1. Distinguishing: A Técnica De Confronto/Interpretação Do Precedente
Os precedentes vinculantes para serem aplicados necessitam inicialmente de prévia análise comparativa, a qual possui como fito aferir se há diálogo entre os elementos objetivos da demanda com demandas anteriores. O correndo diálogo, iniciará uma nova fase que é a análise do caso concreto e a ratio decidendi precedentista, ocorrendo distinção essa comparação, recebe o nome de distinguishing que, segundo Cruz e Tucci, é o método de confronto “pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma”, esta técnica propicia a “distinção entre normas jurídicas e a norma de decisão".
Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira compreendem que o distinguishing detém duas acepções, sendo estas, o distinção-método e o distinção-resultado[1]. Sendo o primeiro, o método comparativo utilizado entre o caso concreto e o paradigma e o segundo, seriam exatamente o resultado desta contraposição inicial, nos casos em que houver entre o paradigma e o caso concreto diferenças.
Neste diapasão, podemos aduzir que a distinção consiste precipuamente em um processo hermenêutico particular do magistrado não isento de fundamentação, o qual pauta-se na minunciosa analise entre as circunstâncias fáticas e a ratio decidendi do caso paradimático e as circunstâncias fáticas e a ratio decidendi dos casos julgados em momento precedente – paradigmas. Nas situações em que a decisão do magistrado encontra-se vinculada ao precedente, sendo a razão de decidir extraída do caso paradigma se adequada ao caso em julgamento, o magistrado deverá aplicá-la ao caso presente, ressalvada, obviamente, nos casos em que a técnica de superação do precedente for suscitada e devidamente aplicada.
A técnica do distinghishing ao revelar a inadequação da aplicação da ratio decidendi do precedente ao caso em julgamento, em virtude da diversidade fática entre os mesmos, poderá o magistrado chegar a conclusão a inaplicabilidade do precedente ou aplicá-lo restritivamente. Cumpre salientar que não há o que falar de aplicação só precedente sem prévia análise comparativa entre as razões de decidir do caso concreto e do precedente firmado.
Nos casos em que houver incompatibilidade entre os fundamentos de fato e de direito, deixando a perceber peculiaridades que os tornam em relação aos precedentes, fica facultado ao magistrado ampliar a aplicação à hipótese sub judicea conferindo mesma solução que fora dada aos casos anteriores, por lhe entender aplicável. Nessa hipótese, estaremos diante do ampliative distinghishing.
A aplicação da técnica de confronto, interpretação e aplicação de precedente judicial faz-se presente no nosso ordenamento jurídico antes mesmo do advento do novo CPC o que preconiza uma prévia inclinação a corrente precedentista antes mesmo da sua legitimação por força de lei. Trazemos como exemplos de aplicação da distinguishing o julgamento da Reclamação Constitucional n° 1.132-1/RS, datada de 2003.
O novo diploma processual foi muito enfático quanto ao distinguish, tanto que esta técnica requer uma fundamentação coerente, caso contrário estaremos diante de uma sentença imotivada o que violaria o artigo 93, IX da Consituição Federal.
Art. 489. São elementos essenciais da sentença: […] § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: […] VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (grifamos)
A motivação judicial não se aplica a mera citação de artigos de lei, a conceitos vagos, a súmulas ou a ementas de julgamento, mas sim, devem conter os elementos fáticos e jurídicos fundamentados em que o magistrado apoiou a decisão. Isso porque, conforme preceitua LOURENÇO (2014, p.3)
[…] a fundamentação será a fundamentação será a norma geral, um modelo de conduta para a sociedade, principalmente para os indivíduos que nunca participaram daquele processo, e para os demais órgãos do Judiciário, haja vista ser legitimadora da conduta presente (LOURENÇO, 2014, p.3)
Desta feita, o precedente arguido pela(s) parte(s) deverá ser enfrentado pelo magistrado, posto que aquele ao ser levantado vincula a apreciação do juiz, o julgador deverá fazer o distinguishing do caso que lhe é submetido, buscando, assim, a individualização do direito, não podendo, destarte, ignorar o precedente suscitado, posto que seria considerado omissão, tornando a decisão passível de embargos de declaração, o artigo 1.022, parágrafo único, I e II do CPC. Parte essencial da sentença, o precedente agora integra substancialmente a decisão, sendo assim, a sua omissão causa de nulidade.
Ademais, é válido ressaltar que a vinculação entre a analise substancial feita pelo magistrado e o precedente para ocorrer depende que este seja suscitado pela (s) parte(s), não sendo possível o uso dos precedentes nos casos em que a lei for omissa ou obscura deverá recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito[2].
2. DA SUPERAÇÃO DO PRECEDENTE: OVERRULING E OVERRINDING
Nos casos em que constatada a imposibilidade da aplicação do precedente, o magistrado utilizar-se-á de uma das técnicas de superação, as quais podem ser total ou parcial, sendo estas, respectivamente, o overruling e o overrinding.
Celso de Albuquerque Silva faz uma importante observação sobre o tema
Modernamente, a modificação da doutrina vinculante é vista como um aprimoramento do pensamento jurídico passado para adequá-lo ao desenvolvimento social. Dentro dessa ótica, a invalidação parcial ou total de uma doutrina vinculante é considerada como um instrumental intrasistêmico para assegurar a necessária flexibilidade ao ordenamento jurídico. Overruling e overriding entendidos como soluções sistêmicas para evitar a petrificação do direito, fazem parte e complementam a idéia de uma doutrina vinculante
Sob esta ótica, podemos conferir a estas técnicas o importante papel de acompanhar a evolução jurídica ao passo da evolução social, evitando, destarte, um sistema engessado fincado em amarras estruturais.
As técnicas da superação trazidas para discussão possuem aplicabilidade em nosso ordenamento jurídico. Isto observamos de acordo com a previsão do procedimento de revisão ou cancelamento de súmula vinculante na Lei n° 11.417/2006 e do regimento interno do Supremo Tribunal Federal que em seu artigo 103 prevê expressamente que “qualquer dos Ministros pode propor a revisão da jurisprudência assentada em matéria constitucional e da compendiada na Súmula, procedendo-se ao sobrestamento do feito, se necessário”.
No mesmo sentido temos o artigo 125 do regimento interno do Superior Tribunal de Justiça também prevê hipótese de overruling. A aplicação desta técnica também faz-se presente em algumas decisões de tribunais, s título exemplificativo temos o julgamento do Recurso Extraordinário n° 46634382[3].
No que tange ao overriding, em nosso ordenamento, podemos utilizar como exemplo a interpretação que o Supremo Tribunal Federal concedeu ao enunciado 343 de sua súmula que estabelece que “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
Após a edição de tal enunciado, o STF interpretou-o de modo a restringir seu alcance, por entender que não seria aplicável quando a alegada violação fosse a dispositivo da Constituição. De forma a melhor compreender tais mecanismos intrínsecos a dinâmica precedentista, analisaremos, isoladamente, estas duas formas de superação do precedente.
3. Da Total Superação Do Precedente
Conforme leciona Fredie Didier Jr., entende-se por overruling como sendo a técnica através da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído por outro precedente[4]. Por um viés mais substancial, podemos aduzir que esta técnica tem por objetivo reconhecer a existência de um novo fundamento/tese jurídico capaz de reformular a tese jurídica anteriormente defendida e formadora do precedente. Desta feita, poderíamos dizer que este instituto assemelha-se a revogação total por lei nova.
Destarte, observamos que não há uma incompatibilidade paradigmática como ocorre no distinghishing, mas sim o surgimento de uma nova tese de argumentação jurídica a ser aplicada no caso. É o afastamento de um precedente judicial, quando o tribunal adota nova norma que decide um caso compreendido no âmbito de incidência de norma anterior de origem jurisprudencial.
A revogação do precedente poderá ocorrer tanto no plano horizontal, quando o órgão revoga seu próprio precedente, como também no plano vertical nos casos em que o um tribunal hierarquicamente superior o revoga. Contudo, para que ocorra a revogação é necessário que ocorra a observância de dois requisitos básicos que são a perda da congruência social e o surgimento de inconsistência sistêmica. Tal característica “significa que, ocorrendo mudança na valoração das circunstâncias relevantes de casos similares, o julgador está autorizado a adotar entendimento diverso, desde que assumida a devida carga de fundamentação[5]”
Contudo, conforme aduz o artigo 927, § 4º, para que ocorra a modificação de entendimento a seguido é imprescindível que haja a fundamentação e que sejam resguardados os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e isonomia. Neste sentido, para que ocorra a superação do precedente é necessária uma maior fundamentação, elencando teses ainda não sustentadas.
A necessidade aqui gerada acerca da sustentação de uma nova tese requererá maior habilidade argumentativa, jurídica e lógica dos patronos como também dos órgãos julgadores, aqueles no que condiz a formulação de novas teses e defesa de tese até então utilizada e esses no que concerne a aplicação racional do seu posicionamento, sendo necessário assentá-lo em consonância com a racionalidade, os direitos postos na querela além da observância dos princípios e as garantias processuais e constitucionais em circundam o caso concreto.
A argumentação jurídica, neste caso, encenará como ônus processual àqueles envolvidos, estando estes obrigados a fundamentar juridicamente os porquês levantados – contra e a favor – podendo culminar na inércia argumentativa, sendo, desta forma, a tese sustentada e não argumentada desprovida de repercussão processual, sendo esta um mecanismo de estabilidade do precedente. Nas palavras do doutrinador Ravi Peixoto, temos:
o princípio da inércia argumentativa, relacionado com a própria manutenção do precedente estabelecido anteriormente, também atua na diminuição do ônus argumentativa (sic) de quem atua com base no entendimento atual e mitiga a necessidade de motivação do magistrado, a quem se requer basicamente a demonstração de aplicação[6] (PEIXOTO, p.201,2015)
Ademais, a superação do precedente poderá dar-se de maneira tácita – implied rulling - ou expressa – express rulling - a depender do órgão julgador. No que condiz aos efeitos, nas situações em que o precedente for consolidado não há o que se falar em efeitos retroativos do precedente, posto que sobre este enunciado reside a proteção da confiança. Neste sentido, os efeitos prospectivos – ex nunc – dar-se-á apenas nos casos de precedentes consolidados.
Noutro lado, os efeitos retrospectivos, dar-se-ão nos enunciados recentes e não consolidados. Os efeitos serão retrospectivos quando o precedente substituído não puder mais ser utilizado em outros casos, nem mesmo aos que ainda estão sob judice. O overrruling subdivide-se em duas possibilidades, sendo estas o overruling puro e o overruling clássico, a diferença entre essas duas modalidades consiste no alcance dos efeitos.
No overruling ex tunc puro o novo precedente será aplicado aos fatos ocorridos antes e depois de sua publicação, repercutindo até mesmo sobre aqueles que já foram objeto de sentença transitada em julgado e também aos fatos do caso que o gerou. Por outro lado, no overruling clássico, o novo precedente se aplica aos fatos ocorridos antes e depois de sua publicação, contudo seus reflexos não abrangem aqueles que já foram objeto de sentença transitada em julgado e também aos fatos do caso que o gerou.
4. DA SUPERAÇÃO PARCIAL DO PRECEDENTE
Nos casos de superação parcial do precedente, ocorre analogamente, como se fosse uma revogação parcial. A corte limita a aplicação do precedente parcialmente e não o afasta em sua totalidade. Contudo apesar do resultado do caso em julgamento ser incompatível com a totalidade do precedente, a restrição se dá com fulcro em situação relevante que não estava envolvida no precedente, sendo assim, o overriding mais próximo ao destinguishing do que a revogação[7].
Em uma aplicação prática em nosso ordenamento, trazemos para atítulo exemplificativo a interpretação que o Supremo Tribunal Federal (STF) deu ao enunciado 343[8], o STF interpretou-o de modo a restringir seu alcance, por entender que não seria aplicável quando a alegada violação fosse a dispositivo da Constituição[9].
[1] Idem. p.409
[2] LOURENÇO, Haroldo. Precedente Judicial como fonte do Direito: algumas considerações sob a ótica do novo CPC. Disponível em: http://www.temasatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/53-v1n6-dezembro-de-2011-/166-preced.... Acesso em 20/09/2016.
[3] Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7168938. Acessado dia 27/09/2016
[4] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2013, v.2, p.456
[5] ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: Racionalidade da tutela jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2012, p.281
[6] PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: JusPODIVM, 2015. p. 201.
[7] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
[8] Súmula 343 do STF: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
[9] ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Precedentes vinculantes e irretroatividade do direito no sistema processual brasileiro: os precedentes dos tribunais superiores e sua eficácia temporal. Curitiba: Juruá, 2012.