenvolvimento econômico ou solidariedade aos usuários de crack?


Na CRFB de 1988, todos são iguais em direitos e deveres. Não importa etnia, condição econômica, sexualidade, agente público ou não, pessoa com ensino fundamental ou universitário, o tipo de crença. Porém, se existem os objetivos da CRFB de 1988, deduz que a autonomia da vontade não pode ser egoística ao próximo que necessita de ajuda. Admitir que a autonomia da vontade é ser neutro ao sofrimento alheio, ou mesmo agir de forma sádica (mata logo), é deliberar para a Filosofia da Alcova. E grandes filósofos buscavam meios de como os seres humanos podem viver em paz. E paz não é uma cartilha, pois nenhum humano é igual ao outro. Eis o contrato social, sem ser um contrato dos mais fortes (força física, econômica). Se a humanidade for egoísta, milhões morreram, e poucos sobreviveram. A tecnologia proporcionou o aumento do egoísmo, da vaidade, do sadismo, da angústia. Cada qual vive numa 'bolha'. Culpa da tecnologia? Não, apenas os seres humanos se comportam como sempre foram. Tudo não está perdido, pois caso contrário, ogivas nucleares seriam lançadas pelo simples mal-estar de ter perdido uma partida de video game.

No caso dos dependentes químicos na cracolândia, não há o que dizer que eles têm autonomia da vontade. E local propício ao uso é maior possibilidade de consumir mais e mais. A Prefeitura de SP está agindo arbitrariamente? Depende. Se são retirados do local os dependentes químicos para colocá-los em outro, sem qualquer acesso à saúde (médicos, psicólogos etc.), tal medida é antidemocrática. Se são removidos, mas os usuários têm acesso à saúde, a ação é humanística, desde que a Prefeitura — numa administração eficiente (EC nº 19/1988) parcerias entre Município e Estado, e até a iniciativa privada são democráticas — dê continuidade ao tratamento. Outro ponto fundamental é a oportunidade de trabalho para os ex-usuários. Trabalhar faz bem à mente. Aliado à oportunidade de estudos, melhor ainda.

O que não se pode permitir é o abandono de seres humanos que, por vários motivos (pessoais, sociais e políticos), perderam suas autonomias e vivem como fantoches da droga. Sociedade, realmente civilizada, delibera para o bem de todos. Ganha o usuário de drogas, os moradores, os comerciantes, a boa gestão do administrador público.

Afirmar que defe-se liberar totalmente qualquer tipo de droga é perigoso. Primeiro, tráfico de drogas é um dos tentáculos do tráfico. Se assim for, o tráfico sexual de mulheres só acabará quando não mais existirem mulheres? O uso de droga, qualquer que seja, só é seguro caso exista acompanhamento médico. A humanidade sempre usou drogas, todavia esta humanidade não tinha publicidade supervalorização o ter para ser, positivamente na sociedade. Se — Nietzsche explica — a felicidade era fora da Terra, sendo esta maléfica e cheia de imperfeições, a partir da segunda metade do século XX o paraíso passou a ser a Terra. Os mitos (santos religiosos) foram trocados pelos mitos artistas, cantores. Sendo que esses mitos servem como ligações ao 'sagrado', os bens de consumo. Na década de 1950, os fabricantes de cigarros de tabacos negociavam como os cineastas de Hollywood cenas de atores e atrizes fumando cigarros. 

Infelizmente, as drogas viraram mitos capazes de aliviar angústias, frustrações, perda de familiar, perda de moradia. Muito diferente de 1960 até 1980, pois as drogas serviam para exaltar a liberdade reprimida por sistemas políticos castradores, Edipianos. "Deixa a vida me levar" era a entonação à liberdade de tudo o que era repressor (religião, política). O mais estarrecedor de tudo é que alguns ditos libertários afirmam que cada qual faz o que bem quiser com a própria. John Locke dizia que o ser humano jamais pode dispor de sua vida como bem quiser, pois só Deus pode tirar a vida humana. Nietzsche e seu niilismo verdadeiro é o controle sobre as pulsões, e não o niilismo de 'faça o que bem quiser'.

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A internação compulsória do usuário de drogas também não pode ser arbitrária, isto é, um ato administrativo de limpara cidade. E o Brasil já fez isso no Bota Abaixo de Pereira Passos. Também deixar que os usuários de drogas, os quais perderam a autonomia da vontade, morram, como já verifiquei em comentários, é uma atitude aplicada no século XX, a eugenia. É preciso equilíbri nas ações do Estado, principalmente com a forma de pensar de brasileiros, que não são poucos, ainda atrelhados aos conceitos do século XX: darwinismo social e eugenia.

No livro The Spirit Level, os autores, através de pesquisas de mais de cinquenta universidades, constataram que países com estremas desigualdade sociais têm gravíssimos problemas com o consumo exagerado de drogas lícitas ou não, obesidade, corrupção, gravidez precoce, seletividade penal, consumo exorbitante de ansiolíticos pelas camadas sociais mais altas, supervalorização do ego, doenças psiquiátricas. Para os leitores que me seguem, o tema já fora diversas vezes explanado. Há em versão português: WILKINSON, Richard; PICKETT, Kate. O Espírito da Igualdade – Por que razão sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor. Coleção: Sociedade Global. Nº na Coleção: 40. Data 1ª Edição: 20/04/2010. Nº de Edição: 1ª. Editora Presença.

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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