Capa da publicação Democracia representativa é o melhor regime de governo?
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Democracia representativa: alguns de seus dilemas na atualidade

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05/07/2017 às 15:00
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A democracia representativa, hoje, enfrenta três dilemas: a redução do espaço privado do indivíduo imune à intervenção do Estado, o descrédito institucional e os limites ao direito de protestar. Compreendemos uma verdadeira democracia representativa como um regime de governo baseado em dois pilares: respeito às divergências pacíficas e controle eficiente do exercício do poder. Quando isso não ocorre, o que passamos a ter?

INTRODUÇÃO

O vocábulo democracia, na atualidade, é um daqueles termos considerados “politicamente corretos”, razão pela qual integra o discurso, se não da totalidade, pelo menos da ampla maioria dos Estados. Independente da forma de gestão do Estado, os líderes atuais, ainda que, na realidade, vários deles não passem de ditadores cruéis, buscam transmitir para os Estados que gerem o epíteto de “democráticos”.

Democracia, na atualidade, tornou-se um belo discurso, capaz de encantar multidões, ao tempo em que oculta graves desigualdades sociais, violações de direitos individuais e outros comportamentos e situações nefastas. Parece que não importa a forma como é operacionalizada. O importante é a presença da palavra democracia no discurso ou mesmo na denominação oficial do Estado.  A democracia, nesse contexto, não passa de um engodo ideológico, utilizado para perpetração de processos de dominação popular.

É preciso, portanto, apontar os verdadeiros elementos da democracia representativa, de forma a tornar possível a identificação dos Estados nos quais ela, de fato, faz-se presente.

Dentro deste contexto, é necessário considerar que a democracia representativa enfrenta diversos dilemas atuais. Trata-se, na verdade, de situações que, se não forem bem gerenciadas, podem colocar em xeque a existência da própria democracia representativa, naqueles Estados nos quais ela, de fato, é praticada.

No presente trabalho, suscitamos a problemática envolvendo três dilemas da democracia representativa atual, a saber: a questão referente a invasão de privacidade dos cidadãos, mediante a redução acentuada da esfera dos seus negócios privados imunes a ingerência estatal; o descrédito institucional decorrente de práticas autoritárias que utilizam direitos sociais como barganha compensatória em face da supressão de direitos civis e, por fim, abordamos o assunto envolvendo os limites da liberdade de manifestação popular dentro da democracia, procurando trazer, ao cabo de nossa exposição, algumas sugestões para o tratamento de tais dilemas.


1 DEMOCRACIA: EVOLUÇÃO DE UM CONCEITO

1.1 A democracia na antiguidade

O termo democracia, nos seus primórdios, na Grécia antiga, não tinha o atual significado de regime desejável de governo. Para Aristóteles, por exemplo, tratava-se de uma forma impura, ao lado da tirania e da oligarquia[1]. Democracia, para os antigos, era associada a sua forma de prática direta, sendo as deliberações a respeito das conduções dos negócios públicos adotada de forma coletiva pelos cidadãos[2].

Na polis, apenas se conheciam iguais, livres das necessidades da vida e das imposições alheias, não sujeitos às obrigações de governar ou serem governados.  Esse ambiente de igualdade proporcionava aos participantes da gestão da polis condições de exercício da democracia em sua forma direta (ARENDT, 1983, p. 41).

Bobbio (1991, p. 40) esclarece que os antigos, quando mencionavam democracia, “(...), pensavam numa praça, ou assembleia, em que os cidadãos eram convocados a tomar, eles próprios, as decisões de governo[3]”. Talvez seja por isso que a democracia não gozava do bom conceito que ostenta na atualidade. É que, ao transferir para uma coletividade, ainda que bastante limitada, o encargo de decidir a gestão do Estado (sendo o discurso de oradores a ferramenta de condução do espírito decisório dos cidadãos reunidos), criava-se um ambiente propício ao surgimento dos “demagogos”, capazes de induzir o espírito coletivo à tomada de determinadas posições que, se avaliadas de forma cuidadosa, podiam não se demonstrar as mais adequadas aos interesses da coletividade.

Dessa forma, na democracia antiga, embora os cidadãos possuíssem formalmente a palavra final em termos de gestão dos negócios estatais, ao terem as suas vontades conduzidas por “demagogos”, poderiam trazer a ruína para a polis.

Daí o reduzido apreço que os antigos devotavam à democracia, externando preferência por outras formas de governo, tidas como puras, a exemplo da monarquia e da aristocracia. Na visão aristotélica, conforme já exposto, a forma mais pura de governo era a monarquia, visão esta que também era compartilhada por Platão, que chegou a sustentar a entronização do filósofo como rei.

Mesmo na modernidade, alguns importantes pensadores, como Kant, não tinham a democracia como um valor a ser defendido, pois ela era tomada em sentido negativo, uma vez que era vista apenas em sua forma direta, embora ele fosse contemporâneo da experiência da América do Norte relacionada à democracia representativa.

É por isso que, “para ele a república não tem relação alguma com a democracia, à qual tem declarada aversão” (SORTO, 2011, p. 121-122). Em razão disso, segundo Kant, a melhor forma de governo era “a república(monárquica) constitucional, com a devida limitação do poder político do soberano (separação dos poderes), posto que o monarca não estaria acima do direito” (SORTO, 2013, p. 353).

A democracia na antiguidade, exercida em sua forma direta, tornava os cidadãos uma massa uniforme, que impunha uma verdadeira tirania da maioria sobre os grupos minoritários, que não tinham, em razão disso, seus direitos ou opiniões respeitadas. Como decorrência, a crítica clássica em torno de tal forma de governo apontava a prevalência das paixões sobre a razão, não sendo, portanto, a mais indicada forma de gestão dos negócios públicos (BOBBIO, 1991, p.31).

É bem verdade que o ambiente de plena igualdade decisória era apenas formal, uma vez que a condução dos negócios da cidade acabava, na prática, ficando nas mãos dos indivíduos dotados de maior poder de persuasão, capazes de induzir a massa reunida na assembleia a encapar as posições por eles defendidas. Assim, os mais capazes de despertar paixões nos cidadãos reunidos se sagravam como os reais gestores da cidade, o que acabava por corroborar a principal crítica lançada contra a democracia na antiguidade.

2.2 A democracia representativa

A democracia, como já mencionamos anteriormente, em seus primórdios, não era tão apreciada. Era vista como um regime que estimulava as paixões dos cidadãos reunidos para deliberações, conduzidos por demagogos que, geralmente, não estavam muito preocupados com os interesses da coletividade. Até mesmo Kant, já no século XVIII, não externava muito apreço pela democracia, elogiando, ao contrário, a república (monárquica) constitucional.

O surgimento da forma representativa, inicialmente nos Estados Unidos da América, possibilitou a aplicação da democracia em espaços territoriais maiores. Teoricamente, delineou-se uma forma de gestão do Estado, por meio da qual os cidadãos não participam diretamente das deliberações relativas aos interesses coletivos. Ao contrário, o povo, como componente humano, participa da escolha, por meio do voto, de representantes para gerirem o Estado. Essa escolha pode se limitar aos integrantes do legislativo ou alcançar também o chefe da função executiva estatal, bem como os membros do Judiciário.

Esse modelo de democracia representativa vem se difundindo desde a sua criação nos Estados Unidos da América e se tornou, na atualidade, o parâmetro ideal de regime político, invocado pela ampla maioria dos governantes, que se dizem democráticos, ainda que pratiquem o mais acentuado autoritarismo na gestão do Estado. Assim, por ser um ideal a ser perseguido, a democracia se coloca diante de alguns dilemas que precisam ser enfrentados, como forma de legitimação do seu discurso e garantia de aperfeiçoamento.


3 ALGUNS DILEMAS DA DEMOCRACIA NA ATUALIDADE

3.1 O controle estatal da privacidade

Na democracia representativa, o voto representa um momento importante em seu funcionamento. No entanto, ele não é único e nem mesmo o de maior destaque. O cidadão antigo, que vivia uma dualidade perene entre as esferas privada e pública, sendo reconhecido socialmente apenas a partir de suas manifestações públicas no ambiente deliberativo da assembleia (na qual se encontrava em relação de igualdade com os demais participantes), é convidado, no momento atual, a assumir uma postura ativa na fiscalização dos seus representantes, ainda que contra a vontade deles.

Há, portanto, uma ruptura na separação dos limites entre o público e o privado que era bem evidente entre os antigos. A esfera privada do indivíduo é constantemente adentrada pelo Estado, que passa a regular, por exemplo, até mesmo a forma de educação dos filhos pelos pais. É o que se verifica no Brasil, por exemplo, com a recente Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014, que ficou conhecida como “Lei da Palmada” e veda a utilização de qualquer modalidade de castigo físico pelos pais no processo educacional dos seus filhos.

  Logo, não mais se constata a liberdade absoluta de comportamento na esfera privada tal como se verificava entre os antigos, pois o Estado, cotidianamente, adentra os limites da esfera privada para disciplinar as relações particulares.

Nesse contexto, a esfera pública se agiganta, ao passo que a privada é mitigada. Sendo assim, esse alargamento da esfera pública, deve conduzir o cidadão a um interesse maior pelos negócios estatais, não limitando a sua participação apenas ao momento do voto, pois as diretrizes adotadas pelo Estado têm reflexo no comportamento privado. Tal fato inviabiliza a indiferença no que concerne ao que se discute e se concretiza na esfera pública.

Não é mais possível adentrar na esfera pública para externar aquilo que o indivíduo gostaria que fosse apresentado aos seus semelhantes, recolhendo-se na intimidade do lar, que o protegia de qualquer publicidade vinculada aos atos ali praticados, tal como ocorria entre os antigos[4], pois o ambiente privado não mais o põe a salvo da ingerência estatal.

O espaço individual, defendido com firmeza pelos modernos segundo Constant (2014), uma vez que a sua influência no espaço público é mais fluída do que se verificava entre os antigos, merece, em parte, ser questionada. É que ainda persiste a influência difusa do indivíduo moderno nos negócios do Estado, muitas vezes quase imperceptível. No entanto, a sua luta pela segurança dos “privilégios privados”, está sendo gradualmente perdida.

Dessa forma, enquanto os antigos, segundo Constant (2014), visualizavam a liberdade na “partilha do poder social entre todos os cidadãos da mesma pátria”, os modernos enxergam a liberdade na proteção aos seus privilégios privados, que poderíamos denominar de intimidade. Estes últimos estão gradualmente perdendo a sua liberdade, em virtude do agigantamento do Estado, o qual se ocupa de questões cada vez mais íntimas do indivíduo, como controle de natalidade, forma de educação dos filhos e outros assuntos semelhantes, que no passado não poderiam sofrer, legitimamente, qualquer ingerência estatal.

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Logo, o questionamento que se pode suscitar com relação a este ponto, se concentra em como compatibilizar essa invasão do Estado no âmbito da privacidade dos indivíduos com um regime democrático. Talvez a resposta esteja no controle do cidadão no tocante a atuação do próprio Estado, mediante uma participação ativa na gestão dos seus negócios, sem legá-la integralmente aos seus representantes, pois, como adverte Sorto (2011, p. 106), a “liberdade estabelece-se onde o poder é controlado pelo próprio poder mediante disposições claras ditadas pelo Direito.”

Dentro de um regime democrático, a atuação do Estado não pode fugir ao controle do Direito, mediante a intervenção de um poder judiciário independente. É preciso que o povo acredite que o Estado respeita os limites que lhe são impostos pela legislação, pois a democracia tende a sucumbir quando a população conclui que o cenário que lhe parece errôneo não pode ser alterado com a mera modificação das leis.

Esse quadro desenha uma situação de instabilidade institucional que pode colocar a democracia em risco[5]. É necessária a existência de uma legislação dotada de legitimidade no tocante a sua edição e que seja transparente no que se refere à sua aplicabilidade, voltada a coibição de eventuais abusos do Estado. Isso, no entanto, conduz a um outro dilema enfrentado pela democracia na atualidade, qual seja, o descrédito das instituições.

3.2 O descrédito das instituições democráticas e prática ditatorial

O descrédito institucional é um dos grandes riscos que a democracia atualmente enfrenta. O sentimento muitas vezes difuso na população ao não se sentir representada por aqueles que se encontram responsáveis pela condução dos negócios públicos pode levar à conclusão de que a democracia não é o modelo de gestão estatal mais adequado, criando espaço para que soluções temerárias - como a supressão prática do regime democrático - adquira corpo e ganhe espaço.

Quando mencionamos supressão prática do regime democrático, levamos em consideração que a palavra “democracia”, pelo significado positivo que atualmente possui, é empregada indiscriminadamente pela quase totalidade dos Estados. Dessa forma, mesmo que as mais ínfimas liberdades individuais sejam suprimidas e se instale a mais evidente das ditaduras, ainda assim o governante insiste em denominar o Estado por ele gerido de democrático, ainda que o povo não tenha qualquer participação na forma pela qual os negócios públicos são conduzidos.

Trata-se, na verdade, de um discurso de dominação, pois ao mesmo tempo em que não existe liberdade, dissemina-se o discurso de que a gestão estatal é realizada em benefício de toda a população, propagando-se a ideia de que o governante é um democrata, pois representa os interesses de todos.

O descrédito institucional assume o seu ápice em situações nas quais governos ditatoriais se apropriam de instrumentos da democracia representativa, em especial do exercício popular do voto, em busca de legitimação. 

No entanto, o exercício do voto em tais estruturas de governo ditatoriais não é livre. O povo é coagido moralmente ou mesmo pela força a, mediante o voto, legitimar o governante que se encontra no exercício do poder. Além disso, a ausência de liberdade de oposição inviabiliza a existência de uma real democracia, que se constrói na liberdade do contraditório, no respeito às diferenças e na tolerância às opiniões que divergem do pensamento que busca ser hegemônico. Uma verdadeira democracia é tolerante até mesmo com o posicionamento daqueles que, de forma pacífica, defendem a sua supressão.

Nesse contexto, é importante ressaltar que a democracia representativa real não se exaure na realização de eleições periódicas. Estas, pouco significarão se não houver um sistema de controle do exercício do poder bem delimitado no seio do Estado, a fim de que não haja abusos pelos governantes. É necessário também que o povo tenha a oportunidade de fiscalizar os seus representantes e disponha de instrumentos legais de repressão a eventuais desmandos que possam ser cometidos por aqueles que se encontram no exercício do poder.

Dessa forma, quando se avalia as características de uma democracia representativa na atualidade, consegue-se retirar o véu dos governos autoritários, independente da orientação política.

Na verdade, o que os governos autoritários buscam é confinar o seu povo aos limites da esfera privada, afastando-os completamente do âmbito governamental. As eleições periódicas e a utilização de expressões como “governo do povo”, “democracia popular” e outras similares, não passam de subterfúgios perante a comunidade internacional, voltados à ocultação do autoritarismo no exercício do poder.

No âmbito interno, por sua vez, é uma forma de silenciar qualquer manifestação oposicionista, sob o argumento de que o exercício do poder se encontra nas mãos daqueles escolhidos pela ampla maioria da população. Há, inclusive, estruturas autoritárias que chegam ao ridículo de externar a existência de uma escolha de governantes pela quase totalidade da população.[6]

Com o alijamento da população do papel fiscalizatório do exercício do poder, os direitos civis são aniquilados, pois eles são incômodos aos governos ditatoriais que são avessos às vozes discordantes e aos mecanismos de controle popular. Em troca da liberdade civil, muitos governos autoritários concedem uma melhor assistência no tocante à saúde, lazer, educação, trabalho e alimentação. Tais direitos de natureza social, no entanto, não são encarados pela população como direitos, mas como benesses concedidas pelo governante, tornando-o carismático entre a população, facilitando a sua manutenção no poder e dificultando o surgimento de uma oposição com musculatura capaz de afrontá-lo.

No entanto, direitos sociais sem liberdade civil não são direitos. São mecanismos de controle popular. A população, em Estados autoritários, não considera os direitos sociais como algo além de benesses concedidas pelo governo e, caso algum desses supostos direitos sociais venha a ser mitigado ou suprimido, a ausência de liberdade civil impede qualquer oposição a tal conduta, o que demonstra que de direitos não se tratava. Logo, os direitos sociais não existem sem direitos civis sendo, portanto, indissociáveis.

Portanto, é preciso separar uma real democracia da utilização indevida de seus instrumentos por governos autoritários. Em nossa visão, não há democracia em Estados nos quais não há respeito a opiniões divergentes, onde os indivíduos que pensam de forma diferente do grupo que se encontra no exercício do poder são tratados como inimigos da coletividade, devendo, por consequência, serem silenciados e, não raras vezes, encarcerados ou aniquilados.

Democracia também não há em Estados nos quais não existem mecanismos eficientes de controle do exercício do poder, onde os representantes populares são apenas figuras decorativas, sem real capacidade de impor freios na função executiva do Estado e o judiciário constitui apenas uma estrutura destinada a impor sanções a quem diverge da ideologia[7] estatal.

Portanto, compreendemos uma verdadeira democracia representativa como sendo um regime de governo baseado em dois pilares fundamentais, a saber, respeito às divergências pacíficas e controle eficiente do exercício do poder. Por consequência, não importa a existência de eleições periódicas, se não se fizerem presentes estes dois caracteres imprescindíveis.

O modelo de representação, a forma de escolha dos representantes, embora sejam elementos indispensáveis na democracia representativa, não se mostram como o foco adequado para distinguir um Estado democrático de um Estado autoritário. Isso porque são exatamente esses instrumentos que são apropriados pelos Estados autoritários quando querem se camuflar perante a comunidade internacional, sob a faceta de “democráticos”.

No entanto, é quando se afere a existência de controle eficiente do exercício do poder e o respeito às divergências pacíficas que se consegue, com segurança, separar Estados nos quais existe democracia real, daqueles nos quais a palavra democracia se apresenta somente como um véu destinado a ocultar o autoritarismo vigente nas relações de poder no seio do aparelho estatal.

Dessa forma, põe-se como um dilema atual da democracia representativa se desvencilhar dos modelos autoritários de governo que buscam se apropriar de mecanismos que lhe são inerentes, como forma de serem aceitos na comunidade internacional como Estados democráticos.

Na atualidade, essa faceta cínica de governos ditatoriais vem se revelando cada vez mais presente. Estados nos quais não há transparência na forma de exercício do poder e a liberdade de opinião é uma distante quimera, apresentam-se como “democráticos”, ainda que somente no discurso. Rejeitar esse mecanismo desonesto de tais governos, relegando-os à condição de párias no mundo democrático, é uma necessidade premente. Somente dessa forma é possível trazer credibilidade às instituições democráticas e neutralizar o discurso dissimulado de Estados autoritários.

3.3 Liberdade de manifestação do dissenso e limites a serem observados

A liberdade de opinião é um elemento indissociável da democracia representativa. Externar visões divergentes, quer elas sejam de cunho político, religioso, filosófico etc., faz parte do próprio exercício democrático. A insatisfação com determinadas formas de condução da gestão estatal pode ensejar o surgimento de manifestações de rua que precisam ser respeitadas e ouvidas dentro de um ambiente de diálogo democrático. Procurar silenciar tais vozes faz parte da política de Estados autoritários, sendo um comportamento incompatível com a democracia.

O ambiente democrático deve primar pela exposição das divergências, pelo debate de ideias, pelo confronto de opiniões. Jamais deve existir qualquer pretensão de primazia de uma visão única, pois, em surgindo tal ambiente, não se pode mais falar da existência de democracia em tal Estado. O problema desponta, no entanto, quando a manifestação das divergências deixa de ser pacífica e assume contornos violentos. É nesse ponto que se impõe um acentuado desafio para a democracia moderna.

As manifestações violentas não podem ser toleradas numa democracia. Isso porque, quando não há respeito e diálogo, mina-se os próprios fundamentos existenciais da democracia, pois sob o argumento de proteção da ordem e supressão do caos, grupos autoritários podem se aproveitar da oportunidade aberta pelos distúrbios e extirpar a democracia das relações estatais.

 O que se verifica, em geral, nos movimentos violentos, é que eles não estão preocupados com o bem estar do ambiente democrático. Ao contrário, a democracia para eles não é um valor a ser preservado, mas apenas como um meio para que objetivos de grupos que pregam, por exemplo, a supressão do Estado, a expropriação patrimonial e outras ideias similares, sejam alcançados. A democracia para eles não é um fim. Serve apenas para que possam, como mais liberdade, procurar implodir o ambiente político ou econômico em face do qual manifestam discordância. A manifestação violenta é inimiga da democracia.

O ambiente político brasileiro anterior ao golpe de Estado de 1964 é um típico exemplo de como as manifestações violentas não estão preocupadas com a democracia, mas apenas buscam se utilizar dela para alcançar os seus ideais.

No início da década de 60, confrontavam-se no Brasil duas linhas principais de pensamento que, de certa forma, refletiam o ambiente da guerra fria que se instaurou após a Segunda Guerra Mundial. De um lado, postavam-se os movimentos políticos mais alinhados com a visão do liberalismo econômico difundida pela Estados Unidos da América e seus aliados.

Do outro, colocavam-se os movimentos de esquerda alinhados com a União Soviética e que procuravam instituir no Brasil um Estado Comunista similar ao que fora implantado na Rússia pela Revolução Bolchevique de 1917. Nenhum desses lados tinha qualquer compromisso com a democracia representativa. Ela era apenas um meio pelo qual os lados opostos procuravam difundir as suas posições, na expectativa de formação do ambiente político adequado à apropriação do aparelho estatal.

Portanto, não é verdadeira a afirmação de que em 1964 prevaleceu um golpe ditatorial contra a democracia. O que se verificava é que os dois lados confrontantes não tinham qualquer compromisso democrático, pois se ao invés de um golpe de direita tivesse prevalecido os intentos dos vários grupos alinhados à União Soviética, a democracia também não teria subsistido.

A mesma conjuntura de utilização da democracia como um meio para a implantação de regimes incompatíveis com o ambiente democrático também se fez presente na Europa no momento histórico anterior à Segunda Guerra Mundial. Isso porque, tanto o Fascismo na Itália, como o Nazismo na Alemanha, valendo-se das débeis estruturas democráticas ainda existentes em seus territórios, delas se utilizaram para a edificação das estruturas dos Estados Totalitários mais nocivos já vistos até então.

O que esses exemplos históricos demonstram é que, se realmente há compromisso com a democracia como valor a ser preservado, os movimentos violentos precisam ser combatidos com firmeza. Não se pode aceitar o engodo que eles procuram difundir no sentido de que, dentro de um ambiente democrático, eles gozam do direito de se contrapor ao que eles julgam equivocado no Estado ou na sociedade, ainda que para isso precisem se utilizar da violência. É dessa forma que devem ser encaradas as manifestações violentas que começaram a ganhar cada vez mais espaço no Brasil a partir de junho de 2013.

Movimentos violentos, denominados genericamente como “black blocs”, que se acham no direito de destruir o patrimônio público ou privado em nome da defesa dos seus ideais (se é que eles possuem algum), não podem jamais ser tolerados. Não se pode confundir direito a exposição divergente, dentro do ambiente democrático - que deve ser externada de forma pacífica - com a violência vazia praticada por esses grupos. Ser complacente com eles significa transigir com a preservação da democracia.

É importante destacar que, ao se utilizarem da violência, esses movimentos inibem até mesmo a manifestação democrática. No Brasil, por exemplo, o que se viu foi uma notória aniquilação das manifestações de insatisfação popular que tiveram o seu ápice em junho de 2013 em virtude, exatamente, da violência desses grupos denominados genericamente de “black blocs”.

Ao buscarem criar um clima de confrontação com as forças do Estado, tratando policiais como inimigos que devem ser combatidos como se em campo de batalha estivessem, esses grupos demonstram o pouco apreço que possuem à democracia. Ela, como já foi dito, é encarada por eles apenas como um meio, mediante o qual eles buscam se proteger do exercício da força pelo Estado. Não se pode aceitar esse estratagema.

Manifestações violentas não são democráticas. Elas não respeitam divergências de opinião, não tem compromisso com a liberdade de seus oponentes e não buscam reformar o Estado dentro de um ambiente democrático. Por isso, não se pode legitimar a sua atuação nem impedir que o Estado as reprima de forma enérgica, pelo bem da própria democracia.

Pode-se questionar os limites da repressão estatal aos movimentos violentos. Esses limites estão fixados na própria legislação penal. Dano deve ser tratado como dano, homicídio como homicídio, organização armada como organização armada. Não deve existir qualquer complacência com crimes cometidos por manifestantes violentos. Não é aceitável o argumento de que por se tratar de suposta manifestação popular, deve-se relevar os eventuais crimes que venham a ser cometidos nestas ocasiões.

O dilema que se coloca para a democracia neste ponto se atém em garantir o direito à livre manifestação popular, sem, no entanto, externar complacência com movimentos violentos. Dentro de uma democracia, as mudanças são operadas mediante o livre confronto de ideias, os grupos políticos devem se alternar no exercício do poder mediante a escolha dos cidadãos, o direito à crítica deve integrar o processo de debate de opiniões. A busca por modificações na gestão estatal fora desse ambiente, não pode ser considerada como compatível com a democracia.

Nesse contexto, é importante destacar que não estamos fazendo juízo de valor a respeito de ser a democracia o melhor regime e que, por consequência, deve ser protegido de forma absoluta. Não é esse o nosso propósito, ainda que não consigamos vislumbrar qualquer regime político que seja, em nossa opinião, melhor do que a democracia atualmente. No entanto, o que sustentamos é que, se a democracia é vista como um valor a ser preservado, as manifestações violentas são com ela incompatíveis e, por conseguinte, devem ser reprimidas dentro dos limites postos na legislação.

Os limites da repressão estatal também é objeto de discussão. Não é legítima a atuação da força do Estado que exceda os patamares necessários à contenção da violência dos manifestantes. Admitir que policiais agridam manifestantes desarmados, por exemplo, constitui comportamento que deve ser devidamente sancionado pelas normas em vigor. Aqui novamente se insere um binômio fundamental para a existência da democracia a que já nos referimos anteriormente, ou seja, respeito às divergências pacíficas e controle eficiente do exercício do poder. A força policial, quando exercida de forma desproporcional aos limites necessários à contenção da violência nas manifestações, retira do Estado a sua legitimação repressiva.

Acreditamos que a democracia não pode transigir com a violência, quer ela parta de manifestantes, quer seja oriunda de agentes do Estado. A violência mina as bases da própria democracia representativa, que devem ser firmadas em elementos de tolerância e respeito ao próximo.

Portanto, consideramos como antidemocráticos todos os comportamentos de oposição violenta. A democracia, desde os seus primórdios, é firmada no diálogo, na construção de soluções negociadas, na convivência entre opostos. Se estes valores soarem como utópicos, é porque teremos que concluir que a própria democracia representativa não passa de uma quimera, de um belo elemento de discurso, sem concretização no mundo dos fatos.

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Sobre o autor
Gilvânklim Marques de Lima

Doutor e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gilvânklim Marques. Democracia representativa: alguns de seus dilemas na atualidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5117, 5 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58281. Acesso em: 22 dez. 2024.

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