A Súmula Vinculante (SV) é um instrumento criado pela Emenda Constitucional n.º 45/2004 que adicionou o art. 103A[1] à Constituição Federal (CF/88). Este recurso permite que o “[...] sistema jurídico utilize a capacidade do sistema político de impor decisões coletivamente [...]" (LUHMANN, 1994, p. 21). O Supremo Tribunal Federal (STF), ao vincular uma súmula, cria, na prática, um dispositivo com força comparável à lei.
O STF se utiliza de tais instrumentos, em tese, para preencher as lacunas do ordenamento jurídico, como no caso da ausência de regulamentação do uso de algemas. Vale ressaltar que o Poder Executivo deveria ter feito essa regulação, conforme o art. 199[2] da Lei de Execuções Penais (n.º 7.210/84).
Após um período de 24 anos sem edição de decreto federal, o STF, motivado principalmente por dois pedidos de Habeas Corpus (HC 89.4291 e 91.9529), toma para si a responsabilidade e publica, no dia 13 de agosto de 2008 a SV n.º 11. Este instituto circunscreve o uso de algemas a casos de resistência, de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros.
Objetivando evitar constrangimento físico e moral do preso, só é lícito o uso de algemas justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
A SV n.º 11 pacificou o entendimento sobre o tema e a legislação correlata, como o inciso III, art. 1º, da CF/88[3] que diz respeito à dignidade da pessoa humana. Também há os arts. 284[4] e 292[5] do Código de Processo Penal (CPP/41) que tratam do uso da força necessária ao se realizar o ato de prisão.
Além disso, o STF confirmou o entendimento citado pelo Procurador Geral da República da ocasião, Antônio Barros, durante os debates de concepção da SV n.º 11, sobre a edição do §3º, art. 474[6], CPP/41, que proíbe o uso de algemas no acusado durante a sua permanência no plenário do Júri, salvo se absolutamente necessário.
De início, imaginava-se que o Judiciário deu mais um passo largo para combater a cultura, não só brasileira[7], do Estado Policialesco. “Onde a polícia chega atirando, mídia chega filmando" (BUCCI, 2000). Todavia, ao analisar o contexto político policial de elaboração da SV n.º 11, percebe-se que não foi apenas a nobre intenção de preservar a integridade e a dignidade do cidadão brasileiro preso[8], o único motor dessa SV.
É preciso contextualizar, porque uma “[...] decisão judicial é uma interseção de forças sociais. Atrás da decisão há forças sociais que atuam para direcioná-la [...]” (COHEN, 1962, p. 118-119).
A Polícia Federal em 2003 fez 18 operações, já naquele ano de 2008 foram 216[9]. Um crescimento de 1.100%. Durante essas ações vários membros da elite política e econômica do país foram expostos algemados à toda imprensa nacional. Como Celso Pitta, ex-prefeito de SP e Daniel Dantas, banqueiro[10]. Isso insuflou no cenário jurídico uma discussão entorno da pirotécnica que está por trás de expor o acusado algemado.
Porque, segundo o jurista Ary Oswaldo Mattos Filho, ao expor um acusado algemado em público, o Estado joga-lhe a imagem na lama de forma irremediável[11]. E este raciocínio está imbricado ao argumento utilizado pelo Min. Gilmar Mendes, que em seu voto no HC 91.9529, afirmou que a exposição do acusado viola a ideia de presunção de inocência.
Embaraçoso é saber que apenas quando são os apaniguados da República, essa arbitrariedade cotidiana adquire importância para o STF. O ex-senador Pedro Taques disse: “O STF criou a SV n.º 11, porque o MPF e a Polícia Federal (PF) estão saindo da senzala e entrando na casa grande”[12]. Dentre essas saídas, destacam-se as operações Dominó (2006) e Satiagraha (2008).
A Operação Dominó[13] foi deflagrada para desarticular uma quadrilha presente nos três poderes de RO. Entre as autoridades presas estava, Edilson Silva, na época, conselheiro do TCE-RO que, ao ser transportado para o DF, foi algemado e exposto como um troféu da PF. Isto motivou o ingresso, no STF, do pedido de Habeas Corpus n.º 89.4291, relatado pela Min. Cármen Lúcia.
Esse pleito foi analisado pela 1ª Turma do STF, que deferiu em favor de preservar a imagem do paciente, hoje presidente do TCE-RO[14]. Com esse julgamento a discussão sobre a banalização do uso das algemas foi alçado ao topo pelo STF.
Um mês antes da aprovação da SV n.º 11, a PF executou mandados de prisão contra Daniel Dantas, Celso Pitta e Naji Nahas, investigados por típicos crimes de colarinho branco, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e sonegação fiscal. Daniel Dantas e Celso Pitta também estamparam as capas dos jornais com seus rostos e algemas[15].
Já no dia 07/08/2008 estava na pauta do pleno do STF o HC n.º 91.9529, em favor do pedreiro Antônio Silva, que permaneceu algemado durante sessão de julgamento do Tribunal do Júri, sem que existisse a devida justificação pela presidente do Tribunal, a juíza Gláis Peluso. A corte decidiu que o paciente fosse submetido a um novo julgamento. Em seu voto o Min. Cesar Peluso disse que o ato de usar as algemas de forma arbitrária pode configurar até “crime de tortura”.
Já o Min. Rel. Marco Aurélio citou: “quando Presidente da Corte, ao ver descer de um avião, algemado, um ex-governador e ex-senador da República. E a minha expressão foi de carioca: isso é uma presepada”[16]. Os longos votos da discussão desse HC somada com a reiterada prática de prender membros da fina flor brasileira e expô-los algemados, frutificaram e resultaram na SV n.º 11, também conhecida como “Súmula Cacciola Dantas”[17], que torna excepcional o uso de algemas. Súmula essa que a PF e demais agentes vão cumprir rindo ou chorando, segundo o Min. Gilmar Mendes, apreciador de um holofote[18].
Ante os fatos, resta evidente que a SV n.º 11, em que pese o resguardo da dignidade da pessoa humana, representa o acesso de uma elite a um mecanismo jurídico para benefício próprio enquanto aqueles que estão em outra esfera social enfrentam severas dificuldades para usufruir daquilo que é seu direito e não um favor (O’DONNELL, 1998).
NOTAS
[1] Art. 103-A O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. CF/88.
[2] Art. 199 O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal. Lei n. o 7.210/84.
[3] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III a dignidade da pessoa humana. CF/88.
[4] Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso. CPP/41.
[5] Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas. CPP/41.
[6] Art. 474 § 3 o Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes. CPP/41.
[7] O Perp Walk é uma prática da Polícia de New York (Estados Unidos da América) em expor intencionalmente o preso algemado para os veículos de comunicação.
[8] Art. 5º [...] XLIX é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. CF/88.
[9] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E CIDADANIA. [Departamento de Polícia Federal]. Brasília. Estatísticas de Operações . Disponível em:<http://www.pf.gov.br/imprensa/estatistica/operacoes> Acesso em: 13 set. 2016.
[10] FERREIRA, Danilo. Por que a Polícia Federal algema “para frente”? 10 ago 2011. Disponível em: <http://abordagempolicial.com/2011/08/porqueapoliciafederalalgemaparafrente/> Acesso em: 13 set. 2016
[11] MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. Entrevista : Ary Oswaldo Mattos Filho. Via O Estado de São Paulo, 7 ago 2008. Entrevista concedida a Guilherme Scarance. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2008ago07/vara_abuso_autoridade_ajudaria_resolver_problemas_pf> Acesso em: 13 set. 2016.
[12] TVTAQUES. Plenário: Para sen. Pedro Taques, PDT/MT, "a súmula vinculante das algemas é inconstitucional". YouTube, 15 ago 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NY9Z5jxms3U> Acesso em: 13 set. 2016.
[13] ALEX, Alan. Operação Dominó completa 10 anos; Saiba detalhes ação que abalou Rondônia. Via Painel Político. Porto Velho, Política, 5 ago 2016. Disponível em: <http://www.nahoraonline.com/operacaodominocompleta10anossaibadetalhesacaoqueabalourondonia/> Acesso em: 13 set. 2016.
[14] TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE RONDÔNIA. Composição Atual: Conselheiros Disponível em: <http://www.tce.ro.gov.br/index.php/composicaoatual/> Acesso em: 13 set. 2016
[15] BANDEIRA, Regina. PF abusou de algemas em Operação Satiagraha, diz ministro do STF. Brasília, Brasil, 7 ago 2008. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/pfabusoudealgemasemoperacaosatiagrahadizministrodostf/n1237693006826.html> Acesso em: 13 set. 2016.
[16] FOLHA ONLINE. Jader chega algemado à sede da PF em TO, onde ficará preso. Folha de São Paulo, São Paulo: 16 fev 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u29253.shtml> Acesso em: 13 set. 2016.
[17] MACEDO, Fausto. Juízes se rebelam contra Súmula CacciolaDantas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 16 ago 2008. Nacional, p. A16.
[18] DIÁRIO DO NORDESTE. Mendes: “Importante é que cumpram as decisões do STF”. Fortaleza, Política, 20 ago 2008. Disponível em: <http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/politica/online/mendesimportanteequecumpramasdecisoesdostf1.937197> Acesso em: 13 set. 2016.
REFERÊNCIAS
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