VI. A Eficácia das Normas Constitucionais
Sedimentada a organização estatal, mostrase necessária a edição de padrões de conduta a serem observados pelos indivíduos, com o fim de assegurar a interpenetração e a coexistência dos distintos interesses existentes não raras vezes contrapostos , bem como padrões de estruturação e funcionamento dos próprios órgãos estatais. Esses padrões, que recebem o designativo de normas jurídicas, são dotados de imperatividade, devendo ser por todos observados, o que não exclui a possibilidade de os interessados agirem em norte contrário ao seu conteúdo sempre que, de forma expressa ou não, sejam autorizados a tanto pelo próprio ordenamento. A norma será existente caso emane de um órgão estatal, seja formulada e revelada ao mundo exterior de determinada forma e tenha um objeto (rectius: um padrão normativo). Além de existente, será válida caso seus elementos constitutivos possuam os atributos exigidos no texto constitucional: o órgão seja competente (rectius: competência legislativa do ente federativo e de seus órgãos internos), a forma, inclusive em relação aos atos que antecederam a sua formação (rectius: o processo legislativo), seja a exigida e o seu objeto guarde uma adequação material com a Constituição. A norma existente e válida será eficaz tão logo esteja apta a produzir os efeitos que lhe são próprios, o que se dará no momento em que se implementarem as condições previstas em seu texto ou em outra norma (v.g.: com a sua vigência). Não obstante existente, válida e eficaz, a norma somente terá efetividade (ou eficácia social como preferem alguns) quando seus efeitos, concebidos em estado latente, se materializarem no plano fático.
Sempre que encartadas em uma constituição rígida logo, somente passíveis de modificação por um processo legislativo específico são denominadas de normas jurídicas constitucionais. A natureza constitucional, por óbvio, não desvirtua ou enfraquece a sua normatividade, estendendose a elas as características inerentes às demais normas jurídicas. Para os fins dessa exposição, cuja brevidade não precisa ser realçada, releva analisar a questão da sua efetividade, pois eficácia jurídica todas a possuem.
A análise da efetividade das normas constitucionais, embora restrita a algumas poucas palavras, pressupõe uma breve referência à classificação das referidas normas, obrar que, por evidente, não poderá avançar no estudo das múltiplas construções realizadas pela doutrina pátria e alienígena. Assim, restringiremos nossa perspectiva de análise à conhecida construção de José Afonso da Silva, cuja obra há muito incorporou o designativo de clássica e que desenvolveu, quanto à sua eficácia e aplicabilidade, uma divisão tripartite das normas constitucionais. Segundo essa classificação, temse: a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; b) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas restringíveis; e c) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, que se subdividem em normas definidoras de princípio institucional e normas definidoras de princípio programático.
Normas constitucionais de eficácia plena são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata, produzindo ou tendo a possibilidade de produzir todos os efeitos essenciais nelas previstos. Não necessitam de integração normativa ulterior para a sua aplicação e criam situações subjetivas de vantagem ou vínculo, exigíveis de imediato.
As normas constitucionais de eficácia contida, embora tenham igualmente recebido normatividade suficiente para reger os interesses de que cogitam, também criando situações subjetivas de vantagem caracterizadoras de direitos subjetivos, podem ter sua eficácia e aplicabilidade limitadas por outras normas. Enquanto não editada a legislação restritiva, terão eficácia plena.
Quanto às normas de eficácia limitada, em geral, não receberam normatividade suficiente para sua aplicação, deixandose ao legislador ordinário o ônus de completar a regulamentação da matéria nelas prevista em princípio ou esquema. Ressalta o autor que "as de princípio institucional encontramse principalmente na parte orgânica da constituição, enquanto as de princípio programático compõem os elementos socioideológicos que caracterizam as cartas magnas contemporâneas. Todas elas possuem eficácia abrogativa da legislação precedente incompatível e criam situações subjetivas simples e de interesse legítimo, bem como direito subjetivo negativo. Todas, enfim, geram situações subjetivas de vínculo". As normas constitucionais de princípio institucional podem deixar uma margem maior de liberdade ao legislador ou indicar desde logo o conteúdo da lei. As de princípio programático limitamse a traçar os princípios a serem cumpridos pelas diferentes funções estatais, sempre com o objetivo de realizar os fins inerentes à organização estatal.
As normas programáticas, apesar de não possuírem eficácia suficiente à regulação de uma situação fática ou jurídica previamente definida, a exemplo das demais normas jurídicas, possuem o atributo da imperatividade. Assim, além de prestarem um relevante auxílio na interpretação das normas infraconstitucionais, exigem que todos os atos emanados do Poder Público, de natureza normativa ou não, sejam com elas compatíveis.
As normas constitucionais que dispõem sobre a educação fundamental, na medida em que asseguram a imediata fruição desse direito, já que, consoante o art. 208, § 1º, foi ele tratado como direito subjetivo público, têm eficácia plena e aplicabilidade imediata, prescindindo de integração pela legislação infraconstitucional. Não bastasse isso, essa conclusão é reforçada por integrarem o rol mínimo de direitos imprescindíveis a uma existência digna, o que afasta qualquer tentativa de postergar a sua efetivação. Igual conclusão, aliás, deverá prevalecer quanto aos já mencionados preceitos da Lei nº 8.069/90.
Jorge Miranda, após afirmar que a maior parte dos direitos econômicos, sociais e culturais previstos na Constituição portuguesa depende de legislação integradora, ressalta ser imperativa a observância do conteúdo essencial desses direitos e que, verificadas as condições de sua efetivação, "tais normas podem ser entendidas como tendo aplicação imediata (mesmo se o reconhecimento desses pressupostos e, por vezes, a determinação ou determinabilidade das normas exigem uma intervenção do legislador. Um exemplo é o art. 74, nº 2, alínea a, que assegura o ensino obrigatório e gratuito, ficando, porém, a definição do que seja ‘ensino básico’ a cargo da lei)".
Para melhor esclarecimento do alcance do preceito constitucional, realizaremos uma breve análise do instituto do direito subjetivo, de índole eminentemente privatista, e dos lineamentos básicos do mínimo existencial.
VII. O Direito Subjetivo à Educação
Em um primeiro momento, nos parece relevante lembrar a dicotomia direito objetivo e direito subjetivo: o primeiro indica a norma, dissociada de circunstâncias afeitas à realidade fenomênica e que, com maior ou menor grau de abstração, disciplina determinada situação jurídica (norma agendi); quanto ao direito subjetivo, veicula ele a faculdade, conferida ao seu titular, de agir em conformidade com a situação jurídica abstratamente prevista na norma e de exigir de outrem o cumprimento de um dever jurídico (facultas agendi).
Tanto o direito objetivo como o subjetivo possuem um epicentro comum: a pessoa, natural ou jurídica, que é a titular em potencial das relações jurídicas que se desenvolvem no organismo social. Enquanto o direito objetivo ocupa uma vertente externa à pessoa, mas a ela direcionada, o direito subjetivo se realiza na própria pessoa, sendo ambos absorvidos pela noção mais ampla de direito, que busca assegurar o primado da ordem jurídica e a existência digna de todos.
O direito subjetivo é intitulado de privado quando consagrado em norma de igual natureza. Direito subjetivo público, por sua vez, é o decorrente de norma de caráter público, designativo que aufere suas características básicas no objeto da relação jurídica e na sua indisponibilidade, sendo prescindível que o Estado figure em um dos pólos do vínculo (v.g.: o direito à intimidade, oponível tanto ao Estado como aos demais indivíduos).
Consagrada a disciplina normativa e assegurado, em abstrato, o exercício de um direito, está o seu titular autorizado a exigir daquele que detém o dever jurídico a transposição desse estado potencial para a realidade fenomênica, com o conseqüente cumprimento da prestação devida, quer seja positiva ou negativa. Dessa assertiva defluem os elementos essenciais do direito subjetivo: sujeito, objeto e relação jurídica.
O sujeito é o titular do direito. Tratandose de obrigações oriundas do direito privado, em regra, o sujeito será certo e determinado. Tal, no entanto, não chega a ser erigido à condição de elemento essencial, sendo plenamente factível, em especial nos direitos que auferem o seu fundamento de existência diretamente na norma (ex vi legis), que somente sejam indicadas as características essenciais dos respectivos titulares, não se descendo a minúcias quanto à sua individualidade.
O objeto, que pode ter características materiais ou imateriais, é o bem jurídico sobre o qual o sujeito exerce a faculdade que lhe fora assegurada pela norma. Ultrapassados os períodos mais primitivos da história da civilização, não mais se concebe, sob um prisma universal e absoluto dos direitos fundamentais, seja o homem objeto de direito (v.g.: na condição de escravo). Questão mais complexa reside na possibilidade de o homem, como sujeito de direito, dispor sobre a própria pessoa ou sobre os atributos inerentes à sua personalidade. Como decorrência da individualidade existencial do homem e do elemento anímico que direciona seu comportamento, há muito se consagrou o entendimento de que lhe é dado fazer tudo o que lhe aprouver, desde que sua conduta não rompa as fronteiras da indisponibilidade consagradas no ordenamento jurídico, em especial nos princípios que congregam os valores éticomorais inerentes a determinado grupamento (v.g.: em contraposição à licitude de um contrato de trabalho firmado entre um acrobata e um circo, seria ilícita, por atentatória à dignidade da pessoa humana, a cláusula que previsse a possibilidade de o acrobata, a juízo do empregador, permanecer pendurado em uma corda, completamente nu, enquanto os espectadores se divertissem arremessando frutas e legumes deteriorados contra ele). Ultrapassados tais limites, com a conseqüente mácula à integridade de direitos que, em sua essência, são indisponíveis, terseá a ilicitude da conduta. Traçandose um paralelo imaginário com o direito de propriedade, que é caracterizado pelo ius utendi, fruendi et abutendi (direito de usar, gozar e dispor), seria possível afirmar que o homem pode usar e gozar dos atributos inerentes à sua pessoa e à sua personalidade, mas deles não pode dispor.
A relação jurídica é o vínculo mantido entre o titular do direito subjetivo e aquele que tem o dever jurídico de observálo. Não raras vezes, o pólo passivo da relação jurídica é ocupado por sujeitos indeterminados (v.g.: no direito de propriedade, onde o proprietário ocupa o pólo ativo e todos têm o dever de observálo, sendo integrantes do pólo passivo), o que em nada descaracteriza o direito. É importante ressaltar, uma vez mais, não ser possível falar em direito sem o correspondente dever de outrem, sendo este o elemento fundamental de uma relação jurídica.
Como decorrência lógica da própria consagração de um direito, que é violável por excelência, temse como indispensável a possibilidade de utilização do poder de coerção estatal para assegurar a sua efetiva implementação no plano fático. Entendendo desatendido um direito seu em razão da inobservância de um dever jurídico que recaía sobre outrem, poderá o interessado deduzir sua pretensão em juízo.
O direito subjetivo, não obstante concebido sob uma perspectiva eminentemente privatista, em que os interesses individuais justificavam a previsão normativa e direcionavam a sua concreção, bem demonstra a presença de um dever e a existência de um direito à sua usufruição. Essa constatação não sofre alterações substanciais ao ser transportada para o plano dos direitos sociais, já que, mantida a essência, temse tãosomente a ampliação dos titulares da facultas agendi. Ao invés do seu exercício de modo individual, tornase possível e aconselhável que tal se dê em uma dimensão coletiva.
Assim, quer seja considerado na individualidade de um dos componentes do grupamento, quer seja visto como direito de todos, o direito à educação, a depender da ótica em que seja analisado, será passível de enquadramento na categoria dos direitos subjetivos, pois integrante do denominado mínimo existencial. É justamente com olhos voltados a essa constatação que deve ser interpretado o art. 208, § 1º, da Constituição da República: "O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo".
Não se sustenta que todo e qualquer direito previsto na Constituição possa resultar na coerção estatal para o seu fornecimento, isto porque os recursos estatais são reconhecidamente limitados, enquanto as necessidades são indiscutivelmente amplas. Tal teoria, aliás, já se mostrou inexeqüível em relação aos dogmas do Estado de BemEstar Social (Welfare State), que teve grande expansão a partir da Segunda Guerra Mundial. Fosse de outro modo, bastaria transpor a legislação de um país dotado de elevados índices de desenvolvimento humano para outros nos quais esse fator não apresentasse a mesma desenvoltura para que, tal qual um passe de mágica, todos os problemas sociais do mundo contemporâneo fossem resolvidos. Essa tese, infelizmente, destoa de um padrão de razoabilidade, motivo pelo qual seu prestígio está em franco declínio. Como contraponto, temse o mínimo existencial, que, face o seu conteúdo mínimo, apresenta níveis aceitáveis de exeqüibilidade, atende à razão e satisfaz à dignidade da pessoa humana.
Na Itália, após acentuarem a constitucionalização da obrigação do Estado de "instituir escolas estatais para todas as ordens e graus", Di Celso e Salermo, analisando o art. 34 da Constituição, que assegura o "direito ao estudo", não hesitam em visualizar a existência do direito a obter dos poderes públicos, segundo as condições estabelecidas na Constituição e na lei, as prestações necessárias ao profícuo desenvolvimento dessa atividade. Acrescentam que, "não diversamente do direito ao trabalho, o direito ao estudo nasce como liberdade e se desenvolve como direito cívico ou social ou, como outros preferem dizer (Martines), evolui da liberdade negativa à liberdade positiva". Apesar disso, apresenta uma diferença substancial em relação ao direito ao trabalho, pois a Constituição e a lei impõem os meios (v.g.: bolsa de estudo) para tornar efetivo esse direito, indicando uma concreta linha de ação, do que resulta um verdadeiro poder jurídico de exigir a sua prestação. Ao final, lembrando a Sentença 215/87, do Tribunal Constitucional, concluem que "a escola está aberta a todos" (la scuola è aperta a tutti).
Igual entendimento tem prevalecido na Espanha, onde o art. 27 da Constituição dispõe que "todos tienen derecho a la educación". Segundo o Tribunal Constitucional (STC 86/1985, FJ 3), esse direito tem um teor primário de direito de liberdade e, mais especificamente, uma dimensão prestacional que, na atualidade, ressalta das exigências do Estado social. Em razão desse preceito, o Poder Público está obrigado a assegurar a efetividade do direito à educação, em especial nos níveis básicos de ensino integrantes do sistema educativo, pois, a teor do item 4 do mesmo artigo, tais níveis, além de obrigatórios, são gratuitos. Esse direito pode ser imediatamente exigido, por qualquer cidadão, perante os tribunais, inclusive com a utilização do recurso de amparo, que apresenta certa similitude com o mandado de segurança pátrio.
Tratandose de outros níveis de educação que não aqueles previstos no art. 208, § 1º, da Constituição da República e no art. 208 da Lei nº 8.069/90, a exigibilidade de sua implementação dependerá do concurso de uma complexa rede de circunstâncias fáticas e jurídicas. Em linhas gerais, exigirá, como antecedente lógico, o atendimento de outros direitos igualmente integrantes do mínimo existencial (v.g.: habitação), que correspondem a valores de indiscutível fundamentalidade e preeminência em qualquer sociedade. Em um segundo momento, exigirá, à luz do caso concreto, a realização de um juízo de ponderação em relação a outros princípios que igualmente incidem na espécie. Além desses juízos valorativos, tornase necessária a análise das possibilidades materiais do ente estatal, o que permitirá a transposição dos direitos normativamente previstos de um campo dominado pela retórica para uma seara ao alcance da realidade e da fruição social.