Capa da publicação A Lei de Improbidade Administrativa e o controle de conduta dos gestores públicos
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O papel da lei de improbidade administrativa no controle dos desvios de conduta dos gestores públicos

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07/07/2017 às 15:28
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A Lei de Improbidade Administrativa é bastião da moralidade dos gestores públicos e vem funcionando como importante instrumento normativo de controle da Administração. Conheça seus principais aspectos e porque o papel que desempenha na superação do quadro de apropriação privada da coisa pública é fundamental.

INTRODUÇÃO

O administrador público gerencia um patrimônio que não lhe pertence, cabendo-lhe exercer o encargo de zelar adequadamente pelos interesses da coletividade. Por se encontrar na condição de gestor dos interesses de outrem, é fundamental que haja um controle sobre a sua atuação, de forma a assegurar que o interesse perseguido seja sempre o coletivo.

Para garantir a incolumidade dos seus interesses, a Administração Pública se cerca de mecanismos de controle voltados à fiscalização procedimental dos seus gestores, valendo-se, para isso, de um conjunto de instrumentos internos de fiscalização, mediante a atuação de estruturas integrantes do próprio órgão controlado, bem como também se vale de outros órgãos públicos, cuja finalidade precípua é fiscalizar a atuação dos gestores públicos. Isso é o que se denomina, segundo explica Mello (2009, p.927), de controle interno na primeira situação e externo, na segunda.

No entanto, para que as estruturas de controle interno e externo funcionem a contento, faz-se necessária a existência de instrumentos normativos eficientes, sendo um desses materializado na Lei nº 8.429/1992, também conhecida como Lei de Improbidade Administrativa.

No presente trabalho, a partir de uma análise dos princípios balizadores da Administração Pública, estabelecidos pela Constituição Federal, busca-se demonstrar a importância da Lei nº 8.429/1992 para a moldagem de uma Administração Pública verdadeiramente voltada para os interesses da coletividade e comprometida com a superação do crônico quadro de apropriação privada do Estado que tem sido uma constante no Brasil desde os tempos coloniais.


1 BALIZAS PRINCIPIOLÓGICAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Constituição Federal, em seu artigo 37, determinou a observância compulsória, no âmbito da Administração Pública, dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Trata-se de conjuntura principiológica a partir da qual a gestão pública é instrumentalizada e informada a partir da vigência da Carta de 1988.

Quando se quer avaliar se determinado procedimento de gestão pública ou se certa norma de natureza administrativa é compatível ou não com a Constituição Federal, é fundamental buscar nesse conjunto de princípios orientação, pois se um deles não tiver sido observado, é possível afirmar, com certa segurança, que a conduta do gestor público ou a norma avaliada, mostra-se incompatível com o modelo de gestão pública estabelecido na Constituição em vigor.

Passa-se, portanto, a avaliar, ainda que de forma breve, cada um desses princípios.

1.1 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Legalidade é princípio elementar quando se discute Administração Pública. Ele constitui a baliza fundamental que norteia a forma como os gestores devem se portar no desempenho de suas atribuições.

A importância do princípio da legalidade é tal no Direito Administrativo que Madeira (2008, p.10), considera-o como “a noção capital do Estado de Direito” e a “bússola norteadora da Administração pública”.  Já Faria (2007, p. 45), tece a respeito da legalidade as seguintes considerações:

O princípio da legalidade, no sistema jurídico positivo, é o mais importante deles, sem desmerecer os outros, que são também importantes. A observância da legalidade é fundamental na realização administrativa do Estado. [...]. O agente público deve praticar ato se determinado ou permitido por lei no sentido lato. Atos praticados sem a observância dessa regra são inválidos, não podendo, por conseguinte, produzir efeitos válidos.

Por mais que o administrador público seja bem-intencionado ao praticar um determinado ato administrativo, se a sua atuação não se encontrar respaldada numa autorização legislativa, o ato praticado é viciado, pois não lhe é dado atuar violando a lei. Por outro lado, os mecanismos de controle da Administração não são considerados legítimos se não estiverem respaldados em autorização legislativa, estruturando-se uma equação entre a forma como o Administrador Público deve proceder e os mecanismos legítimos para fiscalização dos seus atos, exercendo o princípio da legalidade, nas duas conjunturas, papel nuclear.

Dessa forma, a legalidade é a baliza dentro da qual o administrador público se movimenta e, é com base nela também que os seus atos são submetidos a controle.

1.2 OS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE E DA IMPESSOALIDADE E OS PARADIGMAS ÉTICOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA

Quando se lida com interesses de outrem, a honestidade é um dos atributos que mais se espera no gestor. Infelizmente, essa qualidade nem sempre se faz presente no caráter de alguns administradores públicos.

No Brasil, o Estado foi construído de forma patrimonialista. Os administradores não costumavam enxergar no interesse público o foco principal de sua atividade. Proteger interesses pessoais ou de terceiros era, não raras vezes, o norte principal da atuação gerencial.

Ao longo da história brasileira, tem sido muito difícil para os gestores públicos compreender que os bens por eles geridos não lhes pertence. Por outro lado, para a população em geral, arraigou-se culturalmente uma profunda inércia em relação aos desmandos praticados por alguns gestores públicos, em razão da falta de entendimento de que os bens dilapidados ou objeto de uso privado pertencem a coletividade e, portanto, a cada um dos indivíduos que a integram, sendo fundamental que cada cidadão assuma o encargo de zelar por eles, reclamando a devida punição dos gestores desonestos.

Mas a cultura de apropriação privada do Estado, cujas raízes remontam no Brasil à administração portuguesa durante a fase colonial, vem impedindo a consolidação de uma visão republicana em relação ao patrimônio público. O mesmo modelo colonial de gestão do Estado, no qual o rei considerava o Estado como seu patrimônio, podendo dele se utilizar para distribuir honrarias e benesses aos seus protegidos, arraigou-se na cultura brasileira, percorrendo os séculos e maculando as entranhas da Administração Pública nacional.

O zelo pela coisa pública e o sentimento de posse do patrimônio estatal são conceitos de difícil incorporação na consciência coletiva brasileira. Para uma parcela da população parece que os atos de desonestidade no gerenciamento da coisa pública somente são inaceitáveis quando ela não se encontra sendo, direta ou indiretamente, beneficiária dos desmandos administrativos.

A desonestidade, a corrupção, o mau caráter, não são comportamentos de seres etéreos que, inexplicavelmente, adentram nos meandros da Administração Pública e passam a controlá-la, gerindo-a em benefício próprio. A corrupção é reflexo de uma sociedade doente, cujos indivíduos se sentem indignados com os ilícitos praticados por maus gestores, ao mesmo tempo em que não deixam passar a oportunidade, por exemplo, de oferecer algum valor ao guarda de trânsito, a fim de os livrar da responsabilização por uma infração administrativa.

O desonesto, o corrupto, o imoral, é parte da mesma sociedade que se mostra indignada com os seus atos. Ele não é um ser estranho. Ao contrário, pertence às suas entranhas e se sentirá cada vez mais à vontade para agir à medida em que perceber que os seus atos nada mais são do que a maximização dos desmandos cotidianos existentes nas mais diversas esferas da sociedade à qual integra.

É pertinente a essa altura, a transcrição das considerações de Garcia (2014, p. 53), que seguem:

A corrupção está associada à fragilidade dos padrões éticos de determinada sociedade, os quais se refletem sobre a ética do agente público. Por ser ele, normalmente, um mero “exemplar” do meio em que vive e se desenvolve, um contexto social em que a obtenção de vantagens indevidas é vista como prática comum dentre os cidadãos, em geral, certamente fará com que idêntica concepção seja mantida pelo agente nas relações que venha a estabelecer com o Poder Público. Um povo que preza a honestidade provavelmente terá governantes honestos. Um povo que, em seu cotidiano, tolera a desonestidade e, não raras vezes, a enaltece, por certo terá governantes com pensamento similar.

O sentimento de que a corrupção, a desonestidade e o descaso com a coisa pública se tornaram situações rotineiras no Brasil nada mais é do que o reflexo de uma sociedade eticamente doente, que reclama honestidade de quem a governa, mas, ao mesmo tempo, não possui um padrão ético compatível com o esperado dos seus governantes.

 Talvez uma das maiores verdades existentes quando se discute a questão ética na Administração Pública é que dificilmente haverá corruptos se não houver corruptores. Se a sociedade brasileira, de fato, pretende banir a corrupção das entranhas da administração pública, precisa, em primeiro lugar, submeter-se a um processo de purgação coletiva, alterando completamente a sua forma de agir, transformando em padrão ético de cada cidadão aquele esperado dos seus governantes.

É preciso educar os brasileiros para a cidadania, levando-os a problematizar o estigma patrimonialista que ainda campeia a nossa Administração Pública, pois como lembra Freire (2014, p. 93), “ a libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. ” É preciso produzir nos brasileiros a consciência de que a coisa pública pertence a todos e não a uma casta de privilegiados que vem se apropriando do Estado ao longo do tempo.

Essa cultura patrimonial enferma, legada pelo colonialismo português, precisa ser extirpada do inconsciente coletivo nacional. Cada indivíduo necessita lembrar que a coisa pública não pertence a ninguém individualmente e sim a coletividade e que os gestores públicos não são nada mais do que meros mandatários da sociedade. Dessa forma, quando cada um entender que deve agir segundo o padrão moral que almeja ver observado pelos seus governantes, o Brasil terá dado um passo fundamental para uma mudança de tratamento do interesse público.

Assim, poderíamos dizer que o mais eficiente controle da Administração Público é o popular. Aquele no qual cada cidadão se sente responsável pelo adequado gerenciamento do patrimônio coletivo e, ao se deparar com ilícitos dos gestores públicos, sente-se na responsabilidade de denunciar aos órgãos competentes a conduta praticada, esperando a responsabilização do gestor desonesto.

Logo, poderíamos dizer que, ao lado do controle interno e externo da Administração Pública, que são formais e adstritos ao princípio da legalidade, existe o controle popular, de conteúdo ético e que expressa o espírito de cidadania e de responsabilidade pelo patrimônio coletivo, encontrando-se difuso na sociedade. É ele que provocará a verdadeira mudança no trato da coisa pública no Brasil, uma vez que os mecanismos de controle formais da administração pouco podem fazer em favor dela se não existir esse impulso popular reclamando o funcionamento desses mecanismos.

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É dentro desse contexto, que dois princípios colocados ao lado da legalidade no artigo 37 da Constituição Federal merecem uma adequada reflexão quando se discute o padrão ético que se espera dos gestores públicos. Trata-se dos princípios da moralidade e da impessoalidade.

O princípio da impessoalidade reclama o tratamento isonômico no âmbito da Administração Pública. Os indivíduos devem ser atendidos de acordo com os parâmetros fixados em lei, não podendo existir espaço para qualquer tipo de privilégio. Se bem observado, esse princípio é uma das mais fortes armas da cidadania contra o patrimonialismo estatal, o sentimento de posse que permeia a administração pública brasileira.

Mello (2009, p.114) explica que o princípio da impessoalidade

[...], traduz a ideia de que a Administração tem que tratar todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.

Tem-se, portanto, no princípio da impessoalidade um forte antídoto contra o patrimonialismo do Estado brasileiro. A partir do momento que em houver uma compreensão coletiva de que não é admissível qualquer tipo de apropriação ou utilização privada da coisa pública, a sociedade brasileira terá dado um largo passo em direção a erradicação da corrupção e da desonestidade do seu meio.

É preciso que cada indivíduo compreenda que somente pode almejar receber da Administração aquilo legalmente lhe for devido. Nada a mais ou a menos do que isso. É fundamental que os cidadãos passem a enxergar nos administradores públicos a figura de meros responsáveis pelo atendimento das demandas coletivas segundo as prescrições legais. Esse sentimento de cidadania precisa se difundir a ponto de ninguém admitir que qualquer servidor público aja como se estivesse prestando um favor ao cidadão quando da outorga de uma prestação pública.

O servidor público, como a própria denominação evoca, nada mais é do que alguém remunerado pela sociedade para a servir. É esse tipo de compreensão que necessita se consolidar no Brasil, a fim de extirpar a praga do patrimonialismo[1] que apodrece os meandros da Administração Pública nacional e estimula nos maus gestores o sentimento de que são proprietários do acervo público, cuja administração lhes foi confiada.

Já o princípio da moralidade agrega a si o conteúdo ético, a honestidade que se reclama como atributo de quem atua na Administração Pública.

Uma observância meramente formal do princípio da legalidade muitas vezes oculta interesses escusos, incompatíveis com a boa gestão do patrimônio público. É por isso que a Constituição Federal de 1988 trouxe o princípio da moralidade como baliza autônoma em relação à legalidade, demonstrando, tal como defende Cordeiro (2007, p.21), que a “nossa Administração Pública passa por uma mudança paradigmática, revelando preocupação não só com a legalidade dos atos administrativos, mas, principalmente, com a legitimidade e licitude dos mesmos.”

Há, portanto, a imposição de uma baliza de cunho ético ao administrador público. Ele precisa observar a lei, sem privilegiar interesses particulares, sendo-lhe reclamado, ainda, um valor ético mais elevado, um sentimento de honestidade que o motive a gerir a coisa pública focado exclusivamente nos interesses da coletividade.

1.3 PUBLICIDADE E EFICIÊNCIA

Complementando o rol de princípios balizadores da Administração Pública presentes no artigo 37, da Constituição Federal, espera-se, ainda, que o gestor conceda a mais ampla publicidade aos atos que praticar, viabilizando o controle popular, pois da mesma forma que as trevas não suportam a presença da luz, a corrupção e o mau feito na gestão pública são mutilados quando a publicidade dos atos administrativos é levada a sério.

Além disso, a gestão pública precisa ser eficiente, pois não satisfaz os interesses dos administrados um serviço público que não seja prestado no momento exato em que é esperado.

Com base no parâmetro da eficiência, o administrado deve ser encarado como cliente do poder público, o qual deve se esmerar em atendê-lo adequadamente, primando por sua plena satisfação.

Assim, a publicidade e a eficiência fecham o leque de princípios balizadores do modelo de Administração Pública presente na Carta de 1988, cabendo a cada cidadão primar para que cada uma dessas balizas fundamentais seja integralmente respeitada pelos gestores públicos.

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Sobre o autor
Gilvânklim Marques de Lima

Doutorando e Mestre em Direito (área de concentração: Direitos Humanos e Desenvolvimento) pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB; Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera/UNIDERP; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN; Juiz Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gilvânklim Marques. O papel da lei de improbidade administrativa no controle dos desvios de conduta dos gestores públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5119, 7 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58275. Acesso em: 28 mar. 2024.

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