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O direito à educação e suas perspectivas de efetividade

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30/10/2004 às 00:00
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VIII. O Direito à Educação e o Mínimo Existencial

Também denominado de núcleo duro ou núcleo comum dos direitos fundamentais, o mínimo existencial indica o conteúdo mínimo e inderrogável desses direitos, resultando "de um levantamento comparativo de sua incidência em instrumentos de direitos humanos (os próprios textos), fortalecido ademais pela construção jurisprudencial daí decorrente e pelo processo de interpretação destes dispositivos equivalentes com formulações distintas." Esse conteúdo mínimo dos direitos fundamentais, com tendência à universalidade, resulta de sua paulatina incorporação aos tratados internacionais, de sua penetração nas cartas políticas e de sua disseminação pela legislação infraconstitucional, o que torna imperativa a interpretação desta à luz dos valores superiores que direcionam sua aplicação.

Tratandose de um conteúdo mínimo, que atua como elemento aglutinador da essência dos direitos fundamentais, é vedado ao Estado a adoção de quaisquer medidas, de ordem legislativa ou material, comissivas ou omissivas, que busquem frustrar a sua concreção. Tanto atentará contra o mínimo existencial a ação concreta, finalisticamente dirigida ao vilipêndio do bem jurídico por ele tutelado, como a omissão deliberada em tornar concreta uma previsão normativa ou mesmo em editar um ato normativo que viabilize o alcance de um status jurídico favorável ao indivíduo. A sua observância, assim, independe de qualquer medida de intervenção legislativa, derivando diretamente da própria Constituição.

Não obstante incontroversa a sua preeminência axiológica, o mínimo existencial, que está atrelado às condições materiais mínimas exigidas para uma sobrevivência digna, não possui balizamentos precisos. Como visto, os seus lineamentos básicos resultam da paulatina sedimentação de uma pauta de direitos mínimos geralmente aceitos e considerados essenciais à preservação da dignidade da pessoa humana. Essa observação é relevante na medida em que permite situar a legitimação dos direitos humanos em uma posição externa ao próprio ordenamento jurídico.

Em países subdesenvolvidos como o Brasil, nos quais o mínimo existencial é historicamente ignorado pelos poderes constituídos, a questão assume perspectivas dramáticas e que certamente não seriam vistas em países do denominado primeiro mundo. Nestes, o contingente populacional que depende do intervencionismo estatal para sobreviver é sensivelmente reduzido, o que, face à reconhecida possibilidade de o Estado assegurar a observância do mínimo existencial, em muito suaviza qualquer polêmica sobre a matéria.

Ainda que o mínimo existencial seja tradicionalmente integrado por zonas interditas à atuação estatal, vale dizer, pelo imperativo reconhecimento de um rol mínimo de liberdades, intangíveis por excelência, merecem igual proteção os direitos conexos, por imprescindíveis à usufruição dessas liberdades, estando a elas umbilicalmente ligados.

Em relação ao direito à educação fundamental, nos parece incontroverso tratarse de uma parcela integrante do mínimo existencial, não só por suas características intrínsecas como em razão de sua importância para a concreção de outros direitos necessários a uma existência digna. Como vimos, há muito a educação fundamental foi incorporada aos tratados e convenções internacionais, isto sem olvidar a sua paulatina inserção nos ordenamentos de inúmeros Estados, inclusive o Brasil. Neste País, aliás, os textos constitucionais, a contar do primeiro, sempre lhe fizeram certa deferência. Além dos prismas da universalidade e do historicismo, a Carta de 1988 a erigiu à condição de direito subjetivo público, o que em muito reduz a abstração que sempre circunda os limites do mínimo existencial e afasta a possibilidade de que sua oferta seja postergada ou negada.

Do mesmo modo, ante a reconhecida miserabilidade da população brasileira, também os programas suplementares de oferta de material escolar, transporte, saúde e alimentação são indissociáveis do direito à educação: uma pessoa que não possua livros não poderá acompanhar as lições que lhe são ministradas; não possuindo recursos para custear o transporte, simplesmente não poderá comparecer à escola; estando doente, não poderá estudar e entrar em contato com outros estudantes; e, ainda, sem alimentação não haverá como assimilar as mais comezinhas lições.

Identificados os lineamentos básicos do mínimo existencial, com a conseqüente integração do princípio da dignidade da pessoa humana, nos parece que destoa dos valores por ele condensados qualquer iniciativa dos poderes constituídos, de cunho material ou normativo, que procure suprimir direitos, liberdades e garantias já alçados a essa condição. Os direitos fundamentais, na mesma medida em que podem impor prestações positivas ao Poder Público, impõem limites à sua atuação. Sendo a Constituição um sistema aberto de normas, será flagrantemente inconstitucional qualquer medida que se afaste dos valores responsáveis por sua concretização, ainda que emanados de normas infraconstitucionais. À guisa de ilustração, será ilegítimo o ato que determine o fechamento de uma escola sem que existam outras em condições de atender à demanda, a extinção de cargos de professor, com a conseqüente colocação em disponibilidade de seus ocupantes, enquanto flagrante a carência de pessoal nessa seara etc. É indiscutível que um estudo responsável da denominada proibição de retrocesso social exige maiores reflexões de seu artífice. No entanto, nos parece relevante o registro, ainda que meramente enunciativo.

Como vimos, o direito à educação, na vertente aqui analisada, enseja a correlata obrigação do Estado em prestála, o que importa na necessária observância dos princípios regentes da atividade estatal, quer sejam expressos, como a impessoalidade e a eficiência, quer sejam implícitos, como o princípio da continuidade dos serviços públicos. Especificamente em relação à continuidade ou permanência do serviço, é ela mera derivação de sua utilidade e essencialidade, ambas de matiz constitucional. Tratandose de serviço público essencial, é imperativa a sua manutenção em caráter contínuo e regular, vedandose a interrupção ou mesmo a disponibilização em nível inferior ao exigido. Não bastasse isto, é vedado ao Poder Público, inclusive, desafetálo e transferilo à responsabilidade da iniciativa privada. Ainda que seja admissível e aconselhável a participação da sociedade na concreção desse direito fundamental, o que representa mera projeção da horizontalidade dessa categoria de direitos, optou o Constituinte por tornar inarredável a participação estatal, recaindo sobre o Poder Público o dever jurídico de prestálo.


IX. A Questão da Efetividade do Direito à Educação e os Recursos Públicos Disponíveis

Delineados os contornos básicos do direito à educação e a parcela mínima a ser fornecida aos residentes no território nacional, resta aos interessados a utilização dos mecanismos de acesso à justiça sempre que seja divisado o descumprimento do dever jurídico que recai sobre o Estado, quer seja com o seu não oferecimento ou mesmo com a sua oferta irregular. Dentre os instrumentos processuais contemplados no texto constitucional, merecem ser lembrados, em caráter meramente enunciativo, o mandado de segurança, individual e coletivo, o mandado de injunção e a ação civil pública, os quais serão manejados pelos respectivos legitimados em conformidade com as leis de regência.

Em casos tais, não nos parece aceitável a tese de que o julgamento favorável de uma pretensão dessa natureza importaria em mácula ao princípio da divisão das funções estatais. A divisão em funções garante a sua especialização e a independência em seu exercício, o que evita os conhecidos e inevitáveis males da concentração do poder. Não se trata unicamente de princípio de especificação de órgãos e funções, mas de princípio de coordenação e manutenção da unidade e organicidade do Estado. O princípio da divisão dos poderes é, em essência, um instrumento indispensável à salvaguarda das liberdades e dos direitos individuais. Assim, como utilizar um princípio que se destina à salvaguarda dos direitos individuais como a pedra angular de um entendimento que busca justamente legitimar a sua inobservância? A atuação do Judiciário não importará em qualquer ingerência externa na atividade desenvolvida, mas, tãosomente, velará para que esta mantenha uma relação de adequação com a ordem jurídica, substrato legitimador de sua existência. Dessa forma, não se tratará unicamente de juízo censório ou punitivo à atividade desempenhada por outro poder, mas de aplicação de eficaz mecanismo previsto no regime democrático, sempre com o desiderato final de garantir o bemestar da coletividade. Pontes de Miranda há muito afirmara que "o exercício do poder, ainda por parte daqueles que só indiretamente o recebem, como os juízes e os funcionários públicos, é sempre exercido em nome do povo".

Do mesmo modo, não merece acolhida a tese de que o Judiciário não estaria devidamente aparelhado para levar a efeito a valoração das circunstâncias periféricas ao caso, em especial aquelas que possibilitem uma visão de conjunto do aparato administrativo, o que inclui a ponderação de toda a gama de interesses individuais e sociais a serem atendidos e a análise das possibilidades operacionais do referido aparato. Integrando a educação fundamental o mínimo existencial e sendo dever do Poder Público o atendimento prioritário às crianças e aos adolescentes, somente em situações excepcionalíssimas será possível, em um juízo de ponderação, prestigiar interesses outros, com o conseqüente comprometimento dos recursos existentes. Assim, a importância dos valores envolvidos confere uma relativa simplicidade a essa operação, conferindo ao extraneus in casu o Juiz uma ampla possibilidade de realizála.

Outro argumento normalmente utilizado por aqueles que vêem os direitos sociais como normas meramente programáticas reside na conhecida insuficiência de recursos para o atendimento das múltiplas necessidades da população. É a denominada reserva do possível, que pode ser de ordem jurídica ausência de previsão de gastos na lei orçamentária ou fática inexistência dos próprios recursos necessários à satisfação dos direitos. No caso de total insuficiência de recursos, o que deverá ser devidamente demonstrado e não simplesmente alegado, pouco espaço restará para que o Poder Público seja compelido a cumprir o seu dever jurídico. Nesse caso, o descumprimento resultará de uma total impossibilidade material, não de uma injustificável desídia.

Tratandose de impossibilidade jurídica, o que decorreria não da ausência de receita, mas da ausência de previsão orçamentária para a realização da despesa, deverá prevalecer o entendimento que prestigie a observância do mínimo existencial. Restando incontroverso o descompasso entre a lei orçamentária e os valores que integram a dignidade da pessoa humana, entendemos deva esta prevalecer, com o conseqüente afastamento do princípio da legalidade da despesa pública. Não fosse assim, seria tarefa assaz difícil compelir o Poder Público a observar os mais comezinhos direitos assegurados na Constituição da República e na legislação infraconstitucional, o que terminaria por tornar legítimo aquilo que, na essência, não o é. Não é demais lembrar que, ao consagrar direitos, o texto constitucional implicitamente impôs o dever de que sejam alocados recursos necessários à sua efetivação. Em se tratando de direitos coletivos que normalmente exigem um elevado montante de recursos , apelar para a expedição de precatórios, consoante a sistemática do art. 100 da Constituição, seria o mesmo que relegar os verdadeiros detentores da facultas agendi às intempéries da própria sorte, arcando com os efeitos deletérios e irreversíveis que o fluir do tempo causaria sobre seus direitos. Como desdobramento do que vem de ser dito, poderá o Poder Judiciário, a partir de critérios de razoabilidade e com a realização de uma ponderação responsável dos interesses envolvidos, determinar a realização dos gastos na forma preconizada, ainda que ausente a previsão orçamentária específica. Caberá ao Poder Executivo, nos limites de sua discrição política, o contingenciamento ou o remanejamento de verbas visando a tornar efetivos os direitos que ainda não o são.

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Lembrese que, em se tratando de matéria afeita à infância e à juventude, o argumento da impossibilidade jurídica jamais poderá beneficiar àqueles que a alegam, pois, como foi dito, nessa seara vige o princípio da absoluta prioridade. Se nem todos os direitos sociais, apesar da previsão normativa, se mostram plenamente operativos, é necessário "determinar com que prioridade e em que medida deverão ser", e esta escolha há muito foi feita pelo Constituinte. E ainda, a Emenda Constitucional nº 14, de 12 de setembro de 1996, que alterou o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispôs sobre a vinculação de verbas específicas do orçamento para a implementação do direito à educação. Além disso, criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), que tem por fim universalizar o ensino fundamental e remunerar condignamente o magistério.

O FUNDEF foi regulamentado pela Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996 e pelo Decreto Federal nº 2.264, de junho de 1997, tendo introduzido alterações na forma de desenvolvimento do ensino fundamental no âmbito dos diferentes entes da Federação, implementando uma partilha de recursos cuja intensidade e freqüência variarão em conformidade com o número de alunos matriculados no ensino fundamental. Além destes diplomas legais, deve ser observada a Lei nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Para a integração das receitas do Fundo, serão utilizados 15% das seguintes fontes: Fundo de Participação dos Estados – FPE, Fundo de Participação dos Municípios – FPM, Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcional às exportações – IPIexp e Desoneração de exportações, de que trata a Lei Complementar nº 87/96. A estas receitas serão acrescidas verbas complementares da União, destinadas aos Estados em que a receita originariamente gerada não é suficiente à garantia de determinado valor individual por aluno, valor este que será fixado pelo Presidente da República através de decreto. E ainda, quanto à destinação, os recursos do Fundo serão utilizados da seguinte forma: 60% para a remuneração dos profissionais do magistério em exercício no ensino fundamental e 40% em outras ações de manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, conforme o disposto no art. 70 da Lei nº 9.394/96.


X. Síntese Conclusiva

A fundamentalidade do direito à educação é imanente à sua condição de elemento indispensável ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e à concreção da própria cidadania.

Identificadas as três gerações de direitos fundamentais, as quais, não obstante sucessivas entre si, não excluem as anteriores, coexistindo harmonicamente, o direito à educação tem sido tradicionalmente incluído no rol dos direitos sociais, que se enquadram no espectro da segunda geração. Apesar disso, é indiscutível a sua importância à concreção dos direitos de primeira geração, pois não se pode falar em liberdade plena sem o exato conhecimento de seu próprio alcance.

Os direitos sociais, quer sejam enquadrados como mera variante dos direitos e garantias individuais, quer sejam considerados como projeções do princípio da dignidade humana, são "cláusulas pétreas", erigindose como limites materiais ao exercício do poder reformador.

Em decorrência da tendência à universalidade dos direitos fundamentais, têm sido intensificadas, a partir da Segunda Guerra Mundial, as iniciativas para se conferir um colorido normativo ao seu reconhecimento. Nessa perspectiva, o direito à educação tem sido constantemente previsto nos inúmeros tratados, cartas de princípios e acordos internacionais, os quais buscam estabelecer a pauta mínima de direitos consagradores da dignidade da pessoa humana. No Brasil, o direito à educação é presença constante em todos os textos constitucionais, recebendo especial realce na Carta de 1988, ocasião em que o direito à educação fundamental foi erguido à condição de direito subjetivo público. Na mesma linha se desenvolveu a legislação infraconstitucional, que consagrou o princípio da proteção integral das crianças e dos adolescentes (Lei nº 8.069/90) o que inclui o direito à educação , aperfeiçoando o sistema da absoluta prioridade previsto no art. 227 da Constituição da República.

A paulatina contemplação do direito à educação no cenário mundial e pátrio, com a conseqüente busca da sedimentação de sua universalidade, permitiu a integração da educação fundamental ao denominado mínimo existencial, que indica o conteúdo mínimo e inderrogável dos direitos fundamentais. Além dessa perspectiva historicista, a Constituição de 1988, em seu art. 208, § 1º, tornou incontroversa a imediata exigibilidade desse direito junto ao Poder Público, erguendoo à condição de direito subjetivo público. Tratandose de norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, a não oferta do ensino fundamental ou a sua oferta irregular autoriza a imediata sindicação junto ao Poder Judiciário.

O provimento jurisdicional que vele pelo cumprimento da Constituição e da legislação infraconstitucional, possibilitando a concreção de direitos essenciais à dignidade da pessoa humana, em nada viola o princípio da divisão das funções estatais. Esse princípio, em essência, é um instrumento indispensável à salvaguarda das liberdades e dos direitos individuais, não sendo legítima a sua utilização como a pedra angular de um entendimento que busca justificar a sua inobservância.

Ressalvada a total inexistência de recursos, o que depende de prova por parte do Poder Público, sendo insuficiente a mera alegação, será plenamente possível a emissão de provimento jurisdicional com o fim de determinar o contingenciamento ou a realocação de dotações orçamentárias para o atendimento dos direitos prestacionais que congregam os valores inerentes à dignidade da pessoa humana, como é o caso do direito à educação fundamental.

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. O direito à educação e suas perspectivas de efetividade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 480, 30 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5847. Acesso em: 23 nov. 2024.

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