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A pré-qualificação em licitação

03/11/2004 às 00:00
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A fase de pré-qualificação prevista pela Lei nº 8.666/93 é normalmente tratada com bastante singeleza pelos autores. Entretanto, a despeito da aparente simplicidade do tema, faz-se conveniente levantar algumas considerações acerca de alguns de seus aspectos.

Assim, como a fase de habilitação (arts. 27 a 33), destinada a avaliar a idoneidade dos proponentes, as licitações de maior complexidade podem ser compostas, também, por uma fase de pré-qualificação, prevista no art. 114 da Lei 8.666/93. Veja-se:

"Art. 114. O sistema instituído nesta Lei não impede a pré-qualificação de licitantes nas concorrências, a ser procedida sempre que o objeto da licitação recomende análise mais detida da qualificação técnica dos interessados.

§ 1º A adoção do procedimento de pré-qualificação será feita mediante proposta da autoridade competente, aprovada pela imediatamente superior.

§ 2º Na pré-qualificação serão observadas as exigências desta Lei relativas à concorrência, à convocação dos interessados, ao procedimento e à analise da documentação." (grifamos)

Verifica-se, portanto que a Lei autoriza uma "fase adicional" ao certame, realizando uma qualificação prévia dos interessados, assim explicada por Adilson Abreu Dallari:

"... o procedimento administrativo licitatório pode ser desdobrado, para que, num primeiro momento, sejam escolhidos alguns (short list) possíveis futuros proponentes à realização de algo cujo contrato é posto em disputa num segundo momento, exatamente e apenas entre os proponentes pré qualificados (1).

Não se pode deixar de invocar a saudosa lição do mestre Hely Lopes Meirelles:

"Pré-qualificação (art. 114) é a verificação prévia das condições das firmas, consórcios ou profissionais que desejam participar de determinadas e futuras concorrências de um mesmo empreendimento. Não se confunde com a habilitação preliminar nas concorrências, porque esta se faz em cada concorrência e aquela se realiza para todas as concorrências de um empreendimento certo, que pode exigir uma única ou sucessivas concorrências. Também não se confunde com pré-classificação das propostas, mesmo porque na pré-qualificação os interessados não apresentam proposta, mas tão somente documentação comprobatória das condições técnicas, econômicas e jurídicas pedidas pelo edital como necessárias à execução do objeto do futuro contrato."

Marçal Justen Filho [2] define, em boa síntese: "a pré-qualificação consiste na dissociação da fase de habilitação do restante do procedimento da concorrência. (...) Instaura-se um procedimento seletivo preliminar destinado a verificar o preenchimento de tais requisitos".

Ao analisarmos a doutrina atinente à pré-qualificação, deparamo-nos com as seguintes considerações de Luiz Carlos Alcoforado [3] ao comentar o referido art. 114 da Lei de Licitações:

"A norma deixou de cravas as situações licitatórias que recomendam uma "análise mais detida da qualificação técnica dos interessados", abrindo as fronteiras da legalidade para toda a sorte de abuso, se não houver referencial para a Administração adotar a pré-qualificação.

No entanto, pode-se conviver com a certeza de que o procedimento de pré-qualificação, se for o caso, somente pode ser adotado, exclusivamente, quanto se tratar de tipo (4) de licitação de melhor técnica, para qual a norma prevê, inclusive, a qualificação prévia dos licitantes" (5).

De fato, o legislador passou às mãos do agente administrativo o poder de decidir, de forma discricionária, em que situações proceder à instauração da fase de pré-qualificação, uma vez que não explicitou com clareza a extensão das situações em que seria necessária a "análise mais detida da qualificação técnica dos interessados". Há que se dizer, entretanto, que o legislador o fez com certa reserva, ao dispor no §1º do referido art. 114 que a "adoção do procedimento de pré-qualificação será feita mediante proposta da autoridade competente, aprovada pela imediatamente superior".

Daí a assertiva de Jessé Torres Pereira Júnior [6] de que esse procedimento (pré-qualificação) somente cabe na modalidade concorrência e "Sugerirá direcionamento indevido do torneio competitivo a inserção dessa etapa excepcional previamente à concorrência cujo objeto não apresentar aquele grau de dificuldade".

Por outro lado, ousamos, respeitosamente, discordar do entendimento de Luiz Carlos Alcoforado de que a pré-qualificação somente seria cabível em procedimentos licitatórios do tipo "melhor técnica", o que decorreria da interpretação do art. 46, §1º, I, da Lei de Licitações.

Com efeito, o dito dispositivo, por meio da expressão "previamente qualificados" prevê tão somente que, nas licitações do tipo melhor técnica, apenas serão abertas as propostas dos licitantes que tiverem sido considerados habilitados, na fase correspondente do certame, anterior à fase de julgamento das propostas. Vê-se, portanto, que o legislador não se referiu ao procedimento de pré-qualificação.

Desse modo, caberá ao agente administrativo decidir, motivadamente, em que situações será proveitosa a instauração da fase de pré-qualificação, podendo instaurá-la em procedimentos licitatórios, independentemente do tipo de licitação a ser utilizado [7].

Passando-se à análise do procedimento, cumpre lembrar mais uma vez o insuperável mestre Hely Lopes Meirelles [8]:

"O procedimento da pré-qualificação é assemelhado ao da própria concorrência, iniciando-se com a definição de seu objeto, edital, com ampla publicidade e especificação dos requisitos desejados pela Administração, abertura pública dos envelopes com a documentação e julgamento dos participantes por Comissão de, no mínimo, três integrantes, com a subseqüente homologação da decisão por autoridade competente."

Esclarece ainda:

"As firmas ou consórcios pré-qualificados serão, no momento apropriado, convidados a participar da concorrência que se abrir para o objeto da pré-qualificação. Nessa concorrência os participantes concorrerão em igualdade de condições, segundo o procedimento comum das concorrências, dispensada apenas a sua publicidade, porque os concorrentes já são conhecidos e deverão ser convocados individualmente para a licitação, nos termos do respectivo edital."

Verifica-se, portanto, que a fase externa da pré-qualificação deverá iniciar-se com publicação do edital, o qual deverá conter as normas a serem observadas durante todo seu transcurso. Convém lembrar que a existência da pré-qualificação não dispensa a existência da fase de habilitação na concorrência, tendo, entretanto, o objetivo de verificar apenas se os proponentes convidados mantêm as condições demonstradas naquela ocasião, conforme pode-se depreender da lição do ilustre jurista Toshio Mukai [9]:

"a pré-qualificação, como a sua própria denominação indica, não faz parte da concorrência. É procedimento preliminar da licitação, que seleciona determinado número de empresas, após ampla divulgação, para participarem (e somente elas) de certa concorrência, onde haverá a fase de habilitação e de julgamento das propostas" (grifou-se)

É o que se depreende também da seguinte decisão do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, citada por Antônio Roque Citadini:

"Edital de concorrência pública. A pré-qualificação de licitantes não dispensa a habilitação preliminar do procedimento licitatório, embora realizada só para confirmar se os concorrentes permanecem com as condições já comprovadas." (Concorrência Pública n. 04/93/SERLA, Cons. Reynaldo Sant´Anna, 01/07/93, RTCE/RJ n. 25, set/93, p. 258)

Assim, pode-se dizer que as normas aplicáveis à pré-qualificação são aquelas certeiramente sintetizadas por Carlos Pinto Coelho Motta [10]: "O § 2º do artigo determina que a pré-qualificação observe basicamente as regras para concorrência, a isonomia do conhecimento (art. 21), o rito (art. 43) e a documentação de habilitação (arts. 27 a 31)".

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Entretanto, algumas dúvidas podem surgir quanto se trata da extensão das exigências de pré-qualificação, em especial quando observamos com atenção o já referido § 2º.

Observe-se a doutrina de Marçal Justen Filho [11]:

"A pré-qualificação deverá respeitar os princípios gerais da Lei, especialmente os atinentes aos prazos e publicidade. No entanto, a pré-qualificação não pode ser limitada estritamente às regras constantes nos arts. 27 a 31. Os requisitos de qualificação técnica e econômico-financeira poderão ser adequados ao caso concreto. Será cabível exigir outros requisitos, além daqueles enumerados nos arts. 30 e 31. O controle de tais requisitos seguirá o princípio geral da pertinência e da necessidade. Mas a própria razão de ser da adoção da pré-qualificação conduz à admissibilidade de uma investigação aprofundada acerca da capacitação operacional real dos licitantes para executar o objeto da licitação."

Nessa mesma linha, Antônio Roque Citadini [12] afirma que: "É certo que, em se tratando de licitação mais complexa, tal fato já permite à Administração especificar de forma mais alargada as exigências de qualificação".

No entanto, tal alargamento das exigências de pré-qualificação - admitido em razão da necessidade de aprofundamento da qualificação dos licitantes devido à complexidade do objeto – deve ser vista com cautela, uma vez que a Lei de Licitações, no art. 114, §2º, é bastante clara ao dispor que na "pré-qualificação serão observadas as exigências desta Lei relativas à concorrência, à convocação dos interessados, ao procedimento e à analise da documentação" (grifou-se).

Desse modo, não nos parece possível exigir dos licitantes nada além ou aquém das disposições a que faz alusão a norma inserta no § 2º. Poder-se-ia admitir um maior rigor na análise da documentação dos concorrentes, mas não inserir no edital de pré-qualificação exigências de conteúdo distinto dos contidos nas disposições referentes aos documentos de habilitação, por exemplo. Em suma, não nos parece possível inovar no que diz respeito a tais exigências, sob pena de violação do dispositivo legal acima referido.

Em resumo, pode-se dizer que a fase de pré-qualificação pode ser um importante instrumento a ser utilizado pelo agente público, com vistas a perquirir a idoneidade dos interessados em contratar com a Administração Pública, a qual, entretanto, deve ser utilizada de forma judiciosa, de modo a não estreitar a competitividade do certame e nem extrapolar as disposições legais pertinentes.


Notas

1 Aspectos Jurídicos da Licitação, 4 ed., Saraiva, SP, 1997, p.20.

2 Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 9 ed., Dialética, SP, 2002, p. 603.

3 Licitação e Contrato Administrativo, 2 ed., Brasília Jurídica, 2000, p. 451.

4 Tipos de licitação: art. 45, §1º: menor preço, melhor técnica, técnica e preço e maior lance ou oferta.

5 Nesse ponto, o autor citado remete ao inciso I do § 1º do art. 46.

6 Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública, 5 ed., Renovar, RJ, 2002, p. 924.

7 "Art. 45. (...) § 1º Para os efeitos deste artigo, constituem tipos de licitação, exceto na modalidade concurso:

I - a de menor preço - quando o critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração determinar que será vencedor o licitante que apresentar a proposta de acordo com as especificações do edital ou convite e ofertar o menor preço;

II - a de melhor técnica;

III - a de técnica e preço.

IV - a de maior lance ou oferta - nos casos de alienção de bens ou concessão de direito real de uso.

8 Ob. cit, p. 89.

9 Licitações e Contratos Públicos, 6ª ed., revista, atualizada e ampliada, Saraiva, São Paulo, 2004, p. 205.

10 Eficácia nas Licitações e Contratos, 9 ed., Del Rey, BH, 2002, p. 554/555.

11 Ob. cit., p. 604.

12 Ob. cit, p. 525.

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Sobre a autora
Karla Botrel

Advogada pertencente à equipe do Dr. Toshio Mukai, do escritório Mukai Advogados Associados. Especialização em Direito da Economia e da Empresa pela FGV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOTREL, Karla. A pré-qualificação em licitação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 484, 3 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5893. Acesso em: 23 abr. 2024.

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