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Governança global, legitimidade e segurança:

desafios do direito internacional contemporâneo

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10/06/2017 às 14:26
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2. Governança na área de segurança internacional

2.1. Governança e regimes internacionais

Deve-se destacar, de antemão, que os conceitos de governança e de regimes internacionais são, com freqüência, confundidos, em razão das semelhanças em algumas de suas características, embora sejam diversos em sua amplitude e em sua forma de funcionamento. Como a governança, os regimes são constituídos de normas, de princípios e de procedimentos, para os quais convergem as expectativas dos atores (sejam estes estatais e não-estatais), os quais atuam em sistema internacional destituído de autoridade suprema, apta para tomada de decisões em última instância e dotada de capacidade executiva.

Diferentemente da governança, entretanto, os regimes referem-se apenas a áreas específicas das relações internacionais, como, por exemplo, biodiversidade, direitos humanos, comércio. Os regimes, além disso, como concernem a assuntos delimitados, diferentemente da governança global, costumam apresentar tendência à centralização, sob autoridade de organização internacional (caso da OMC no regime de comércio internacional) ou de tratado multilateral abrangente que, por meio de suas periódicas conferências das partes, possibilita a continuidade da produção normativa e a permanente ação coordenada dos atores (e.g. Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas).

James Rosenau[30], após admitir pontos de intersecção relevantes entre os conceitos de governança e de regimes, explica que a primeira ocorre nas áreas de interstícios (lacunas) entre os regimes, nas quais, ocorre, portanto, carência de normas formalmente estabelecidas. O autor revela também que a governança pode ser percebida nos casos de sobreposição entre dois regimes em temas limítrofes entre duas áreas. Essas situações, que podem acarretar colisão (antinomia) de regras e de princípios, são comuns no âmbito de organizações internacionais que apresentam escopo abrangente, capaz de afetar áreas distintas de seu objeto precípuo.

O caso da OMC é ilustrativo desse tipo de situação, uma vez que a organização, por causa das sucessivas expansões de seu mandato, extrapola a esfera do comércio internacional e afeta área distintas, como, por exemplo, biossegurança e direitos humanos. A fim de precisar devidamente os conceitos, pode-se considerar a governança como fenômeno mais amplo que, a despeito de abarcar os regimes internacionais, não pode ser reduzida ao simples conjunto desses regimes, uma vez que se estende inclusive às áreas destituídas de qualquer tipo de regramento formal, nos mencionados interstícios entre regimes.

Especificamente na área da segurança internacional, podem ser identificados diversos regimes, como, por exemplo, o de não proliferação de armas nucleares, o de armas leves, o das operações de manutenção da paz. Esses regimes, todos eles concernentes ao tema da segurança, apresentam, em regra, um tratado multilateral guarda-chuva (umbrella treaty), sob o qual são criados outros acordos, formulados princípios específicos e estabelecidas normas de conduta para os atores interessados. O propósito dessa seção, entretanto, não é analisar, sob a perspectiva interna, o funcionamento de cada um desses regimes relativos à segurança, pois isso destoa das preocupações amplas acerca da governança. Diferentemente, o objetivo do autor, nessa parte do trabalho, é perquirir como a governança se manifesta no âmbito da segurança, esfera das relações internacionais que abarca os diversos regimes supra mencionados, e que, tradicionalmente, tem sido dominada pelo pensamento teórico realista.

2.2. Apropriação pelo realismo dos estudos de segurança

Nas relações internacionais, a área da segurança apresenta algumas especificidades que devem ser mencionadas, pois tornam a governança, concomitantemente, mais necessária e mais difícil. Acerca dessa especificidade, Celso Lafer, inspirado na literatura política clássica de Martin Wight, elabora instrutiva taxonomia para as dimensões da ordem internacional, a qual pode ser adotada como ponto de partida para o entendimento do problema da segurança. As relações internacionais, para Lafer, podem ser analisadas em três grandes dimensões: dimensão das relações econômicas, dimensão dos valores e dimensão estratégico-militar. Em cada da uma delas, predominaria uma perspectiva distinta, originária de um autor seminal da ciência política. Nas relações econômicas, por causa das necessidades convergentes de trocas comerciais e de investimentos recíprocos, predominaria a visão grociana de cooperação e de colaboração entre os Estados.

Na dimensão dos valores, a busca pela concretização de grandes ideais humanos (e.g. plena garantia dos direitos humanos, desenvolvimento econômico sustentável) determinaria a predominância da perspectiva liberal e utópica, decorrente do Projeto da Paz Perpétua, de Immanuel Kant. Na dimensão estratégico-militar, por fim, a qual abarca os assuntos de paz e de guerra, predominaria a perspectiva hobbesiana, origem do pensamento realista. Como os assuntos, nessa dimensão, estão relacionados a situações limite, que envolvem a própria sobrevivência do Estado na forma de coletividade soberana, este, membro originário do sistema internacional vestfaliano, tenderia a agir conforme os preceitos do realismo, impulsionado pela esperança de ganhos relativos, em detrimento de seus pares[31].

Nessa visão tripartite, adotada por Lafer, a governança - ainda que presente nas relações dos agentes econômicos, na cooperação jurídica entre atores internacionais e nas preocupações dos Estados sobre segurança - não se manifestaria da mesma forma nas três dimensões da ordem internacional. Na área econômica e valorativa, a colaboração entre os protagonistas, a aceitação de novos atores, a produção e o cumprimento de normas, seriam mais freqüentes. Diferentemente, na área de segurança, os atores estatais, em especial as grandes potências, ao conservarem o monopólio efetivo da força, afastariam os atores não estatais e determinariam a manutenção de arranjo institucional, baseado, exclusivamente, no poder dos Estados.

Esse arranjo, por sua vez, por interesse dos próprios Estados, seria pouco transparente e isento de controle por entidades da sociedade civil e por outros atores não estatais. A legitimidade e a accountability das instituições de segurança, por sua vez, estariam subordinadas aos interesses imediatos dos Estados nacionais. Estes, ao dificultarem o desenvolvimento de autonomia burocrática, determinariam, em última instância, o parâmetro aceitável de abertura democrática dessas instituições.

2.3. Perspectiva diacrônica da segurança internacional

De forma diversa, Krause e Williams,[32] ao discorrerem acerca das possibilidades de expansão e de aprofundamento dos estudos sobre segurança, suscitam dúvidas sobre a adequação da teoria realista ao mundo dos anos posteriores à guerra fria, caracterizada pela emergência de temas e de atores diversos dos que predominaram no intervalo de bipolaridade que se seguiu ao término da Segunda Guerra Mundial. Na perspectiva dos autores, a segurança internacional não deve ser reduzida às possibilidades de conflito e de cooperação entre Estados soberanos, uma vez que, no mundo pós-guerra fria, as entidades estatais não podem ser consideradas as únicas merecedoras das ações internacionais de segurança. Diferentemente, portanto, do que se infere da sistematização de Lafer, Krause e Williams desvinculam o realismo do tema da segurança, contestando a ideia segundo a qual ambos expressariam um conúbio indissolúvel.

Esse afastamento da perspectiva realista dos estudos de segurança ocorre por meio de argumentos construtivistas, que possibilitam a problematização de conceitos e a análise do discurso subjacente às construções teóricas. Krause e Williams, com o propósito de desenvolver sua concepção complexa de segurança, explicam que existe diferença entre segurança do Estado e segurança da sociedade[33]: se a primeira, na qualidade de conceito tradicional no âmbito dos estudos internacionais, concerne à soberania do Estado; a segunda refere-se à identidade coletiva, que, por sua vez, está sujeita a ameaças muito distintas dos tradicionais perigos militares.

Os autores destacam, por meio de perspectiva diacrônica, a ausência de neutralidade política no discurso acerca da segurança, uma vez que existem aspectos culturais e fortes interesses que condicionam a construção do conceito de ameaça. Este, durante muito tempo, fundamentou-se na concepção de perigo soviético, formulada, com base em documentos da OTAN, no decorrer do período de guerra fria[34]. Essa construção da ideia de ameaça soviética, materializada em narrativas sobre o totalitarismo do regime comunista e sobre o suposto expansionismo global da URSS, influenciou a concepção estatista de segurança e possibilitou a predominância da perspectiva realista no tema militar. No entendimento de Krause e Williams - autores que compreendem a forma como a dinâmica histórica afeta aspectos e conceitos básicos das relações internacionais - se esse pensamento foi apropriado à realidade bipolar, ele não é mais adequado ao mundo contemporâneo.

Com base em interpretação das duas posições expostas, pode-se afirmar que a governança internacional, na área de segurança, deve ser compreendida mediante síntese seletiva das ideias desenvolvidas, de um lado, por Lafer e, de outro, por Krause e Williams. A segurança, de fato, como destaca Lafer, concerne a aspectos basilares dos Estados nacionais, que buscam manter seu controle sobre a estruturação internacional dos diversos regimes de segurança. Em consonância com Krause e Williams, entretanto, essa situação, em parte, vinha sendo sustentada por um discurso no qual o Estado soberano, entidade política surgida após a Paz de Vestfália, na qualidade de locus mais adequado ao desenvolvimento humano, ao ser protegido de ameaças externas, contribui, por consequência, para o bem-estar do indivíduo. Dessas duas concepções, nota-se que os objetos de análise e os conceitos de trabalho do internacionalista são dinâmicos e, por isso, devem ser compreendidos de forma contextualizada.

2.3.1 Governança, legitimidade e segurança durante o período de guerra fria

Durante a guerra fria, duas instituições, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Pacto de Varsóvia, sob liderança das duas superpotências, e constituídas sob a forma de alianças militares, determinavam as precárias condições de convivência entre os membros dos dois blocos antagônicos. Em razão disso, a ideia de governança, ainda que não estivesse ausente - como indiciado, por exemplo, na cooperação sobre não proliferação e sobre redução de mísseis -, era subordinada aos interesses estratégico das superpotências. Estas, por meio de cálculo realista, além dissuadirem os aliados de adotarem posição autônoma, controlavam, de forma inflexível, as principais instituições multilaterais de segurança, principalmente por meio da ação do Conselho de Segurança da ONU, órgão no qual EUA e URSS tem direito de veto. Mesmo outros aspectos da agenda política internacional eram, em grande parte, subordinados às preocupações estratégico-militares da guerra fria.

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Nesse contexto de equilíbrio bipolar, em que as manifestações de governança eram constrangidas pela disputa entre as superpotências, as ideias de legitimidade e as demandas por accountability (que se restringia ao controle das instituições pelos Estados) também eram, em regras, influenciadas pela clivagem ideológica. Fonseca Jr.[35] explica que, em períodos de destruição iminente, como o da guerra fria, a legitimidade é subordinada a segurança, a qual, por sua vez, nessas situações limite, é monopolizada pelo Estado. O diplomata, assim como Lafer, influenciado pelas ideias de Martin Wright, explica que, no concernente ao período específico da guerra fria, a legitimidade decorria da adesão às posições de poder das superpotências, as quais eram revestidas por uma mensagem universal (democracia-capitalismo ou socialismo-comunismo) que elas tinham a missão de propagar[36]. Nesse mundo de polaridades definidas[37], os parâmetros de legitimidades coincidiam, portanto, com bipartição ideológica do mundo.

2.3.2 Legitimidade, governança e segurança no mundo pós-guerra fria

Entretanto, principalmente em razão do processo de globalização, que se intensificou após o fim da guerra fria, esse discurso, arvorado na suposta centralidade do Estado no sistema internacional, tem sido contestado e classificado como anacrônico. A porosidade das fronteiras nacionais, a disseminação de projetos de integração econômica, a emergência de grandes temas internacionais (e.g. aquecimento global, direitos humanos, terrorismo, narcotráfico), a criação de instituições de vocação universal e dotadas de capacidade de intrusão na esfera doméstica (e.g. OMC), a materialização de uma sociedade civil transnacional[38] são aspectos que tornam a concepção clássica de Estado nacional progressivamente mais obsoleta. Ao mesmo tempo, como consequência direta dessa obsolescência, as instituições de segurança passam ser objeto de novas demandas (formuladas, inclusive, por atores não estatais), em que, diferentemente das tradicionais, o Estado não é mais o único objeto a ser protegido em seus elementos fundamentais (território, população e soberania). Essa mudança no objeto merecedor da proteção no âmbito das relações internacionais acarreta, por conseguinte, alteração no próprio conceito de segurança internacional.

O resultado mais importante dessa alteração no conceito de segurança é a graduação e a individualização do ser humano, o qual, dessa forma, passa a ser o beneficiário final e imediato da segurança internacional, independentemente de seu vínculo com o Estado. A função mediadora deste, por consequência, perde sua essencialidade, e é vista como problemática nas situações em que seus habitantes são oprimidos por seus próprios governos. O padrão dúplice de legitimidade, por sua vez, estreitamente vinculado a visão restrita de segurança estatal, é progressivamente uniformizado sob a forma dos princípios democráticos e liberais.

Os Estados autocráticos, por exemplo, contemplam o declínio inexorável de sua legitimidade como atores internacionais aceitáveis, e passam a enfrentar a crescente oposição da opinião pública, a qual exige, em nome da defesa dos direitos humanos e com base em normas internacionais positivadas, a intervenção da sociedade internacional, mesmo que em flagrante violação da soberania do Estado nacional. Esse enfraquecimento da soberania reforça a perspectiva da segurança destacada por Williams e Krause, segundo a qual o realismo, mesmo na versão estrutural Waltz, não é suficiente para analisar a complexidade da política internacional pós-guerra fria, pois seus adeptos, em regra, trabalham com a ideia de atores estatais monolíticos, o que depende da efetividade da soberania como atributo inflexível e inviolável do Estado nacional.

A concepção alargada e modificada de segurança que resultou do fim da guerra fria, bem como a nova ideia de legitimidade democrática, afetou as diversas instituições internacionais. As organizações internacionais, as práticas e os procedimentos dos atores, a opinião pública, as demandas da sociedade civil transnacional passaram a basear sua atuação nessa nova realidade.

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Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. Governança global, legitimidade e segurança:: desafios do direito internacional contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5092, 10 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58340. Acesso em: 28 mar. 2024.

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