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Dos diplomas legais a respeito da desconsideração da personalidade jurídica

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4. Consolidação das Leis Trabalhistas

A Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-lei 5.462, de 1° de maio de 1943, ou seja, do final do Estado Novo de Getúlio Vargas, em seu artigo 2°, §2°, introduziu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito legislativo brasileiro ao prever a responsabilidade solidária, dentro do grupo de empresas, sobre as obrigações trabalhistas. Nas palavras de Fábio Konder Comparato:

“O direito brasileiro do trabalho, há várias décadas, impõe, pacificamente, a solidariedade das empresas componentes do grupo econômico pelo passivo trabalhista de cada uma delas (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 2°, §2° ).”[6]

O Direito do Trabalho tem como princípio básico tutelar de forma diferenciada o empregado, compensando, com privilégios legais, sua inferioridade econômica. Neste sentido, não poderia consagrar a autonomia das sociedades componentes de um grupo de empresas em prejuízo do empregado, cujo trabalho favoreceu todo o grupamento. Aliás, é comum, num grupo de empresas, as recíprocas transferências de empregados ou, ao menos, o trabalho conjunto de empregados de uma com os de outra.

Desta forma, admite-se a aplicação da doutrina da desconsideração, desprezando-se a individualidade e desconsiderando-se a personalidade jurídica independente de cada membro do grupo.

Esta prática vem sendo adotada pelos tribunais nacionais. Neste sentido:

“Falência – habilitação de crédito trabalhista – possibilidade de ser feita junto à falência de empresa do mesmo grupo econômico da devedora, onde as pessoas dos sócios são comuns em ambas as sociedades – desconsideração da personalidade jurídica – artigo 2°, §2° da Consolidação das Leis do Trabalho – Recurso provido.” (TJSP, 1ª Câm., Ap. N° 112.837-1. Rel. Luís de Macedo, j. 10.08.1989, v.u.).

O § 2° do artigo 2° da Consolidação das Leis do Trabalho instituiu a discussão sobre o conceito e efeitos dos grupos de empresas, a qual foi aprofundada por Fábio Konder Comparato, em sua celebrada obra O Poder de Controle nas Sociedades Anônimas.

Para a aplicação do dispositivo legal supracitado, duas correntes se apresentaram. Uma primeira fazendo uma interpretação restritiva do §2° do artigo 2° da Consolidação das Leis do Trabalho, exigindo uma hierarquia dentro grupo de empresas para a aplicação da desconsideração. A segunda é mais eclética, fazendo uma interpretação extensiva.

Pela primeira corrente, é condição necessária a existência de uma empresa controladora, exercendo poder de direção das atividades das empresas controladas, para se permitir a aplicação da teoria da desconsideração. Neste sentido, podemos citar o próprio Fábio Konder Comparato, repetindo o critério da confusão patrimonial já estudado.

Pela segunda corrente, que faz uma interpretação mais ampla do dispositivo em estudo, ressalta-se a necessidade de se atentar a outras possibilidades de aglutinação de empresas que não possuem hierarquia de comando. Defendendo esta posição, pode-se citar Suzy Elisabeth Cavalcante Koury.

A posição seguida pela maioria, é a primeira, pois somente haverá grupo empresarial se as decisões empresariais, administrativas e financeiras forem tomadas de forma centralizada, pois somente assim serão preservados os interesses do grupo e não de cada membro.

Assim, tem-se, em verdade, um empregado trabalhando, não para uma empresa individualizada, mas para todo um grupo, o qual se constitui o empregador.

Aliás, o reconhecimento do grupo como empregador único acarreta uma série de efeitos importantes em relação ao contrato de trabalho, como por exemplo, a contagem do tempo de serviço prestado a diversas empresas integrantes do mesmo grupo.

Configura-se, portanto, a existência de grupo de empresas, na previsão do §2° do artigo 2° da Consolidação das Leis do Trabalho, ensejando a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica das empresas agrupadas, tendo-as como empregador único. Assim, evita-se que a personalidade jurídica da empresa contratante seja utilizada para encobrir a real vinculação do empregado ao grupo empresarial.

Um exemplo claro deste abuso são as subempreiteiras, que não passam de mera figuração da verdadeira empreiteira, no intuito apenas de se eximir das responsabilidades decorrentes da empresa. A aplicação da doutrina da desconsideração permite a responsabilização de todo o grupo.

Oportunamente, vale destacar que assim como no pressuposto da confusão patrimonial, o § 2° do art. 2° da Consolidação das Leis do Trabalho não exige a prova de fraude ou de abuso de direito para que outras empresas do grupo, que não a empregadora direta, respondam por obrigações trabalhistas desta.

Da mesma forma, se não estiver caracterizado o grupo de empresas pelo comando hierárquico e pela atividade conjunta, poderá haver a desconsideração da personalidade jurídica se ocorrerem fraudes ou abuso de direito através da pessoa jurídica.

Contudo, há posicionamento contrário à ocorrência da teoria de desconsideração da personalidade jurídica na hipótese do § 2° do art. 2° da Consolidação das Leis do Trabalho. Para Osmar Vieira da Silva:

“Na realidade, o texto consolidado (CLT) em seu parágrafo 2°, artigo 2°, não é caso de desconsideração da personalidade jurídica e sim exemplo clássico de responsabilidade solidária, em que pese a teoria também poder ser aplicada no direito do trabalho pelos seus próprios e peculiares fundamentos.”[7]

Neste sentido, entende o autor, que a Súmula 205 do Tribunal Superior do Trabalho determina como anti-jurídica a responsabilização na fase de execução da empresa que não tenha participado da fase de conhecimento:

“Súmula 205 TST: Grupo econômico. Solidariedade. O responsável solidário, integrante do grupo econômico, que não participou da relação processual como reclamado e que, portanto, não consta no título executivo judicial como devedor, não pode ser sujeito passivo na execução.”

Com devido respeito ao autor, equivocada está sua posição, posto que a responsabilidade do grupo causa justamente a incidência da disregard doctrine, não podendo decorrer de simples força de lei, sem fundamento científico e distante da realidade.

Por tais razões que a Súmula 205 do Tribunal Superior do Trabalho, amplamente criticada pela melhor doutrina, acabou sendo cancelada pela Resolução 121 de 21 de novembro de 2003 por atentar contra princípios da própria Justiça do Trabalho, além de ser ilegal, por contrariar ao §2° do art. 2° da Consolidação das Leis do Trabalho, por negar-lhe vigência, tal qual explica Suzy Elizabeth C. Koury:

“De fato, o referido Enunciado determina que só poderá figurar na execução a empresa do grupo que tenha participado da fase cognitiva, contrariando, assim, o disposto no § 2° do artigo 2° da CLT, assim como o princípio da celeridade e da proteção ao trabalhador, que informam o Direito do Trabalho.”[8]

Além disso, esta Súmula contraria outro enunciado do mesmo tribunal, o de número 129, o qual considera que a prestação de serviços a mais de uma empresa do mesmo grupo, durante a mesma jornada de trabalho, não caracteriza a existência de mais de um contrato de trabalho.

“Súmula 129: Contrato de trabalho. Grupo Econômico. A prestação de serviço a mais de uma empresa do mesmo grupo econômico, durante a mesma jornada de trabalho, não caracteriza a coexistência de mais de um contrato de trabalho, saldo ajuste em contrário.”

Eis, portanto, mais uma contradição entre o direito material e o direito processual, posto que o primeiro considera o grupo como um só empregador, enquanto que o segundo trata as empresas do mesmo grupo como se fossem empregadoras distintas.

Na verdade, tal qual as hipóteses que possibilitam a incidência da teoria da desconsideração, a Súmula 205 do Tribunal Superior do Trabalho trazia graves prejuízos ao trabalhador, já que criava um obstáculo ao empregado hipossuficiente, no intuito de satisfazer seu crédito trabalhista, que possui natureza alimentícia, possibilitando, ainda, a perpetuação da irresponsabilidade dos grupos de empresas.

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5. A Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101./05)  

A Lei de Recuperação Judicial e Falência, assim como sua antecedente, o Decreto-lei 7.661, de 21 de junho de 1945, a antiga Lei de Falências, salvo melhor juízo, também não possui qualquer previsão legal que possibilite a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Contrariamente ao que possa parecer, a Lei de Recuperação Judicial e Falência não prevê qualquer possibilidade de desconsiderar-se a personalidade jurídica no caso concreto, mas sim, hipótese de responsabilização em decorrência da prática de fraudes.

O artigo 53 da Lei de Falências revogada previa que eram revogáveis os atos praticados com a intenção de prejudicar credores, caso fosse provada a ocorrência de fraude do devedor e do terceiro que com ele contratar.

Tratava-se de previsão legal que ampliava as hipóteses de incidência da ação revocatória previstas no artigo 52 da antiga Lei de Falências, possibilitando que se alcançasse atos genéricos que tinham sido praticados com a intenção de prejudicar credores, decorrente de conluio entre devedor e terceiro que com ele tiver contratado.

 A Lei de Recuperação Judicial e Falência, em seu art. 130, em termos gerais, manteve as disposições legais do art. 53 da Lei de Falências anterior, apenas explicitando a necessidade de conluio entre o devedor e o terceiro, o que já era exigido na vigência da Lei anterior.

Da mesma forma, o art. 129, em linhas gerais, manteve as hipóteses de revogação dos atos praticados anteriormente previstas no art. 52 da antiga Lei de Falências.

De modo que, mesmo na vigência da Lei de Recuperação Judicial e Falência, válida é a lição de Trajano de Miranda Valverde, para quem a fraude que enseja a ação revocatória deve ser capaz de causar prejuízo a algum credor, existindo a vontade do devedor de efetivamente causar a lesão, bastando, no entanto, ao terceiro, o seu simples conhecimento, já que isto já enseja o conluio.

“A má-fé do terceiro consiste, exclusivamente, na ciência que tem de que o ato proposto pelo devedor visa ao prejuízo de credores. Não precisa que também ele tenha a intenção de prejudicar.”[9]

Este é o primeiro motivo pelo qual não se observava a previsão legal da desconsideração da personalidade jurídica no artigo 53 da antiga de Lei de Falências, posto que não era necessário conluio do devedor e terceiro para se compor uma fraude ensejadora da desconsideração, bastando simplesmente o artifício lesionador, que pode simplesmente ser praticado pelo administrador do devedor isoladamente, como no exemplo da constituição de nova sociedade com o patrimônio da pessoa jurídica.

A necessidade de conluio na revocatória, desnecessária para a doutrina da desconsideração, sempre foi de entendimento pacífico, sobre o qual enunciou o Tribunal de Justiça de São Paulo:

“Justifica-se a ação revocatória quando o ato for praticado com a intenção de prejudicar, sendo necessário, também, que o terceiro, que contratou com o falido, tenha consciência desse efeito para os demais credores.”[10]

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica aproxima-se da hipótese do artigo 130 da Lei de Recuperação Judicial e Falência, posto que em ambas deve-se provar a ocorrência da fraude para sua incidência.

Além disso, em ambas as hipóteses, o ato é válido e eficaz em relação ao credor, sendo que somente na hipótese sujeita à revogação não há eficácia quanto a massa falida.

Para se identificar quando caberá ação revocatória e quando será hipótese de desconsiderar-se a personalidade jurídica, deve-se atentar ao sujeito que praticou a fraude, sendo, portanto, o responsável pelas suas conseqüências.

Se o administrador praticou o ato fraudulento em nome e benefício da pessoa jurídica, esta responderá pelo ato e, por tê-lo praticado em lesão a credores, será possível revogá-lo via ação revocatória fundamentada no art. 130 da Lei de Recuperação Judicial e Falência.

Porém, se o administrador, somente na aparência, agiu em nome da sociedade, quando, no entanto, beneficiava a si próprio, este responderá pelo ato fraudulento e não a pessoa jurídica, não cabendo, portanto, a revocatória, e sim, a desconsideração.

Desta forma, não há o que se falar em ineficácia do ato em relação à pessoa jurídica que sequer dela participou. Neste caso, somente é cabível a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Por enquanto, o legislador brasileiro está deixando de utilizar uma importante oportunidade de regulamentar uma situação jurídica relevante para o sucesso de um processo falimentar, na medida em que possibilita um acréscimo no passivo, responsabilizando quem lesiona, não só aos credores, como também à própria massa falida.

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Sobre os autores
Lilian Cavalieri Ito

Advogada. Pós graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio de Jesus. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Michel Ito

Procurador do Município de Diadema. Diretor do Departamento de Rendas do Município de Diadema. Pós graduado pela Faculdade Damásio de Jesus e pela Faculdade Internacional Signorelli. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ITO, Lilian Cavalieri ; ITO, Michel. Dos diplomas legais a respeito da desconsideração da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5136, 24 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58982. Acesso em: 6 mai. 2024.

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