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Taxação dos inativos

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V – PRINCIPIO DA SOLIDARIEDADE E DA IGUALDADE

Com a nova redação do caput do art. 40 da Constituição Federal dada pela EC. 41 de 2003, o texto passou a descrever que as contribuições previdenciárias têm caráter solidário. Com base nisso, as procuradorias passaram a proclamar o surgimento de um novo princípio, o qual, a despeito da vinculação das contribuições sociais, faria com que os inativos passassem a colaborar para a manutenção do sistema social. Improcede a assertiva.

A solidariedade é vista pela legislação civilista (art. 264, CC) como relação singular de direito material, sendo essa a mesma concepção galgada pelo CTN (art. 124, inc. I). Todavia, a intelecção do termo deve advir do cotejo com o art 193 da Lex Legum. De fato, a solidariedade aqui empregada apenas veio à lume para enfatizar a política da Seguridade Nacional, aplicando à previdência do regime especial seus preceitos.

Para melhor entendermos a questão, faz-se necessário que desloquemos nossa atenção aos primados da Ordem Social. Assenta-se a Ordem Social no trabalho livre, tendo este sido elevado, antes mesmo de alicerce da Ordem Econômica (art. 170, VIII), à categoria de pressuposto da dignidade humana (art. 1º, inc. IV; art. 5º, inc. XII; art. 6º e art. 7º, todos da Constituição Federal).

Com efeito, o trabalho é norte a ser perseguido pela República Federativa do Brasil e deita suas raízes nos intangíveis direitos sociais do homem para se apresentar como sustentáculo da economia nacional. A preocupação do constituinte se justifica, na medida em que ao trabalhar, o homem, além de contribuir para o desenvolvimento nacional, deixa à margem suas necessidades e vicissitudes.

Se a Ordem Social se funda no trabalho para a promoção do desenvolvimento nacional, por outro lado limita o jogo egoístico do capital com o valor da justiça. Daí a necessária conjugação dos dois termos – somente com uma liberdade equilibrada do poder econômico podemos ter um ideário de bem-estar social.

São as palavras de José Afonso da Silva:

"Não é fácil realizar a justiça social num sistema em que predomina a concentração da riqueza. É que ela só se concretizará mediante eqüitativa distribuição da riqueza nacional, pois num regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais de viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política. Um regime democrático de justiça social não aceita profundas desigualdades, a pobreza e a miséria" (42)

Pois bem, como forma relativamente eficaz de deslocar fiat´s de atuação também aos mais necessitados, a intervenção do Estado na economia acabou por consagrar a Seguridade Social. Com efeito, o homem, enquanto ser limitado, fadado a um inexorável fim, necessita de bens materiais e imateriais que podem, em parte, ser supridos pelo Estado [43], desde que corroborado pela sociedade.

A par disso, a conotação de solidariedade que deve imperar é no sentido de promover justiça social. Em outras palavras, o que a EC 41/2003 fez foi nos lembrar que a instituição das contribuições sociais, incluindo-se aí as previdenciárias, tem por fim precípuo repartir riqueza, ainda que de modo indireto, protegendo o labor digno e livre.

O princípio ora em debate, antes de relacionar-se com a seguridade, nos remete à própria concepção de contrato social, ligando-se fundamentalmente ao derradeiro valor da igualdade. Decorre daí o Princípio da Eqüidade no Custeio (inc. V do art. 194, CF/88), conquanto as pessoas submetidas ao poder soberano do Estado se vejam na contingência de ter de arcar com a manutenção de suas sólidas estruturas na exata medida da igualdade entre seus assemelhados.

Entretanto, mudando agora o rumo do embate, resta-nos averiguar se com a aproximação do regime público ao regime geral de previdência [44], de lege lata, e a aplicação do critério isonômico do art. 150, inc. II, CF/88 [45], fazem jus os servidores públicos à imunidade insculpida no art. 195, inc. II da Carta Magna.

Quem melhor perscrutou o tema da igualdade em âmbito nacional foi o mestre Celso Antônio Bandeira de Melo, o qual aduz, in literis:

"Parece-nos que o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem a quebra da isonomia se divide em três questões:

a)a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;

b)a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;

c)a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados." [46]

Aplicando os assertos, uma regra de imunidade pode ser aplicada por analogia? Qual seria o critério de igualdade entre os inativos do regime público e aqueles do regime geral (RGPS), a inatividade? Existe correlação lógica entre os regimes previdenciários (geral/especial) e o tratamento tributário dispensado a um e outro?

Em primeiro lugar, a disposição do §2º do art. 108 do CTN [47] deve ser afastada, pois que pensamos que o enunciado está a tratar de casos de analogia e equidade em face de incidência tributária, portanto dentro da esfera de competência. A idéia da isonomia para emprego da imunidade do inc. II do art. 195 aos servidores públicos inativos diz apenas com interpretação constitucional, no intuito de aferir os delineamentos negativos de competência dos entes tributantes.

A par das controvérsias, se por um lado se discute sobre se as imunidades merecerem uma interpretação extensiva, sempre com o fim de tutelar direitos impostergáveis [48], por outro achamos que não é essa a melhor exegese, pois que a interpretação teleológica é que deve trazer à tona toda a sua dimensão.

Entrementes, se a aplicação da debatida isonomia se revela possível à luz do §12 do art. 40, CF/88 [49] a partir do advento da EC 20/98, posição essa já afirmada pelo STF [50], não pode, por outro lado, deter extensão que passe por cima de claro "texto de lei" em sentido contrário. Acontece que o preceito é suplementar, se aplicando ao regime especial apenas naquilo que couber, sob pena de antinomia real.

A Constituição não autoriza expressamente a imunidade dos inativos do regime especial, mas, pelo contrário, prescreve a tributação dos que recebam aposentadorias de valor superior ao limite previsto ao regime geral (hoje em R$2.400,00) por eficácia da EC 41/2003. Se o texto constitucional narra tal fato de forma translúcida, cabe aqui como uma luva a parêmia latina in claris cessat interpretatio.

Sem embargo, partindo-se da premissa de que inexiste hierarquia entre as normas constitucionais [51], vigora neste plano a hermenêutica da Uniformidade [52] (Grundsatz der praktischen Konkordanz) como contrabalanço ao Princípio da Máxima Efetividade, já que "os princípios não obedecem em caso de conflito a uma lógica do tudo ou nada, antes podem ser objeto de ponderação e concordância pratica, consoante o seu peso e as circunstancias do caso". [53]

Fora isso, restaria a análise referente aos limites do poder constituinte derivado, o que será abordado no próximo item, valendo de logo lembrar que desde a EC 20 de 1998, a imunidade dos proventos dos aposentados e pensionistas maiores de 65 anos foi revogada no que atine ao imposto sobre a renda, consoante dispunha o antigo inc. II, §2º, art. 153, da CF88, com os ressaltos de Roque Antonio Carrazza [54].

Em segundo lugar, pensamos que não há igualdade entre a previdência especial e a geral (INSS), ainda que ambas tenham sido aproximadas [55]. Além da possibilidade de perceber integralmente os proventos da inatividade, das diferenças de benefícios, de alíquotas, salários-de-contribuição e prazos de carência, mesmo de critérios objetivos a dar-se a aposentadoria [56], o servidor público é tutelado por entidade distinta, desvinculada do regime geral e administrada com maior rigor.

Se inexiste igualdade relevante ao tema entre os inativos do serviço público e os do regime geral, o critério de discriminação que devemos ter em mente dá-se (e deve dar-se) apenas entre os próprios servidores públicos, exatamente nas medidas de suas capacidades contributivas ou seja, quem mais ganha, mais deve pagar. A par disso, conquanto um servidor público aposentado aufira proventos acima do teto, ganhando mais do que outro, detém capacidade contributiva diversa, ao que deve ser diferentemente tributado na exata medida da dessemelhança existente.

Essa exatidão de medida ganha linhas mais visíveis quando estamos a tratar do teto previdenciário, pois que, para se pretender tributar o aposentado do regime especial, não basta mesmo que este possa auferir benefícios pecuniários acima do limite veiculado no regime do art. 201, CF/88, já que nesse ponto todos (os servidores) se equiparam; faz-se mister que ele efetivamente perceba proventos acima deste limite, podendo tão somente ser tributado no que sobejar.

Não obstante, a Emenda Constitucional nº 41 de 2003 assim dispôs:

"Art. 4º Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3º, contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.

Parágrafo único. A contribuição previdenciária a que se refere o caput incidirá apenas sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere:

I - cinqüenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

II - sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas da União."

O que o dispositivo está a averberar é que a contribuição previdenciária incidirá com a mesma alíquota recolhida pelos servidores ativos, tendo como base de cálculo, todavia, não o teto disposto, mas o que exceder a R$1.200,00 (hum mil e duzentos reais) para os servidores que não sejam da União e R$1.440,00 (hum mil quatrocentos e quarenta reais) para esses.

Pensamos que neste ponto a EC 41/2003 seja inconstitucional, não apenas por discriminar servidores públicos que estejam em idêntica conditio juris, mas por preceituar medida não razoável e desproporcional, andando ainda de encontro com a própria literalidade do §18 do art. 40 da Constituição [57].

Tendo como imunidade preceito expressamente previsto no seio constitucional [58], delineando negativamente as competências tributárias através de enunciados que reportem a um dado certo e específico, temos para nós que o § 18 do art. 40 dispôs regra de imunidade. Agora, tal imunidade não atinge apenas os servidores que aufiram aposentadorias cujo valor se limite ao teto previdenciário do regime geral, mas os próprios proventos de tais servidores, de modo que, mesmo os que ganhem acima de tal teto devem escapar da tributação sobre os proventos cuja pecúnia se cinja ao debatido limite [59]. De outra sorte, se estará infringindo o Princípio da Igualdade, Capacidade Contributiva e o Princípio Republicano.

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Sem embargo, à uma o texto da emenda distingue desarrazoadamente os servidores públicos estaduais, municipais e distritais dos servidores da União e, não bastando, impõe tributação não conforme com a exatidão da capacidade contributiva, na medida da desigualdade existente entre os que aufiram proventos aquém e além do limite do regime geral.


VI – PRINCÍPIO DA IRREDUTIBILIDADE DOS BENEFÍCIOS

A Constituição de 1991 consagrava a irredutibilidade como garantia à magistratura, tendo a Constituição de 1934 a estendido aos ministros do Tribunal de Contas. Com a superveniência da Constituição de 1988 sua abrangência deu-se aos trabalhadores (art. 7º, VI), servidores públicos (art. 37, XV), integrantes do ministério público (art. 128, §5º, inc. I, alínea "c") e beneficiários do sistema da seguridade social (art. 194, parágrafo único, inc. IV).

Que fique de logo claro que o Princípio da Irredutibilidade somente se refrata nas prestações pecuniárias, não compreendendo as prestações in natura, posto que estas têm uma menor transcendência quantitativa, o que não significa dizer ausência de conotação econômica.Todavia, conquanto o salário e os vencimentos sejam irredutíveis apenas em face de seus valores nominais, aduzem alguns que da mesma sorte seriam os benefícios da seguridade. Muito embora, temos para nós que o Princípio da Irredutibilidade vai mais além com relação aos benefícios [60].

A preocupação do constituinte quanto aos benefícios da seguridade pode ser constatada nos enunciados do § 4º do art. 201, bem como do § 8º do art. 40, todos da Carta Maior, preceituando que em caráter permanente deve ser procedido o seu reajustamento periódico a fim de conformar seu valor nominal com índices idôneos a preservar seu poder de compra [61].

Ultrapassadas essas primeiras considerações, tendo por certo que o Princípio da Irredutibilidade abrange também a previdência especial dos servidores públicos e desdobra efeitos nos valores nominais e reais dos benefícios pecuniários concedidos, resta-nos analisar seus limites normativos.

O art. 114 da Lei nº 8.213 de 1991 remarca três vertentes do multicitado Princípio da Irredutibilidade: com relação ao segurado, a terceiros e ao INSS. Quanto a este último, se proíbe a apropriação dos benefícios, abrindo exceções o art. 115, ao predizer, in exthensis:

"Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios:

I - contribuições devidas pelo segurado à Previdência Social;

II - pagamento de benefício além do devido;

III - Imposto de Renda retido na fonte;

IV - pensão de alimentos decretada em sentença judicial;

V - mensalidades de associações e demais entidades de aposentados legalmente reconhecidas, desde que autorizadas por seus filiados.

VI - pagamento de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, públicas e privadas, quando expressamente autorizado pelo beneficiário, até o limite de trinta por cento do valor do benefício. (Incluído pela Lei nº 10.820, de 17.12.2003)"

Tome-se nota que tais dispositivos se aplicam também ao regime previdenciário do setor público, mormente tenham cunho meramente explicativo do enredo de normas entrelaçadas em âmbito constitucional. Mais além, a possibilidade de se tributar a auferição de benefícios não é apenas percebida pela indiscutível "incidência" do Imposto de Renda, mas também pelo desconto procedido pelo INSS sobre o salário-maternidade [62].

Em suma, o Princípio da Irredutibilidade é limite objetivo ao legislador e ao aplicador do direito no sentido de manter o valor nominal e real dos benefícios pecuniários ofertados pelo sistema da seguridade, sendo que, não obstante, encontra lindes constitucionalmente delineados por uma intelecção sistemática e teleológica.

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Sobre o autor
André Felipe de Barros Cordeiro

Pós-graduando em direito tributário pela PUC/SP; advogado em São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORDEIRO, André Felipe Barros. Taxação dos inativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 494, 13 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5881. Acesso em: 24 abr. 2024.

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