Pensando padrões epistêmicos impostos aos direitos humanos: transtorno do espectro autista

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07/07/2017 às 16:54

Resumo:


  • A igualdade perante a lei deve ser efetiva para todos, incluindo pessoas com deficiência, que historicamente enfrentam exclusão social devido a normas e práticas sociais discriminatórias.

  • A legislação específica, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) e a Lei de Proteção aos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei nº 12.764/2012), representa avanços significativos, mas é essencial que haja aplicabilidade efetiva e conscientização da sociedade para garantir a inclusão.

  • É crucial que a sociedade avance na quebra de padrões epistêmicos que limitam a participação plena de pessoas com deficiência, incluindo o Transtorno do Espectro Autista, em todas as esferas da vida, promovendo a inclusão escolar, no mercado de trabalho e na vida social em geral.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente artigo tem o objetivo de discutir o Transtorno do Espectro Autista envolvendo o campo jurídico e como a epistemologia pode ajudar a entender as pessoas com deficiência.

“Não basta que todos sejam iguais perante a lei. É preciso que a lei seja igual perante todos”. Salvador Allende

1. Introdução

O interesse em discorrer sobre o tema pessoas com deficiência surge da pretensão e ousadia de alguma forma divulgar e contribuir para o melhor entendimento sobre o assunto, cuja discussão vem, a cada dia, se tornando mais frequente.

Pessoas com algum tipo de deficiência sempre existiram. Tais imperfeições são de toda ordem, e não constituem a "maioria" na sociedade. Como as sociedades primam pelos iguais, pelas maiorias, aqueles considerados diferentes (as minorias) são excluídos do convívio social.

O tema ‘deficiência’ não é novo, porém, vem crescendo o debate, diante de nossa realidade social, merecendo tratamento legislativo diferenciado. O que se pode afirmar é que, há pouco tempo, o legislador começou a se preocupar em estabelecer regras a respeito. Em janeiro de 2016 entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro a Lei nº 13.146, publicada em 07 de julho de 2015, que trata do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Antes disso, em 27 de dezembro de 2012 as pessoas com Transtorno do Espectro Autista – TEA passaram a contar com alguma proteção legal, por intermédio da Lei nº 12.764, carecedora ainda de regulamentação em diversos pontos.

Mesmo assim, o caminho ainda é longo, pois a legislação brasileira protetiva específica não é um fim em si mesma, necessário se faz a sua aplicabilidade e conscientização da sociedade.

Deve-se atentar para o fato de que a existência de legislação não é sinônimo de garantia de respeito e inclusão na sociedade. A legislação é essencial, principalmente para que as pessoas com deficiência[1] possam exigir essa inclusão, mas são as pessoas que compõem a sociedade que tornam a vida daqueles que possuem uma deficiência menos ou mais penosa.

A legislação pode garantir às pessoas com deficiência o direito à saúde, à educação, ao emprego, a cultura etc., mas é a sociedade que pode tornar o local onde essa minoria estuda, trabalha ou se diverte, realmente agradável. Em uma rápida reflexão, as pessoas não estão preparadas para as deficiências. A começar pelos próprios pais, que esperam uma criança e muitas vezes rejeitam aquelas que nascem fora dos padrões esperado por eles. E mesmo aqueles que aceitam passam por um período de luto, perfeitamente justificável psicologicamente.

Fora da família, a recusa é ainda maior, mesmo aqueles que não pretendem rejeitar não conseguem, muitas vezes, tratar uma pessoa com deficiência de forma corriqueira. Em uma conversação entre uma pessoa com uma deficiência física e outra sem qualquer característica atípica, por exemplo, o mínimo que se verifica é a falta de naturalidade da pessoa dita típica. Isso quando não trata aquele que possui uma deficiência física como alguém que não possui capacidade mental.

Quando se trata de minorias, deve-se ter em mente que minoria nem sempre pode ser conceituada como inferioridade numérica.

Portanto, as minorias sejam por inferioridade numérica ou por outro motivo sempre enfrentaram preconceitos. Alguns grupos, como as mulheres, os homoafetivos, os negros, já foram ou ainda são deixados à margem da sociedade, e, para que essa exclusão possa ser atenuada até ser banida da sociedade, criaram-se mecanismos legais para a inclusão. E esses recursos têm gerado resultados significativos. A mulher casada, por exemplo, que até 1962[2] era considerada relativamente incapaz, atualmente está no mercado de trabalho em todas as linhas, como operadora e chefe.

Ao analisar os demais grupos tais como os homoafetivos e os negros, também se chega à conclusão que muito já se evoluiu. O preconceito para com esses grupos cada vez mais vem se atenuando e a normalidade no tratamento é cada vez maior. Esse é o objetivo que se pretende um dia atingir no tratamento da pessoa com deficiência.

Para a inclusão ocorrer, todos precisam agir, um passo importante é expor aquele que possui algum tipo de deficiência, no sentido de vivência, aprendizado, para que não fiquem ‘presas’ em casa. É essencial que sejam inseridos no meio, e isso requer que saiam de casa. Para pôr em prática essa vivencia, por exemplo, é necessário acessibilidade, inclusão escolar, acesso a espetáculos, cinemas e teatros, enfim,  nas diversas esferas da vida a qual todos possuem direito. Surge então, o auxílio de políticas públicas, num primeiro momento, para efetivar a inclusão.

Ao falar de pessoas com deficiência TEA – Transtorno do Espectro Autista no título do artigo, a palavra deficiência vem grifada, pois uma das propostas do presente artigo é provocar o pensamento sobre a diversidade neurológica e a inclusão das pessoas diagnosticadas com TEA como deficientes. Essa deficiência não pode ser colocada de forma a excluir o indivíduo da sociedade, a rotular e empacotar o mesmo como incapaz.  Essa deficiência deve ser colocada como protetiva.[3]

Aliás, o Estatuto da Pessoa com Deficiência corrigiu o Código Civil Brasileiro ao retirar do rol dos incapazes as pessoas com deficiência.

O presidente da Autistic Self Advocacy Network (ASAN), com sede em Washington (EUA), e membro do Conselho Nacional dos Estados Unidos sobre Deficiência, Ari Ne'eman, discorreu acertadamente sobre a forma como a diversidade neurológica deve ser vista em nossa sociedade, diz ele: “Precisamos ver a diversidade neurológica da mesma forma como vimos, no passado, os esforços para a diversidade no local de trabalho, com base em raça, gênero e orientação sexual". Informa em seu artigo: “Autistas encontram espaço no mercado de trabalho corporativo”, ao portal iG Kate Kelland.[4]

Um dos pontos que é necessário pensar e explorar é a preparação para a vida adulta da pessoa com deficiência. A declaração de Salamanca prevê, in verbis:

Preparação para a Vida Adulta

55. Jovens, com necessidades educacionais especiais, deverão ser auxiliados no sentido de realizarem uma transição efetiva da escola para o trabalho. Escolas deverão ajudá-los a se tornar economicamente ativos e provê-los com as habilidades necessárias ao cotidiano da vida, oferecendo treinamento em habilidades que correspondam às demandas sociais e de comunicação, e às expectativas da vida adulta. Isto implica em tecnologias adequadas de treinamento, incluindo experiências diretas em situações da vida real, fora da escola. O currículo para estudantes mais maduros e com necessidades educacionais especiais deverá incluir programas específicos de transição, apoio de entrada para a educação superior, sempre que possível, e subseqüente capacitação profissional, que os prepare a funcionar independentemente enquanto membros contribuintes em suas comunidades, após o término da escolarização. Tais atividades deverão ser executadas com o envolvimento ativo de conselheiros vocacionais, oficinas de trabalho, associações de profissionais, autoridades locais e seus respectivos serviços e agencias.


2. Padrões Epistêmicos e os Direitos Humanos

Ao tratar sobre os padrões epistêmicos, devemos atentar para como são eles impostos aos direitos humanos, buscando um olhar para as pessoas com deficiência do tipo TEA e como tais padrões podem ser pensados e tratados na prática.

A epistemologia está ligada à reflexão. E a epistemologia jurídica trata o ser humano de forma singular. A partir dessa afirmação, como chegamos a padrões epistêmicos? A distorção do conhecimento rotulado faz com que surja a necessidade de pensar tais padrões para discuti-los e aplicá-los na prática de forma melhorada.

Esse rótulo do conhecimento, que alguns julgam possuir, excluindo tantos outros, aparece claramente nas pessoas com deficiência. Pessoas com deficiência são muitas vezes tratadas como incapazes, não se esperando muito delas ou então esperando mais do que a normalidade. Assim, coloca-se a pessoa com deficiência como um “nada”, um fardo a ser carregado ou como um ser angelical, que está afastado de características inferiores (mau-caráter, pessoa inescrupulosa, egoísmo etc.).

 Muitos são os pontos que, na prática, precisam ser debatidos e combatidos quando o assunto é a deficiência. Um deles é a dificuldade de inclusão no mercado de trabalho.

Portanto, é necessário provocar o pensar para o descortinamento dos elementos impeditivos para a inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, especificamente TEA.

E, neste contexto, de uma forma simplista, é possível verificar pessoas com TEA em basicamente três ‘categorias’. Algumas pessoas possuem um autismo severo, outras a síndrome está em um grau mais brando e, por fim, existem pessoas que beiram a genialidade.

Não parece lógico que a pessoa com Transtorno do Espectro Autista não tenha aproveitamento no mercado de trabalho e, assim, se torne improdutiva. Restringir a inclusão no mercado de trabalho é, além de um fato econômico nada inteligente, também afeta o fator psicológico que atinge a própria sociedade.

Todo e qualquer cidadão incluído e saudável psicologicamente se torna produtivo para a sociedade. Desde os primórdios, a busca pela felicidade faz parte da raça humana. O professor e doutrinador Eduardo C. B. Bittar relata que:

“Na sondagem daquele que considera como sendo o sumo bem, ou seja, o bem bastante por si só, Aristóteles refuta as opiniões comuns que sustentavam ser a riqueza, o prazer ou a honra os bens de maior valor para o homem, subordinando suas existências a uma razão de ser mais importante para o ser: a felicidade... Aquilo que é próprio do homem, e que o distingue dos demais seres, é o que há de representar o que de mais alto ele possui: a racionalidade. Uma vida de acordo com a razão é a verdadeira vida humana, única responsável pela capacitação humana de alcance da felicidade que corresponde à natureza própria do ser pensante”. [5]

Seguindo a linha de pensamento de Aristóteles, a luta travada pela raça humana para atingir a felicidade e satisfação de suas necessidades, vem obtendo êxito no campo jurídico. É possível citar conquistas adquiridas por legislações mais amplas e extensivas que abrigam direitos fundamentais, sociais e trabalhistas.

A professora Regina Quaresma, ao tratar em seu livro sobre Participação Política, Cidadania e Inclusão Social expõe de forma brilhante sobre a cidadania. Resumidamente a autora preleciona que a cidadania leva tempo para se firmar e depende de doação, do envolvimento e do compromisso de todos. Mas, para que a cidadania nasça, é necessário que existam elementos que permitam seu surgimento. Diz a autora: “A cidadania é como um broto, que tem uma longa jornada a percorrer até virar árvore”. Afirma, ainda, que o Estado democrático não mais se sustenta sem ter como centro a Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Humanos, e a cidadania está nessa conscientização. Como então exercer esta cidadania ativa e responsavelmente? A autora responde: “(...) com educação, informação, conscientização e solidariedade (...)”.[6]

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Quando temos uma população educada e informada, a conscientização brota por ser da essência do homem, e, com isso, pretende-se gerar a solidariedade. Ainda citando a professora Regina Quaresma: “Não temos o direito de sermos omissos. Nada é pior que a omissão, que traz o vazio e a impotência!”. [7]


3. Transtorno do Espectro Autista – TEA e o Direito

A comunidade acadêmica, principalmente na área do direito, é bastante pobre quanto ao espectro autista, que é um transtorno global do desenvolvimento. Em geral a população desconhece o assunto. Mesmo com a estimativa da Organização das Nações Unidas – ONU, de que cerca de 70 milhões de pessoas no mundo são acometidas pelo transtorno, estudos demonstram que o autismo é mais comum que o câncer infantil, a diabetes e a AIDS[8]. No Brasil não há uma pesquisa oficial que aponte dados sobre a população acometida pelo TEA. Em censo realizado em 2000, pela primeira vez, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE, , divulgou que havia 24,5 milhões de brasileiros com deficiência, o que representa 14,5% da população brasileira.[9]

Quando se busca conhecer melhor o que significa autismo, quais as consequências jurídicas na vida cotidiana de quem é portador de tal síndrome, se a elas é conferida uma proteção especial, deparamo-nos com um vazio. A legislação é pobre, a doutrina é modesta, as pesquisas escassas.

A Lei nº 12.764 de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, já citada, foi um marco, um avanço para a sociedade, em especial para aqueles que estão proximamente envolvidos com o espectro. Entretanto, muito há que ser feito.

A pesquisa nessa área é essencial para melhorar a vida das pessoas com o espectro e de seus familiares. A carência atual no campo jurídico produz o que julgamos tratar da “dolentia do avestruz”[10]. Pregamos por explicar que, quando a sociedade, apesar de possuir conhecimento, mesmo que superficial, se recusa a tratar do assunto, no intuito de que o problema se extinga sem que ela precise agir, surge uma patologia. A sociedade adoece.

Portanto, toda e qualquer pesquisa, seja em que área for, que vise esclarecer ou resolver um problema é bem vinda quando se trata do espectro de autismo, diante da carência já apontada. Convenções, Declarações Internacionais e Leis nacionais procuram estimular a pesquisa nessa área.

O inciso VII do art. 2º da Lei nº 12.764/2012 estabelece como diretriz da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista o estímulo à pesquisa científica.

Art. 2o  São diretrizes da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista:

(...)

VIII - o estímulo à pesquisa científica, com prioridade para estudos epidemiológicos tendentes a dimensionar a magnitude e as características do problema relativo ao transtorno do espectro autista no País.

A Declaração de Salamanca foi um documento elaborado no período de 07 a 10 de junho de 1994, em Salamanca, na Espanha, pela Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais, sob o patrocínio da UNESCO e do Ministério da Educação e Ciência da Espanha, em relação ao qual o Brasil estabeleceu compromisso através do Decreto nº 3.298/99. O objetivo fundamental da Declaração de Salamanca é a inclusão escolar das crianças com deficiências[11]. Para isso estimula também outras vertentes, entre elas o estímulo à comunidade acadêmica no sentido de fortalecer a pesquisa, in vebis:

4. Nós também congregamos a comunidade internacional; em particular, nós congregamos: - governos com programas de cooperação internacional, agências financiadoras internacionais, especialmente as responsáveis pela Conferência Mundial em Educação para Todos, UNESCO, UNICEF, UNDP e o Banco Mundial:

(...)

- a estimular a comunidade acadêmica no sentido de fortalecer pesquisa, redes de trabalho e o estabelecimento de centros regionais de informação e documentação e da mesma forma, a servir de exemplo em tais atividades e na disseminação dos resultados específicos e dos progressos alcançados em cada país no sentido de realizar o que almeja a presente Declaração.

O Decreto nº 6.949 de 25 de agosto de 2009 promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Referida Convenção também fomenta a pesquisa para assegurar os direitos humanos e liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, coibindo, assim, o preconceito.

Artigo 4º Obrigações gerais

1. Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência. Para tanto, os Estados Partes se comprometem a:

(...)

g) Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento, bem como a disponibilidade e o emprego de novas tecnologias, inclusive as tecnologias da informação e comunicação, ajudas técnicas para locomoção, dispositivos e tecnologias assistivas, adequados a pessoas com deficiência, dando prioridade a tecnologias de custo acessível; (grifo nosso)

A conscientização social sobre o que significa o espectro autista fomenta o respeito pelo portador da síndrome. Um autista pode ser tão ou mais eficaz na sociedade quanto qualquer outra pessoa. É iminente descortinar conceitos pré-estabelecidos que rotulem e impeçam o crescimento social e pessoal, e, assim, conquistar a efetiva e sonhada inclusão do indivíduo.

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Sobre a autora
Inajara Piedade da Silva

Professora de Direito do Instituto Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora. Mestre em Direito. Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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