INTRODUÇÃO
O autor destaca que o pensamento jurídico atual parece encontrar-se numa situação análoga àquela em que se achava o pensamento econômico no término dos tumultuados anos 20; ou seja, frente aos desafios de encontrar alternativas para a exaustão paradigmática de seus principais modelos teóricos e analíticos, tal o impacto gerado por todas estas transformações em seus esquemas conceituais, em seus pressupostos epistemológicos, em seus métodos e em seus procedimentos.
O autor recorda que após a grande depressão (final da década de 20), os conceitos, as premissas, os axiomas, os postulados, as categorias, as hipóteses e os métodos até ali dominantes, que vinham conferindo à economia o status de ciência, viram, subitamente, esgotar grande parte de seu potencial analítico e exaurir sua operacionalidade, perdendo em velocidade geométrica sua aceitação, e por consequência, sua legitimidade.
Vencida a fase inicial do desafio da transnacionalização dos mercados de insumos, produção, capitais, finanças e consumo, o autor afirma que vivemos atualmente a etapa relativa às mudanças jurídicas e institucionais necessárias para assegurar o funcionamento efetivo de uma economia globalizada.
Sobre a velocidade do fenômeno da globalização, o autor explica que quanto mais veloz e acentuada for, mais ela exerce um profundo impacto transformador nos sistemas políticos e normativos forjados em torno de determinados postulados (como o do monopólio do exercício legítimo da violência pelo Estado) e determinados princípios (como o da legalidade, da hierarquia das leis e da segurança do direito), levando seu poder de controle, decisão, direção e comando a ser crescentemente pressionado, condicionado e atravessado por uma pletora de entidades multilaterais, organizações transnacionais, grupos nacionais de pressão, instituições financeiras internacionais etc.
Na sequência de seu pensamento o autor recorda que neste contexto da globalização a tendência é que os direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais há tempos institucionalizados sejam crescentemente “flexibilizados” ou “desconstitucionalizados”.
O autor aborda também a questão da necessidade de adaptação das normas jurídicas para acompanhar as novas relações que surgem no contexto de uma economia globalizada, quando afirma que as normas tradicionais abstratas, gerais e impessoais, articuladas em termos hierárquicos por uma estrutura constitucional, têm sua efetividade crescentemente desafiada pelo aparecimento de regras espontaneamente geradas nos diferentes ramos e setores da economia, a partir de suas necessidades específicas (como é o caso dos procedimentos normativos oriundos das práticas mercantis adotadas pelas empresas transnacionais na economia mundial).
1. Nação, Estado e Soberania: o impacto da globalização
O autor recorda que a identificação da natureza das instituições de direito surgidas com a globalização econômica, o mapeamento das práticas normativas emergentes com esse fenômeno e o exame dos inúmeros e complexos desafios teóricos, problemas analíticos e questões metodológicas por elas interpostas ao pensamento jurídico passam pela importante questão da efetividade do próprio princípio da soberania do Estado-nação, enquanto condição epistemológica necessária da teoria jurídica moderna.
Para o autor, a natio, em seus primórdios, expressa uma realidade pré-política – mais precisamente, uma integração cultural a partir de uma união de pessoas com a mesma procedência, com a mesma identidade coletiva, com a mesma experiência histórica. Esse sentido vai alcançar o século XV, quando, então, o termo “nação” passa a ser cada vez mais empregado com propósitos políticos. Desde então, a ideia de nação, segundo José Eduardo Farias, é condicionada pela expansão concomitante e interdependente entre a crescente burocratização da Administração Pública, por um lado, e a evolução e extensão da cidadania, por outro. A partir do século XVIII a nação inclui a societas civilis (os cidadãos com direito de compartilhar e participar da elaboração das leis, da construção das instituições governamentais e de sua condução) e a “consciência nacional” se transforma numa poderosa forma de mobilização, de coesão e afirmação social.
Sobre a evolução do Estado, o autor inicia sua exposição ressaltando que Estado é oriundo da palavra Stato, particípio do verbo stare, e designando “organização estável”. O conceito de Estado indica e descreve um padrão específico de ordenamento político que começou a adquirir corpo a partir do século XIII, com a expansão urbana e comercial; desenvolveu-se com os conflitos entre Igreja, baronato, suseranos feudais, monarcas e burguesia mercantil em torno da unificação de estruturas de poder territorialmente fragmentadas e da aplicação de regras de direito válidas para todos os habitantes. Vinculada à consolidação desses Estados, a soberania, em seu significado moderno, diz respeito a um poder de mando incontestável numa determinada sociedade política; a um poder independente, supremo, inalienável e, acima de tudo, exclusivo.
Considerando ser a espinha dorsal da Teoria Geral do Estado, a elaboração teórica do conceito de soberania tem em vista, pelo menos, três objetivos básicos: a) A transformação da força bruta (Macht) em domínio (Herrschaft); b) A conversão do poder de fato em poder de direito, e; c) A outorga do processo político de uma estrutura normativa capaz de propiciar a conjugação de estabilidade com mudança e de legalidade com legitimidade.
Para o autor, essa elaboração teórica se desenvolve no começo do século XIX com base na concepção de soberania como expressão do poder político “incontrastável”; expande-se com o advento, décadas mais tarde, das doutrinas de direito público alemão sobre a personalidade jurídica do Estado como “centro de imputação de deveres e obrigações”; e vai resultar, a partir do século XX, entre outras concepções, no normativismo kelseniano, que vê soberania como expressão da unidade de uma ordem coativa; na visão política do ordenamento jurídico baseada num decisionismo, como a de Carl Schmitt; nas abordagens culturalistas que a definem como poder de organização jurídica tendo em vista a realização do “bem comum” e a afirmação de suas decisões nos limites dos “fins éticos de convivência”; e na distinção feita pela sociologia do direito à titularidade do poder e a capacidade de seu exercício efetivo, mais precisamente, entre capacidade de auto-organização e titularidade exclusiva do exercício do poder político na ordem interna e capacidade de relacionamento externo de forma livre e não subordinada.
Neste sentido, o autor ensina que nos primórdios do Estado moderno o direito é reduzido à lei imposta pelo soberano, sendo superior a todas as demais fontes de normatividade. Em um segundo momento, com o advento das declarações e das Constituições surgidas de três revoluções burguesas – a inglesa de 1688, a norte-americana de 1776 e a francesa, de 1789 – deflagradas com o fim de impor um freio ao governo absolutista, de racionalizar o poder monopolizado pelo Estado e de legitimar seu exercício por meio da democracia representativa e do aparelho judicial inteiramente profissionalizado. E em um terceiro momento, o autor ensina que passou-se à afirmação do princípio da “autodeterminação dos povos”.
Segundo o autor, toda essa engrenagem institucional forjada em torno do Estado-nação e o princípio jurídico constituído a partir dos princípios soberania, da autonomia do político, da separação dos poderes, do monismo jurídico, dos direitos individuais, das garantias fundamentais do judicial review e da coisa julgada é que têm sido constantemente postos em xeque pela diversidade, heterogeneidade e complexidade do processo de transnacionalização dos mercados de insumo, produção, capitais, finanças e consumo.
Quando o Estado não consegue mais regular a fixação dos preços de produtos, insumos e serviços, cujos mecanismos de operacionalização estão diretamente relacionados com o mercado global, vê, gradativamente, sua soberania esvaindo-se, mesmo que formalmente ela ainda exista. Neste sentido o autor explica: (...) embora em termos formais os Estados continuem a exercer soberanamente sua atividade nos limites de seu território, em termos substantivos, muito deles já não mais conseguem estabelecer e realizar seus objetivos exclusivamente por si e para si próprios. Em outras palavras, descobrem-se materialmente limitados em sua autonomia decisória. Numa situação extrema, segundo o autor, os Estados chegam ao ponto de não mais conseguirem estabelecer os tributos a serem aplicados sobre a riqueza – esta é que, transnacionalizando-se, passa a escolher onde pagá-los.
Para o autor, o grande desafio é dar conta dessa ruptura entre a soberania formal do Estado e sua autonomia decisória substantiva, por um lado, e da subsequente recomposição do sistema de poder provocada pelo fenômeno da globalização, por outro.
O autor diz que pode ser precipitado e ingênuo se falar em aniquilação da soberania, mas não há como negar que os formuladores de políticas são forçados a levar em consideração, com peso crescente, variáveis externas à jurisdição e ao escopo do Estado.
Uma das facetas mais conhecidas desse processo de redefinição da soberania do Estado-nação é a fragilização de sua autoridade, o exaurimento do equilíbrio dos poderes e a perda de autonomia de seu aparelho burocrático, o que é revelado pelo modo como se posiciona no confronto entre os distintos setores econômicos (públicos ou privados) mais diretamente atingidos pelo fenômeno da globalização, em termos positivos ou negativos.
Nesta esteira, o autor explica que os setores vinculados ao sistema capitalista transnacional pressionam o Estado a melhorar e ampliar as condições de “competitividade sistêmica”. Entre outras pretensões, eles reivindicam a eliminação dos entraves que bloqueiam a abertura comercial, a desregulamentação dos mercados, a adoção de programas de desestatização, a “flexibilização” da legislação trabalhista e a implementação de outros projetos de “deslegalização” e “desconstitucionalização”.
Já os setores defasados tecnologicamente, sem poder de competitividade em nível mundial, segundo o autor, tendem a ser contra esta abertura de mercado, e por isso mostram-se cada vez mais dependentes de algum grau de proteção por parte do Estado para sobreviver ou e modernizar, lutam para retardar, quanto tempo mais for possível a “inevitável” globalização. Para tanto, requerem a manutenção de um mercado local “reservado”, mediante obstáculos jurídicos, administrativos, tarifários e alfandegários à entrada de bens e serviços estrangeiros.
Uma outra faceta desse processo de recomposição do sistema de poder do Estado-nação são as discussões sobre o sentido, o alcance e o lócus da democraria representativa na economia globalizada; sobre a substituição da política pelo mercado como fator determinante do “âmbito público”; sobre a erosão dos distintos mecanismos de formação da identidade coletiva forjados pela modernidade; sobre os novos tipos de sociabilidade gerados pela mercantilização das mais diversas relações sociais, e sobre o caráter cada vez mais difuso e menos transparente da elaboração de regras jurídicas em matéria econômica, monetária, financeira, cambial, industrial e comercial.
Outro importante aspecto do desenvolvimento tecnológico e dos meios de comunicação foi lembrado pelo autor ao esclarecer que quanto mais disponíveis e sofisticadas são as formas de vinculação eletrônica entre as pessoas, mais amplas acabam sendo as possibilidades de “encontros sociais” não nas esferas públicas tradicionalmente constitutivas da cidadania, porém no espaço virtual entre quem jamais se falou pessoalmente; quanto mais as relações por meio de redes informatizadas se sobrepõe à proximidade física, o que conduz o “dom da palavra” a ser restringido pelo recurso a imagens e desterritorializa os universos simbólicos, mais numerosas e diversificadas são as formas de introspecção e isolamento sociais.
Como conseqüência, o autor diz que: “ (...) se representar significa uma relação entre sujeitos, por meio de um diálogo e de um mandato, quanto mais intensa for essa vinculação eletrônica e quanto maior o isolamento social, por ela produzido, maior será a fragmentação das identidades coletivas e mais tenderá ser a velocidade de empobrecimento dos mecanismos de participação e representação políticos.
O autor explica ainda que o teor da comunicação global acaba também sendo incompatível com o conjunto de valores de certos países, destruindo consensos, rompendo alternativas políticas e provocando perda de referências básicas. Procedimentos democráticos há tempos institucionalizados, podem, segundo o autor, ser minados com a crescente independência das empresas, setores econômicos e cadeias produtivas inteiras em relação aos recursos específicos de qualquer território nacional, ao mesmo tempo em que mecanismos, ritos e lógicas políticas tradicionais também correm o risco de perder parte de sua capacidade de articular e “sincronizar” os diversos processos e mudanças sociais.
Na seqüência de sua exposição, o autor assevera que com o fenômeno da globalização, as estruturas institucionais, organizacionais, políticas e jurídicas forjadas desde os séculos XVII e XVIII tendem a perder tanto a sua centralidade, quando a sua exclusividade. No âmbito de uma economia transnacionalizada, as relações entre os problemas internacionais e os problemas internos de cada país vão sendo progressivamente invertidas, de tal forma que os primeiros já não são mais apenas parte dos segundos; pelo contrário, os problemas internacionais não só passam a estar acima dos problemas nacionais, como também a condicioná-los.
Com tais fatos, as intervenções regulatórias, os mecanismos de controle e direção sócio-econômicos e as concepções de “segurança nacional” que instrumentalizaram as estratégias de planejamento entre o pós-guerra e os anos 70 perdem vigor e efetividade. Como, nesse contexto, a decisão de participar ou não do fenômeno da economia globalizada muitas vezes acaba ficando fora do alcance dos legisladores e dos formuladores da política econômica nacional, por mais estranho ou paradoxal que isso possa parecer, que papel, por exemplo, pode ser exercido por uma Constituição-dirigente[1]?
O autor ressalta ainda que com a transnacionalização dos mercados e subseqüente “desterritorialização” da produção, fenômenos que serão examinados no capítulo 2, a própria idéia de Constituição vem gradativamente deixando de ser um princípio absoluto, passível de ser visto e reconhecido como “norma fundamental” e centro emanador do ordenamento jurídico (devido a um tendência de um crescente esvaziamento da forma normativa dos textos constitucionais perante os novos esquemas regulatórios e as novas formas organizacionais e institucionais supranacionais). Uma das hipóteses possíveis é sua conversão num documento meramente simbólico, como uma espécie de “magna carta de identidade nacional”.
Para o autor, na medida em que a interpenetração das estruturas empresariais, a interconexão dos sistemas financeiros e a formação dos grande blocos comerciais regionais se convertem em efetivos centros de poder, o sistema político deixa de ser o locus natural de organização da sociedade por ela própria. Em vez de uma ordem soberanamente produzida, o que se passa a ter é uma ordem crescentemente recebida dos agentes econômicos.
O autor frisa que esta nova ordem tende a transcender os limites e controles impostos pelo Estado, a substituir a política pelo mercado como instância máxima de regulação social, a adotar as regras flexíveis da lex mercatoria no lugar das normas de direito positivo, a condicionar cada vez mais o princípio do pacta sunt servanda à cláusula rebus sic stantibus, a trocar a adjudicação pela mediação e pela arbitragem na resolução dos conflitos e a pôr em xeque a distinção clássica entre o público e o privado.
Neste sentido, o autor informa que segundo a imprensa especializada na área econômica, a resolução de mais de 80% dos conflitos mercantis internacionais já estaria sendo feita por mediação e arbitragem privadas, sobretudo no âmbito da Europa Ocidental e América do Norte.
Diante deste quadro atual do sistema capitalista global as estruturas administrativas, políticas e jurídicas do Estado-nação não desaparecem. No entanto vêem relativizados alguns dos instrumentos básicos que caracterizaram sua ação nas últimas décadas, como a “gestão normalizadora” dos mercados; a intervenção nas negociações entre o capital e o trabalho para mantê-los dentro dos limites como níveis de crescimento de pleno emprego; a produção direta de insumos e a prestação direta e serviços por meio de empresas públicas; o estabelecimento de barreiras legais à entrada e saída de capitais e produtos; a imposição de restrições ao regime de propriedade privada, condicionando-a ao cumprimento de sua “função social”; e por fim, a utilização de política tributária com vistas à indução do comportamento e decisões dos agentes econômicos, ao financiamento dos programas sociais e à distribuição de renda.