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O direito na economia globalizada: breve síntese do pensamento de José Eduardo Faria

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2. Crise do direito e exaustão paradigmática

O autor neste tópico ressalta que dada a impressionante rapidez com que muitos dos conceitos e categorias fundamentais até agora prevalecentes na teoria jurídica vão sendo esvaziados e problematizados pelo fenômeno da globalização, seus códigos interpretativos, seus modelos analíticos e seus esquemas cognitivos revelam-se cada vez mais carentes de operacionalidade e funcionalidade. E questiona: de que modo conceitos e categorias construídos em torno do princípio de soberania, como monismo jurídico, norma fundamental, poder constituinte originário, hierarquia das leis, direito subjetivo e segurança do direito, podem captar todo o dinamismo e interdependência presentes no funcionamento de uma economia globalizada?

Na seqüência de seu pensamento o autor considera precipitado associar as dificuldades atuais do pensamento jurídico a um conjunto de proposições, como por exemplo as formuladas pelo positivismo normativista, ou, então forjados pelas correntes de inspiração analítica.

Para o autor essa idéia de crise configura um conceito analítico que serve para opor uma ordem ideal a uma desordem real, na qual a ordem jurídica é contrariada por acontecimentos para os quais ela não consegue oferecer soluções ou respostas técnica e funcionalmente eficazes.

Desta forma, para o autor, a crise hoje vivida pelo direito positivo e pelo pensamento jurídico, em face das transformações provocadas pelo fenômeno da globalização econômica guarda alguma semelhança com este tipo de diagnóstico. No entanto, ela o transcende em muito, a ponto de expressar o descrédito da própria noção de fronteira do conhecimento. Durante muito tempo acreditou-se que o estágio atual do pensamento jurídico tinha incorporado as formulações, os conceitos e as categorias mais importantes aparecidas no passado. E embora se soubesse que a história do pensamento jurídico é formada por controvérsias, polêmicas e rupturas, aceitava-se que, de algum modo, as verdades surgidas no passado estariam incluídas no presente.

O autor frisa ainda que sem a técnica da dogmática jurídica, sem a capacidade de (a) converter leis e códigos em técnicas de controle social, fundada antes em mecanismos formais do que na coação pessoal, (b) fazer das normas jurídicas medidas universais de comportamento social não vinculadas a nenhum conteúdo material; (c) sistematizar, de modo coerente, a legislação sob a forma de uma hierarquia de normas superpostas, em cujo âmbito as inferiores se subordinam às superiores num movimento linear e unidirecional e fundamentação e validez; (d) forjar técnicas para a “inter-individualização” processual dos conflitos com a finalidade de permitir seu “desarme”, sua “dispersão” e sua “biodegradação” pelas instituições judiciais; (e) de se expressar pela linguagem objetiva, clara, unívoca e precisa, viabilizadas pelo recurso a normas genéricas e impessoais hierarquicamente dispostas sem ordenamentos completos, sem lacunas ou antinomias, e por abstrações como a ideia de igualdade perante a lei “ou o primado da autonomia da vontade”, o direito positivo dificilmente teria condições operacionais de desempenhar seus papeis básicos de reduzir incertezas; de unir e, ao mesmo tempo, separar; de viabilizar a divisão e a atomização de uma sociedade concebida como um sistema de indivíduos independentes e de realizar sua unificação; de asseverar a previsibilidade das expectativas, o cálculo econômico e a certeza jurídica; de promover a garantia jurisdicional da constitucionalidade; de assegurar o equilíbrio dos poderes etc.

Toda esta sofisticada técnica, acima esboçada, é que está sendo posta em questão pelo complexo fenômeno da globalização econômica, envolvendo a um só tempo uniformidade e diferenciação, integração e fragmentação, continuidade e ruptura, codificação e deslegalização, controles diretos e controles indiretos, formalismo e informalismo, disciplina e punição, acumulação de riquezas e regulação privada, ordem jurídico-positiva estatal nacional e ordens normativas autônomas infranacionais e supranacionais.

Dando continuidade a sua exposição, o autor aborda a questão dos métodos da ciência jurídica e a exaustão paradigmática desta ciência em face desta nova ordem supranacional que penetra fortemente as bases jurídico-institucionais do Estado-nação. São, nas palavras do autor, momentos de revolução paradigmática.

Para desenvolver sua exposição o autor recorre aos ensinamentos de Kuhn, para quem, uma disciplina somente se converte em ciência quando uma comunidade de especialistas firma uma opinião comum quanto ao seu paradigma, isto é, ao conjunto de problemas relevantes e de padrões estandardizados de abordagem.

O interesse para a ciência, volta-se, portanto, quase exclusivamente para uma extensão do âmbito de aplicação de um determinado paradigma a questões por ele originariamente não tematizadas. E continua, dizendo que uma ciência “madura” é fruto de uma sucessão de tradições, cada qual com sua própria teoria e seus próprios métodos de pesquisa, cada qual guiando uma comunidade de cientistas durante um certo período de tempo. Nesse sentido, da mesma maneira como um paradigma é uma crença partilhada pelos membros da comunidade científica, uma comunidade científica é um conjunto de cientistas reunidos em torno de um paradigma. Consequentemente, a autoridade de uma proposição científica passa a se fundamentar em sua capacidade de gerar consenso no âmbito de uma dada comunidade. Em suma: um determinado raciocínio ou um dado argumento não é considerado “científico” por ser resultante da aplicação global de um método qualquer, mas por ser produto da aplicação de modelos e de enfoques consensualmente aceitos, o que singulariza como evidente, verdadeiro e certo.

Por fim, o autor conclui este ponto afirmando que há momentos em que os paradigmas entram em crise, onde passam a viver um período de turbulência e de anormalidade – na linguagem Kuhniana, atingindo o status de ciência extraordinária.


3. Globalização e direito: objetivos do trabalho

O autor inicia este tópico, destacando que ao atingir o estágio de “ciência madura”, na acepção dada por Kuhn a esse termo, a dogmática jurídica se destaca por seu conhecido rigor analítico, por sua racionalidade basicamente formal, pela precisão de sua linguagem e por seu “plurismo” metódico, encarando o poder inerente à produção normativa como uma instância autônoma em relação à economia e à política.

Na sequência o autor assevera que na dinâmica do processo de globalização da economia os fluxos de matérias-primas, de serviços, de bens, de recursos financeiros, de informações e de conhecimento especializado passam cada vez mais a obedecer à lógica própria desses mercados, que é independente das intenções dos sujeitos.

O autor explica que será visto nos próximos capítulos que a globalização econômica é um fenômeno altamente seletivo, contraditório e paradoxal, jamais podendo ser tomado como sinônimo de universalização no que se refere, por exemplo, à partilha equitativa de seus resultados materiais e ao acesso de todos ao que é comum. Portanto, por globalização se entende basicamente essa integração sistêmica da economia em nível supranacional, deflagrada pela crescente diferenciação estrutural e funcional dos sistemas produtivos e pela subseqüente ampliação das redes empresariais, comerciais e financeiras em escala mundial, atuando de modo cada vez mais independente dos controles políticos e jurídicos ao nível nacional, esse fenômeno, como afirma Habermas, acaba comprometendo mortalmente a “idéia republicana de comunidade”.

O Capítulo 2 aponta rapidamente as origens históricas da globalização e se detém mais aprofundadamente sobre os desdobramentos contemporâneos do processo de transnacionalização dos mercados, insumos, produção, consumo, finanças e capitais. Este capítulo dedica uma especial atenção ao papel exercido pelas sucessivas ondas de transformação tecnológica na substituição da sociedade industrial pela sociedade informacional, à subseqüente conversão do modelo “fordista” de produção no paradigma da “especialização flexível” e à consolidação da economia internacional numa “economia-mundo”.

O capítulo 3 discute alguns dos principais problemas político-jurídicos enfrentados pelo Estado-nação para a afirmação de sua autoridade, a implementação de suas decisões e imposição de suas normas gerais e padronizadoras. Dentre estes problemas destacam-se sua “ingovernabilidade sistêmica”, sua conhecida “crise fiscal”, sua tão decantada “inflação legislativa” e seu “trilema regulatório”.

O capítulo 4 examina as diferentes ordens normativas existentes na economia globalizada, como as regidas pelo “direito da produção”, pela Lex Mercatoia e pelo “direito sistêmico”; põe em discussão o desafio de sua articulação numa perspectiva funcional, em face dos imperativos técnicos do fenômeno da globalização; analisa a emergência de mecanismos normativos baseados menos em sanções e mais em simples procedimentos de negociação, estratégias de conciliação; e por fim, procura mostrar como a transnacionalização de mercados, ao introduzir novas formas de contratualidade nas relações entre os atores econômicos, converte contratos atípicos em contratos típicos, e, com isso, recoloca em novos termos a própria teoria contratual.

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O capítulo 5 trata basicamente das conseqüências políticas e das conseqüências sociais da transnacionalização dos mercados e de algumas de suas implicações jurídicas. Ele aponta o caráter essencialmente fragmentador e a naureza potencialmente anômica do fenômeno da globalização, em termos de esvaziamento do processo democrático, maior velocidade na mobilidade social descendente, ampliação dos níveis de pobreza, relativa e absoluta, aumento das marginalidades econômica, social e criminal, enfraquecimento das organizações sindicais, aceleração dos movimentos migratórios, etc.

Por fim, o 6º capítulo apresenta um enfoque mais especulativo. Formula críticas às contribuições mais recentes de alguns teóricos empenhados em desenvolver modelos analíticos capazes de dar conta das implicações jurídicas da globalização econômica, pondo em dúvida a viabilidade tanto das idéias de auto-organização, auto-regulação e “reflexibilidade normativa” quanto da crença na capacidade do direito neutralizar problemas sociais complexos e provocar mudanças com objetivos “compensatórios” e “distributivistas”. E procura fazer uma avaliação prospectiva dos possíveis desdobramentos institucionais normativos desse fenômeno. A menção às experiências de formação de blocos regionais e desenvolvimento de um “direito comunitário”, como sucedâneo à fragmentação jurídico-institucional provocado pela globalização econômica, deve ser entendida apenas e tão-somente como uma tentativa de encontrar fundamentação empírica para sustentar, dentro do possível, as afirmações feitas ao longo do referido livro.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tratou-se, nas linhas acima, de se fazer uma abordagem crítica acerca do conteúdo do livro 'O Direito na Economia Globalizada', de autoria de José Eduardo Faria. Este livro, de uma atualidade impressionante, discorre sobre os impactos e os reflexos que o fenômeno da globalização tem gerado na transformação do direito brasileiro. A principal tônica, que dita os fatores políticos, sociais e econômicos é a economia de mercado global, moldada pelas lógicas e pelos interesses do capital transnacional, que procura espaços competitivos, do ponto de vista social e principalmente econômico, para se reproduzir e se acumular.

Neste quadro de interesses, que extrapolam, em muitos, os limites da soberania nacional, um quadro de transformações, na sociedade (comportamento de consumo), nos governos e nas políticas, tem sido colocadas como fundamentais para que investimentos de capitais globais possam repousar sobre o solo dos países que se inserem ou querem se inserir no mercado global. Nesta direção, surge um pacote de proposições legislativas que objetivam flexibilizar legislações nacionais que geram, naturalmente, encargos e ônus para os investidores internacionais. Nestes termos, aspectos legais relacionados a relações consumeristas, trabalhistas, tributárias e ambientais precisam ser alterados para que o livre mercado encontre espaço para reproduzir-se livremente.

No entanto, não se pode, mesmo que haja interesses econômicos relevantes, deixar-se esvaziar um quadro de proteções construídos ao longe de lutas e de processos históricos apenas para se atender a interesses externos ou predominantemente externos. Se alguma necessidade de mudança houver, com impactos na legislação social e ambiental, que o seja por fatores e necessidades internas, para fazer face à superação de um quadro de dificuldades, que por si só é limitador de direitos fundamentais e da própria dignidade a pessoa humana, que lhes é basilar.


5. BIBLIOGRAFIA

FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1 ed. 4. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004.


Notas

[1] J.J. Gomes Canotilho define Constituição-dirigente como aquela onde o legislador ordinário já não é mais totalmente soberano em matéria de direito econômico e social, devendo pautar suas decisões pelos princípios e diretrizes programáticas definidos pelo poder constituinte; princípios e diretrizes que não são apenas de caráter negativo, mas também de natureza positiva, na medida em que estão voltados à consecução de determinadas metas e objetivos materiais. 

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel. O direito na economia globalizada: breve síntese do pensamento de José Eduardo Faria. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5221, 17 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59167. Acesso em: 16 abr. 2024.

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