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Da venda sobre documentos no novo Código Civil

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08/11/2004 às 00:00
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5. Regularidade do título

Diz o parágrafo único do art. 529 do novo Código que achando-se em ordem a documentação, não se escusa o comprador ao pagamento, alegando defeito de qualidade ou do estado da coisa vendida.

Obviamente alude a lei à regularidade formal dos documentos cuja entrega foi pactuada no contrato. Significa que os documentos devem apresentar todos os requisitos de forma necessários ao tipo ou categoria a que cada um deles pertence. Não podem conter nenhuma alteração suspeita ou cláusula ou indicação contrária ao que as partes convencionaram. Por exemplo, não se admite como regular o documento atestatório de que o gênero ou a qualidade ou a quantidade da coisa estejam em desconformidade com o que foi contratado.

Assim, o título em que o emitente apõe ressalvas sobre a natureza, a qualidade ou a quantidade da coisa (v.g. se se tratar de produto perecível ou sujeito a evaporação durante o transporte, ou que ignora o peso ou a quantidade). Outrossim, não pode o comprador, em nosso sentir, ser obrigado ao preço se se lhe apresenta um documento do tipo "recebido para embarque" no lugar de um efetivo conhecimento de transporte ou de carga, haja vista aquele não traz em si a certeza de que a coisa foi remetida, mas apenas que está depositada aguardando o momento (incerto) para ser embarcada, a menos que assim tenham as partes convencionado.

Quando o documento não é capaz de individuar a coisa, ou não pode ser entregue ao comprador porque referente a várias coisas dentre as quais figura aquela que foi objeto da venda, também haverá nisso irregularidade. Nestes casos, como o de conhecimento de carga consolidada, apenas o transportador emitente poderá proceder ao desmembramento do título, donde a impropriedade deste para representar a coisa autoriza o comprador a reter o pagamento.


6. Inadimplemento e nulidade contratual

No que diz respeito à coisa, o adimplemento do vendedor e a responsabilidade pelos riscos não discrepam tanto das regras pertinentes à venda ordinária, tendo-se presente que a tradição do título representativo importa na entrega vicária da própria coisa aplicando-se, por conseguinte, regra geral as disposições do art. 492 do novo Código. Vale dizer, na venda sobre documentos os riscos correm por conta do vendedor até o momento em que entrega ao comprador o título representativo e os documentos que devam acompanhá-lo.

Impende ressaltar que os efeitos da substituição da entrega material da coisa pela de documentos limitam-se àqueles derivados da tradição como ato de execução da obrigação a que está adstrito o vendedor. Não se projetam para produzir outros, como v.g. os que referem à garantia da coisa por defeitos ou vícios aparentes ou ocultos.

No que concerne ao contrato de compra e venda o Código Civil de 1916, conferindo um caráter mais geral, incorporou algumas disposições já estabelecidas pelo Código Comercial de 1850. Assim, o art. 191 do CCo, embora com nova roupagem, encontra correspondência no art. 1.126 do Código de Beviláqua, tendo sido reeditado no art. 482 pelo legislador do Código de 2002. A exegese desses dispositivos legais conduz à ilação de que pelo contrato de compra e venda as partes se obrigam a cumprir determinadas prestações: o vendedor a entregar a coisa e o comprador a pagar o preço. Como fonte de obrigações, o contrato cria para o vendedor a obrigação de transferir para o comprador a propriedade da coisa alienada. Tratando-se de coisa móvel a propriedade se transfere com tradição, transmitindo o vendedor a posse sobre a coisa para o comprador (art. 1.267, caput).

Na venda sobre documentos, substituída a tradição pela entrega dos documentos, atendido estará o art. 1.267, caput se, dentre aqueles, figurar além do título representativo da coisa os demais documentos cuja entrega tenha sido convencionada pelas partes ou seja ditada pelos usos. Dessarte, por sua índole vicária, o comprador adquire a propriedade da coisa no momento em que se perfaz a entrega do título que a representa, à medida que se trata de coisa individuada, quer porque assim dita sua própria natureza, quer porque cuidando-se de coisa originariamente genérica encontra-se individuada pelo título representativo ao tempo da conclusão do contrato.

Faltante quaisquer documentos que devam escoltar o título representativo, já por expressa estipulação contratual, já porque assim determinam os usos, haverá inadimplemento do vendedor. Conquanto suprível, como já se viu, mas nem por isso menos inadimplemento. Outrossim, incorrerá o vendedor em inadimplência contratual se entregar os documentos extemporaneamente.

Ponto peculiar de análise é a exigência de documentos acessórios ao título representativo. Quando não forem expressamente previstos no contrato, ainda assim estará o vendedor obrigado a entregar aqueles que usualmente acompanham o primeiro, e sua ausência importará inadimplemento da obrigação legal, aí já não mais convencional, senão consuetudinária. A conseqüência do inadimplemento do vendedor, sob qualquer forma, é a possibilidade de o comprador reter o pagamento do preço.

Essa retenção não obsta ao comprador o direito que lhe assiste de optar entre a ação de adimplemento, ou de dissolução do contrato. Se o título representativo da coisa foi devidamente entregue, terá o comprador ação contra o seu emitente, e não contra o vendedor, na hipótese de não lograr a tradição material. Isto se deve ao fato do caráter substitutivo da entrega do título. Uma vez realizada o comprador adquire a propriedade da coisa e deve pagar o preço, extinguindo-se o contrato. Toda obrigação do vendedor desse momento em diante deriva dos deveres anexos pós-contratuais e tem seu fundamento na boa fé objetiva.

Se a coisa não existia, ou pereceu antes da conclusão do contrato, evidencia-se hipótese de contrato nulo por falta do objeto. Nulo também serão os títulos representativos de coisa inexistente ou que veio a perecer após a emissão e antes de concluído o contrato.

Nestes casos verifica-se ofensa à boa fé objetiva do vendedor já no que tange ao sinalagma genético do contrato, respondendo ele por culpa in contrahendo, posto que se agisse com ordinária diligência saberia do perecimento da coisa e não empreenderia contratar sobre ela. Então será responsável pelo ressarcimento do interesse negativo do comprador, vale dizer, as despesas em que este incorrera pelo fato do contrato, bem como pelos danos sofridos por não ter adquirido a coisa conforme a expectativa legítima decorrente do próprio contrato celebrado.

Tecnicamente, consoante preconiza o Código, os riscos sobre a coisa passam ao comprador com a tradição. Se esta se opera com a entrega de documentos, há uma transferência dos riscos nesse momento, no sentido de que cessam para o vendedor passando ao comprador, mesmo que a coisa ainda esteja em poder de terceiros, v.g. o depositário ou o transportador.

Exclui-se dessa transferência o fato culposo ou doloso do detentor da coisa e emitente do título representativo. Por outro falar, o vendedor não responde por fato culposo ou doloso do detentor da coisa, verificado após a entrega dos documentos — incluso o título representativo — ao comprador, porque a partir desse momento a propriedade e a posse, inda que indireta, transferiram-se para este último, respondendo o detentor diretamente ao comprador (= novo proprietário) pelo inadimplemento pela obrigação de custódia, obrigação unilateral e abstrata que emana do título de crédito.

De outro lado, o vendedor é responsável perante o comprador pelo perecimento, deterioração, extravio ou subtração culposa ou dolosa que se verifique antes da entrega efetiva dos documentos ao comprador, assegurando-se-lhe o direito de regresso contra o agente faltoso.

Essa a regra geral. Mas pode-se ainda responsabilizar o vendedor se a escolha do detentor (depositário, transportador etc.) foi sua, incorrendo aí na culpa in eligendo.

Resulta, então, assaz importante determinar o momento em que tenha ocorrido o perecimento, a deterioração, o extravio ou a perda, ou ainda a subtração da coisa: se antes ou depois da entrega do título representativo ao comprador ou seu representante legal; se antes ou depois da conclusão do contrato, a fim de se determinar os efeitos jurídicos que informam sobre quem recai a responsabilidade, e de quem será o ônus da prova. De regra a prova incumbe a quem faz a alegação. Entanto, força convir na venda sobre documentos a prova do momento em que a coisa pereceu, deteriorou-se, extraviou-se ou perdeu-se ou foi subtraída, quando em poder de terceiro (depositário, transportador ou portador), afigura-se extremamente dificultosa para o comprador, reputado dono com o recebimento do título representativo. Assim, atendendo a uma necessidade de ordem prática, a culpa deve-se presumir em desfavor do detentor, se depois da entrega do título representativo, ou do vendedor, se antes disso e após a conclusão do contrato, até prova em contrário. Com isso inverte-se o ônus da prova uma vez que as pessoas presumivelmente culpadas têm maiores chances de provar sua que não são responsáveis pelo fato danoso.

Vimos, então, o inadimplemento do vendedor pode ocorrer tanto na fase do da conclusão quanto na da execução do contrato, sendo arredada apenas após a entrega do título, secundado dos documentos convencionados ou exigidos pelos usos. Pode ainda o vendedor incorrer em inadimplência pós-contratual, tal aquela derivada da falta de cumprimento dos deveres laterais que surgem do fato do contrato e se projetam para além da extinção deste, exemplo do qual alvitre-se o dever de garantia por vícios redibitórios e mesmo daqueles aparentes, uma vez que o comprador só estará em condições de verificar a coisa após exercer sobre ela sua posse direta.

Dessome-se, ainda que hajam regras legais relativas a alguns desses deveres anexos, sua incidência, como aquela que limita o prazo de garantia, deve ser vista cum grano salis, à guisa de não gerar iniqüidades que se não compaginam com o instituto da venda sobre documentos. Na hipótese ventilada, o prazo decadencial da garantia pelos vícios aparentes obviamente não poderá ter como dies a quo aquele da entrega do título representativo, mas sim o momento em que o comprador efetivamente se assenhoreie da coisa.


7. Exposição de riscos e os efeitos da exigência de apólice de seguro

A exposição de riscos segue em quase tudo a regra geral dos contratos de compra e venda pura. Enquanto a coisa estiver na posse do vendedor deverá ele suportá-los. Entregue, porém, os documentos ao comprador, transferem-se para este. Esta a regra geral, mas que comporta exceções.

Embora o novo Código não trate a questão com a especificidade do Código Civil italiano, sendo este a fonte inspiradora daquele, lança valiosas réstias para compreender o alcance das normas ali inscritas.

De fato, dita o art. 531, que havendo entre os documentos entregues ao comprador, apólice de seguro que cubra os riscos do transporte, correm estes por conta do comprador, salvo se fosse do conhecimento do vendedor, ao tempo da conclusão do contrato, a perda ou avaria da coisa.

Se o vendedor sabia da perda ou deterioração e ainda assim vendeu calando-se, obrou de má fé, e deve suportar os prejuízos decorrentes de sua conduta maliciosa. Outra não poderia ser a solução sem que com isso se arrostasse o princípio da boa fé objetiva. In casu o vendedor incorre em culpa in contrahendo vulnerando, como já referido, o sinalagma genético do contrato.

Agora, tratando-se de venda de coisa em trânsito ao tempo da conclusão do contrato, fato corriqueiro no comércio internacional de commodities, havendo entre os documentos apólice de seguro contra os riscos do transporte, estes correm por conta do comprador que os assume no momento em que se conclui o contrato, haja vista sub-rogar-se nos direitos indenizatórios consubstanciados na apólice com cobertura por todo o trajeto ou rota.

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Dessarte, mesmo que a coisa já se tenha perdido, deteriorado ou extraviado obrigado estará o comprador a pagar o preço tanto que receba os documentos entre os quais figure o título representativo e a apólice transferível do seguro, tendo em seu favor a ação contra a seguradora. Pode-se dizer que em casos quejandos não há propriamente um prolongamento dos riscos, mas uma antecipação da exposição do comprador a eles. O contrato de venda será válido mesmo havendo perecido a coisa. Justifica-se esse preceptivo legal porque se o comprador não terá a coisa, obterá o equivalente com a indenização, cujo conhecimento prévio presume-se lhe fora dado nas tratativas encetadas com o vendedor.

Conquanto esta solução assegure a validade do contrato de venda sobre documentos tal como aí subsumido conservando sua natureza comutativa, não afasta possa o comprador, ocorrendo determinadas circunstâncias, invocar a rescisão do contrato fundamentando na lesão ou a resolução por onerosidade excessiva. Todavia do ponto de vista formal sempre haverá a anomalia de uma venda válida apesar do perecimento, deterioração, perda ou extravio de seu objeto, o que discrepa da situação fática, autorizando o argumento segundo o qual a verdadeira intenção das partes não é, nem nunca foi a só entrega dos documentos, ainda que aí se inclua a apólice de seguro. A substituição da tradição real pela do título produz seus efeitos apenas em relação ao pagamento e aos riscos posteriores à entrega documental. Contudo, se os contratantes visavam a coisa em si e não um negócio alternativo em que o comprador anteciparia o preço ao vendedor para adquirir a coisa ou, alternativamente a indenização que deflui da apólice, o entendimento diverso contraviria ao art. 112 combinado com o art. 113, ambos do novo Código, a par de transformar o contrato de compra e venda num contrato marcado pelo caráter aleatório.

A transferência dos riscos há, outrossim, de ocorrer na exata medida da exposição coberta pela apólice. Na hipótese de cobertura parcial aplicam-se as regras já estudadas e referentes aos vícios porventura detectados pelo comprador no momento da tradição real pelo detentor da coisa, e que poderão ainda amparar ação estimatória ou redibitória, cumulada com perdas e danos.


8. Pagamento do preço

Reza o art. 530, não havendo disposição em contrário o pagamento se dará na data e no lugar da entrega dos documentos.

Sob a perspectiva do comprador, a dívida contraída, consubstanciada na obrigação de pagar o preço, é dívida quesível salvo convenção diversa levada a efeito pelas partes no contrato de compra e venda por elas celebrado. Incumbe, pois ao vendedor fazer chegar ao comprador, atendendo aos ditames legais, os documentos contra os quais este deverá efetuar o pagamento. No pagamento incluem-se no não só o preço acordado para o objeto da do negócio entabulado como os acessórios convencionados, v.g. o valor do transporte, o prêmio do seguro quando houver apólice (art. 531), taxa de conferência, capatazia, etc.

Se os documentos estiverem regulares, não será lícito ao comprador recusar o preço alegando exceção de qualidade ou do estado da coisa, a menos que já demonstradas, pena de ser compelido por execução forçada se o contrato for escrito e vier assinado por duas testemunhas (art. 221 do novo Código Civil, combinado com o art. 585, n. II, in medio, do Código de Processo Civil).

Evidentemente o que pretende a lei é atender a dinâmica negocial encerrada na compra e venda, o que não exclui a possibilidade de o comprador argüir a existência de vícios encontrados na coisa depois de imitir-se na posse direta dela. Terá em seu favor a ação redibitória ou estimatória. O entendimento sobre o que seja vício oculto para a hipótese de venda sobre documentos, deve ser alargado pois a venda se dá sem que o comprador tenha tido contato direto com a coisa antes da entrega material. Seria onerar demasiadamente a posição do comprador tolhê-lo do remédio genérico que é a exceção do adimplemento inexato ou do inadimplemento parcial.

Caso interessante ocorre quando entre a conclusão do contrato e o momento da entrega dos documentos, venha o comprador, por qualquer meio, tomar conhecimento sobre defeitos na coisa idôneos a fazer com que jamais desejasse adquiri-la, ou, pelo menos ao preço contratado.

Em tal hipótese, por analogia do que dispõe o art. 531, in fine, poderá o comprador, a nosso ver, recusar o preço alegando defeito na coisa. Isto não fere o postulado da substituição da coisa pelo título que a representa. Aí a recusa não terá por fundamento o inadimplemento relativo à obrigação do vendedor em entregar dos documentos, mas sim a verificação prévia de vícios da coisa que a tornem imprópria ao fim a que se destina ou lhe diminuam o valor. Contudo, não será admissível a oposição de exceção da qualidade ou do estado da coisa quando não esteja caracterizada por prova pré-constituída. A lei é mesmo expressa quando exige estejam já demonstradas a perda ou avaria (art. 529, parágrafo único, in fine). Admitir-se ao comprador a exceção dilatória sob a alegação de prova por se produzir seria tornar a lei e todo seu conteúdo prático em letra morta.

A lei ao regular a cláusula da venda sobre documentos pretende conferir maior agilidade e rapidez na execução dos contratos de compra e venda, demonstrando com isso ter adotado um critério eminentemente prático, capaz de atender as necessidades da dinâmica negocial característica das relações jurídicas hodiernas. Daí por que a regularidade formal do título que substitui a coisa para efeitos da tradição gera presunção juris tantum de regularidade material da própria coisa. Todavia isso retira ao comprador a possibilidade da exceção de inadimplemento por vício de qualidade ou estado deixando-o somente a ação como acontece nas hipótese da cláusula solve et repete. Conseqüência do critério prático adotado pela norma sob comento, a exceção deve basear-se em prova pré-constituída, ou seja, desde que os vícios já se encontrem demonstrados e caracterizados estará o comprador autorizado a reter o preço, inadmissível a exceção dilatória fundada em prova por produzir, como exame pericial ou oitiva de testemunha.

Por fim, importa assinalar, a vedação legal contida no parágrafo único do art. 529 diz respeito somente à oposição de exceção dilatória concernente ao aspecto material da coisa: seu estado e sua qualidade, aí incluída a discrepância de gênero entre a coisa negociada e aquela representada no título, por isso que não restam afastadas as exceções de nulidade ou anulabilidade, ou de rescindibilidade do contrato, nem as de adimplemento inexato.

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Sobre o autor
Sérgio Niemeyer

advogado em São Paulo, mestrando em Direito Civil pela USP, Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NIEMEYER, Sérgio. Da venda sobre documentos no novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 489, 8 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5904. Acesso em: 23 abr. 2024.

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