Capa da publicação A Disney e suas MagicBands: para onde vão nossos dados no lugar mais feliz da Terra?
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Para onde vão seus dados no lugar mais feliz da Terra?

07/08/2017 às 18:23
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A tecnologia vem permitindo cada vez mais comodidades aos usuários. Para acessá-las, é comum que os consumidores optem por aceitar mitigar seus direitos de privacidade em troca de determinados serviços. Com o advento e popularização dos wearables, a questão tende a se tornar ainda mais frequente.

Ao chegar no complexo Disney World, em Orlando, Flórida, o visitante se depara com um arco indicando “Welcome to the Happiest Place on Earth” (“Bem vindo ao lugar mais feliz da Terra”, em tradução livre). Logo em seguida, ao fazer check-in em um dos hotéis do complexo, ele recebe uma MagicBand.

As MagicBands são pulseiras entregues a todos os visitantes hospedados em hotéis do complexo da Disney, podendo, ainda, ser adquiridas por visitantes que circulam apenas pelos parques. Estas pulseiras ficam diretamente vinculadas ao nome de seu adquirente, incorporando informações como: ingressos para os parques e reservas em hotéis. Além disso, elas servem como chave para a porta dos quartos nos hotéis do complexo e até mesmo como meio de pagamento, incorporando dados do cartão de crédito indicado pelo visitante. Basicamente, tudo o que o visitante pode necessitar dentro do complexo Disney World está ao alcance de seu pulso. Portanto, isto significa que ele veste a pulseira o tempo inteiro, ao circular pelo complexo.

Para se prestar a todas estas funcionalidades, a MagicBand utiliza ondas de rádio, que permitem à Disney obter informações acerca da circulação dos visitantes em seu complexo. Aparentemente a Disney utiliza a MagicBand frequentemente para personalizar as atrações a seus visitantes. Por exemplo, a Disney solicita a data de aniversário de todos os usuários das pulseiras. Assim, caso um personagem circulando no parque passe próximo de uma criança que utilize a MagicBand, no dia de seu aniversário, ele pode receber uma notificação para congratular especialmente a criança[1]. Ainda, a pulseira pode ser integrada com a conta do visitante no aplicativo disponibilizado pela Disney, enviando, por exemplo, fotografias tiradas nos parques diretamente para o aplicativo.

Mas, para vivenciar esta experiência agradável e especial dentro da infraestrutura do complexo, o que o visitante oferece em troca? Em primeira análise, ao menos seus dados cadastrais, necessários para a reserva nos hotéis e para a aquisição de ingressos e, caso deseje utilizar a MagicBand como meio de pagamento, informações de cartão de crédito. Além disso, caso o visitante opte por utilizar a pulseira como meio de pagamento, a Disney consequentemente terá acesso a informações valiosas acerca de seus hábitos de consumo no complexo.

Entretanto, como anteriormente mencionado, a MagicBand funciona por meio de sinais de rádio. Como indicado pela própria Disney, a pulseira utiliza bandas de altas frequências para emitir e receber sinais, por meio de uma pequena antena nela localizada, podendo ser reconhecida tanto por sensores de curto alcance, como os localizados nas entradas dos parques e nos caixas, para pagamento, quanto por leitores de longo alcance, que permitem à Disney coletar informações sobre a movimentação no complexo[2]. Em outras palavras: a Disney é capaz de obter informações de geolocalização dos visitantes, de modo a entender por onde cada visitante circulou no parque, podendo, pelo menos em tese, acompanhar determinado visitante em tempo real.

Os dados coletados são um grande negócio para a Disney. A empresa, inclusive, contrata matemáticos para estudar os padrões de atividades nos parques, o que permite administrar o negócio de acordo com as métricas identificadas, dedicando mais recursos a áreas e atrações com maiores demandas e, até mesmo, antecipando necessidades[3].

Curiosamente, embora os visitantes do Disney World aceitem mitigar sua privacidade para circular no complexo com a MagicBand, a entrega da pulseira não é acompanhada de quaisquer informações acerca de seu funcionamento, das informações coletadas acerca do usuário quando da utilização do bracelete, nem de qual uso é feito pela Disney de tais informações. Também não é coletada nenhuma forma de aceite do usuário, com o intuito de demonstrar seu consentimento com relação à utilização dos dados pessoais coletados a seu respeito pela Disney. Tal conduta, entretanto, não corresponde a qualquer ilicitude por parte da Disney, sendo certo que os Estados Unidos não possuem lei geral de proteção de dados, sendo esta regulamentada de forma segmentada, por leis setoriais e estaduais.

O estado da Flórida, local onde se encontra o complexo Disney World, possui, desde 2014, lei específica relacionada à proteção de dados pessoais, conhecida como Florida Information Protection Act (“FIPA”). Referida norma, entretanto, não menciona a necessidade de obtenção de consentimento dos titulares dos dados para seu tratamento, focando mais na segurança dos dados coletados (que a Disney indica respeitar[4]) e em procedimentos em caso de vazamentos de dados. 

A Disney, ainda, disponibiliza em seu site oficial Política de Privacidade[5] informando acerca do funcionamento da MagicBand. A empresa, inclusive, informa que o visitante não é obrigado a utilizar a MagicBand, podendo circular nos parques com o cartão de acesso oferecido (muito menos conveniente, é claro), que contém apenas receptores passivos de sinais de rádio[6], não transmitindo, portanto, informações acerca da utilização do parque pelo usuário.

É um serviço que pode ser considerado por muitos como intrusivo, embora lícito. A Disney, inclusive, reforça, na Política de Privacidade relacionada à MagicBand, que a pulseira se destina apenas à utilização nos Estados Unidos[7], diante das particularidades da legislação local. A MagicBand não é disponibilizada, por exemplo, nos parques da Disneyland Paris. Isto pode, em certa medida, estar relacionado ao fato de que a União Europeia possui normas muito mais estritas acerca de privacidade e tratamento de dados pessoais do que os Estados Unidos, o que, portanto, requereria uma série de cuidados adicionais da empresa com relação à coleta e tratamento dos dados pessoais obtidos.

Um artigo, inclusive, compara as MagicBands, em conjunto com os sensores no complexo da Disney e os sistemas aos quais estes estão ligados, com um computador gigante, processando em tempo real dados de onde os visitantes estão, o que eles estão fazendo e o que eles querem e, é claro, atendendo aos desejos identificados, o que permite à Disney aprimorar os serviços prestados e, cada vez mais, atender aos interesses dos consumidores[8].

Na realidade, este tipo de atividade realizada no Disney World pouco difere do que grandes empresas de tecnologia, como Google e Facebook, já fazem diariamente: coletam, armazenam, tratam e compartilham dados de usuários, utilizando-os para aprimorar suas atividades comerciais, melhor entendendo e atendendo os interesses dos usuários e, portanto, gerando consumo a partir disso. Vivenciamos isto diariamente, por exemplo, ao utilizar um smartphone com sistema operacional Android, que, vinculado a uma conta Google, pode indicar por onde seu possuidor passou em determinado dia e coletar, com precisão, informações acerca de seus hábitos diários, revertendo tais informações a produtos e serviços ao usuário.

O fato é que as pessoas estão cada vez mais propensas a aceitar a mitigação de sua privacidade pela comodidade, mesmo sem entender exatamente o significado deste trade off. A MagicBand da Disney corresponde à perfeita analogia do mundo fora da terra da fantasia, no qual diariamente as pessoas optam por mitigar sua privacidade em troca de conforto e serviços. Com a popularização dos wearables e a evolução da Internet das Coisas (IoT – Internet of Things), a questão tende a se tornar ainda mais frequente.

Diante deste cenário, tornam-se de extrema relevância as leis e normas que visam a regular a utilização de dados pessoais, com intuito de conferir maior segurança jurídica tanto aos indivíduos quanto às corporações que tratam os dados. No Brasil, a questão já é tratada de maneira esparsa por diversos diplomas legais, como, por exemplo, a Constituição Federal, o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e seu Decreto Regulamentador (Decreto nº 8.771/2016).

Desse modo, caso a Disney decida vir ao Brasil e operar com a MagicBand, será necessária a adequação de seu sistema a algumas regras locais, principalmente as estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Marco Civil da Internet e seu Decreto Regulamentador, especialmente em razão do fluxo de informações coletadas por meio da MagicBand com o aplicativo e o website disponibilizados pela Disney. Assim, por exemplo, seria recomendável a obtenção de prévio consentimento do usuário para o tratamento de dados coletados por meio da MagicBand conjuntamente com as aplicações de internet disponibilizadas pela Disney.

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Ainda, o Brasil, ao contrário de outros países, ainda não possui lei geral de proteção de dados pessoais, mas apenas normas setoriais. Circulam, no Congresso Nacional, alguns projetos de lei sobre o tema, dos quais se destacam o PL nº 5.276/2016 e o PL nº 4.060/2014, ao qual o primeiro se encontra apensado. Embora não haja previsão para sua análise pelo Congresso Nacional, espera-se uma nova versão do Projeto para os próximos meses.

Indiscutível, portanto, a relevância de legislação direcionada especificamente à privacidade e proteção de dados pessoais diante da evolução tecnológica e sua popularização, afinal, no estágio atual, é muito provável que o “big brother” (ou o “big mouse”) esteja de fato assistindo.


Notas

[1] FOREMAN, John. “You don’t want your privacy: Disney and the meat space data race”. Disponível em: https://gigaom.com/2014/01/18/you-dont-want-your-privacy-disney-and-the-meat-space-data-race/. Acesso em 15.06.2017.

[2] Disponível em: https://disneyworld.disney.go.com/faq/my-disney-experience/frequency-technology/?awc=2632_1497575595_4aa64e8d70aec52bf978f5093a2f8d96&utm_medium=affiliate&utm_source=Skimlinks&utm_campaign=Editorial+Content. Acesso em 15.06.2017.

[3] ESTES, Adam Clark. “How I Let Disney Track My Every Move”. Disponível em: http://gizmodo.com/how-i-let-disney-track-my-every-move-1792875386. Acesso em 16.06.2017.

[4] “The security, integrity and confidentiality of your information are extremely important to us. We have implemented technical, administrative and physical security measures that are designed to protect guest information from unauthorized access, disclosure, use and modification. From time to time, we review our security procedures to consider appropriate new technology and methods. Please be aware that, despite our best efforts, no security measures are perfect or impenetrable.” (Disponível em: https://disneyworld.disney.go.com/faq/my-disney-experience/my-magic-plus-privacy/. Acesso em 16.06.2017.)

[5] Disponível em: https://disneyworld.disney.go.com/park-experience-terms-conditions/?awc=2632_1497575597_57d0f611568a45a5431da900104f2103&utm_medium=affiliate&utm_source=Skimlinks&utm_campaign=Editorial+Content. Acesso em 16.06.2017.

[6] “Guests can participate in MyMagic+ and visit the Resort without using the MagicBand by choosing a card, which cannot be detected by the long-range readers; however, certain features of MyMagic+ are dependent upon long-range readers, including automatic delivery of certain attraction photos and videos and some personalized offerings, which are only available to guests using a MagicBand.” (Disponível em https://disneyworld.disney.go.com/faq/my-disney-experience/my-magic-plus-privacy/. Acesso em 16.06.2017).

[7] “MagicBands are intended for use in the United States only.” (Disponível em https://disneyworld.disney.go.com/park-experience-terms-conditions/?awc=2632_1497575597_57d0f611568a45a5431da900104f2103&utm_medium=affiliate&utm_source=Skimlinks&utm_campaign=Editorial+Content. Acesso em 16.06.2017).

[8] KUANG, Cliff. “Disney’s $1 Billion Beto n a Magical Wristband”. Disponível em: https://www.wired.com/2015/03/disney-magicband/. Acesso em 16.06.2017.

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Sobre a autora
Carla Segala Alves

Advogada no escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados. Especialista em Propriedade Intelectual e Novos Negócios pela Escola de Direito da FGV-SP. Membro do Grupo de Ensino e Pesquisa em Inovação (GEPI) da FGV-SP, na área de privacidade e proteção e dados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Carla Segala. Para onde vão seus dados no lugar mais feliz da Terra?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5150, 7 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58765. Acesso em: 18 nov. 2024.

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