RESUMO: O presente artigo[1] trata do fenômeno denominado Infanticídio Social, que é a ocorrência da morte da cidadania por meio do abandono sofrido pelos cidadãos pelo Estado que deveria prestar-lhes assistência, dando-lhes proteção e cuidados básicos como a educação, saúde e segurança. Após as respectivas fundamentações filosóficas e sociológicas, o artigo traz alguns números que comprovam as argumentações anotadas.
Palavras Chaves: Sociologia, Filosofia, Infanticídio, Direito, Penal.
ABSTRACT:This article discusses the phenomenon known as Social Infanticide is the occurrence of the death of citizenship through the neglect suffered by the citizens by the state should assist them by giving them protection and basic care such as education, health and safety. After their philosophical and sociological foundations, the article provides some numbers that prove the arguments noted.
Keywords: Sociology, Philosophy, Infanticide, Law, Criminal.
1. INTRODUÇÃO
O presente ensaio tem por objetivo trazer à baila o fenômeno do infanticídio social, que é um mal que assola o cidadão desde suas origens como membros de um estado que, em tese, deveria ser provedor de garantias que lhe proporcionassem uma vida digna, sem ausência, por exemplo, de assistência à saúde, à educação e à segurança.
Iniciamos o presente trabalho abordando alguns aspectos acerca de como nasce o infanticídio social, mencionando o que acreditamos ser sua origem e seu conceito. Antes, dedicamos algumas linhas para explicar o conceito e a origem do infanticídio propriamente dito, enquanto tipo presente no diversos codexes penais.
Num segundo momento, abordamos algumas idéias acerca dos fundamentos filosóficos e sociológicos do fenômeno em tela e para finalizar, traremos à luz alguns números que fundamentam a existência do infanticídio social como um mal presente em todo o mundo fruto do avanço social e tecnológico dos povos.
Seria muita pretensão considerar que o tema seja esgotado aqui, ao contrário, desejamos que este trabalho sirva de reflexão e ponto de partida para outras pesquisas acerca do fenômeno do infanticídio social, pelo fato de tratar-se de um “monstro” destruidor de cidadania.
2. DE COMO NASCE O INFANTICÍDIO SOCIAL
Da Origem e conceito de Infanticídio
O infanticídio tem suas origens em remotos tempos, tendo estado presente no cotidiano dos mais importantes povos da história humana, como os espartanos que cultivavam a prática do infanticídio como meio de seleção do homem grego modelo e capaz de ser submetido a esforços sobre-humanos, com rígido controle alimentar, e diversos tipos de maus tratos, como os intensos treinamentos para a guerra, o que leva muitos à morte, por não tolerarem o ritmo.
Não só Esparta praticava essa forma de infanticídio. Também pode se verificar que quase todos os grandes povos da antiguidade utilizavam-se de algum meio para eliminar aqueles que não serviam para o Estado e em quem não valia à pena investir. No Império Romano, por exemplo, temos a prática do infanticídio como meio de regular a oferta de alimentos à população, pois acreditava-se que matando algumas crianças, diminuiria a escassez de comida, pois sobraria mais para a população adulta.
Por mais estranho que possa parecer, a prática do infanticídio ainda é comum nos dias de hoje em alguns países como a China, por exemplo. Nesse país a prática do aborto é incentivada como meio de controle populacional, principalmente quando se trata de gravidez onde o feto é do sexo feminino. A conseqüência prática de tal medida é um desequilíbrio entre os sexos, o que não deixa de ser também um problema para o Estado.
Antes de conceituarmos o termo infanticídio social, devemos nos ater e conceituar antes a primeira palavra que o compõe: infanticídio. Etimologicamente a palavra infanticídio se originou do latim infanticidium, que significa matança de criança, ou simplesmente, matar uma criança. A formação latina se originou dos radicais, igualmente latinos, infans que significa criança e, caedere que significa matar. Aplicando ao Direito Penal, no entanto, o termo infanticídio obtém roupagem significativa, diferente daquela que realmente significa etimologicamente.
Assim, ao invés de definir infanticídio como sendo o fato de matar-se uma criança, não importando ser a autoria de algum parente ou afim, o Codex penal preconiza que somente a mãe, ressalvadas as hipóteses de concurso, e em determinadas circunstâncias, pode ser autora de infanticídio. Logo, além da vítima ter que ser filho ou filha da autora, a lei exige que o crime tenha sido perpetrado sob determinadas condições, como por exemplo, estar a mãe sob o efeito ou influencia do puerpério, fenômeno que ocorre durante o estado puerperal, e isto, logo após ou durante o parto.
O estado puerperal é o período compreendido entre o descolamento ou desprendimento da placenta até a involução total do organismo da mãe às condições anteriores ao processo de gestação. Já o puerpério é o estado de perturbação psíquica que ocorre durante o estado puerperal, daí sua denominação. Etimologicamente, puerpério tem origem no latim puer, que significa criança e de parere, que significa parir. Portanto, tem-se que do ponto de vista tipológico, infanticídio significa a morte do recém-nascido, pela mãe, durante ou logo após o parto, estando a autora sob os efeitos do estado puerperal.
Da Origem e conceito de Infanticídio Social
Entendemos que o infanticídio social tem sua origem associada à organização do homem sob à administração do Estado. À medida que o homem abriu mão de parte de sua liberdade, cedendo-a a um representante ou a vários representantes, colocou-se à mercê de proteção e cuidados por parte do Estado. Não obstante à obrigação estatal, é cediço que em quase todos os grandes Estados, ao longo da história e na atualidade, parte dos cidadãos têm sido deixados à margem de direitos e garantias básicas, que lhes são suprimidos, numa espécie de segregação social. Essa supressão de direitos per si constitui ofensa à liberdade individual e coletiva.
Não obstante, quase todas as constituições do mundo moderno preconizarem direitos e garantias, como direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, a maioria dos cidadãos sobrevivem sem ter a segurança desses direitos. Os direitos e garantias individuais e coletivos em qualquer Estado instituidor servem para assegurar que o cidadão tenha a contrapartida estatal, por ter cedido, como dissemos, parte de sua liberdade, quando aceitou ser governado por ele. Entendemos que a supressão de direitos leva à segregação social e esta, aniquila a possibilidade de o cidadão mais humilde se inserir na sociedade como é de seu direito.
A segregação social consome a esperança do cidadão e o coloca num mundo sem expectativas, a exemplo de uma sociedade feudal, que teve como principal característica a estamentalidade. Num ritual lento e selvagemente doloroso, a segregação social não permite que o cidadão realize seus sonhos, quiçá lhe permite sonhar, daí, tem-se uma espécie de aniquilamento da própria sociedade dos mais necessitados provocado pela ausência do Estado, que por ser o administrador das liberdades concedidas pelo cidadão, tem o papel de provedor e mantenedor das garantias constitucionais individuais e coletivas. Nesse diapasão, o Estado, enquanto pátria mãe, ou enquanto provedor das garantias mencionadas, ao promover a segregação social, promove também a morte da cidadania de seus representados. Destarte, o infanticídio social é a morte da cidadania do homem pelo Estado.
Resumo
O que é o infanticídio social senão o caos formado pela ausência estatal? O cidadão, como filho da pátria e não da “puta”, carece de cuidados e proteção estatal. Diante do estado-pátria, os cidadãos são como filhos e, portanto, ao serem segregados socialmente e sofrerem em conseqüência, a morte de sua cidadania, tornam-se vítimas de Infanticídio Social. Assim, temos que:
- O infanticídio, do ponto de vista histórico-social, significa a matança de crianças;
- O infanticídio, do ponto de vista penal, é a morte do recém-nascido, pela mãe, sob o efeito do estado puerperal, durante ou logo após o parto;
- O infanticídio social é a matança da cidadania do homem pelo Estado.
3. DOS FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS E SOCIOLÓGICOS
Os fundamentos filosóficos
A primeira fundamentação que encontramos - e, vale ressaltar, poderíamos colacionar centenas, quiçá, milhares - advém das lições de Aristóteles. Segundo ele, o Estado é uma comunidade de algum tipo e toda comunidade é estabelecida com alguma boa finalidade, pois a humanidade sempre age a fim de obter aquilo que pensa ser bom. Acreditamos, assim, que um dos fins que justificam a criação do Estado é atender as necessidades dos homens. Nesse sentido, assim como o Estado, a família é a associação estabelecida por natureza para suprir as necessidades cotidianas dos homens.
Logo, o Estado, é o mesmo que qualquer outra comunidade e existe para o fim de servir. No caso do Estado, este fim é o bem supremo dos homens, sua vida moral e intelectual que advém da família. Isso ocorre porque a família é a comunidade primitiva que existe para tornar possível a vida, para suprir as necessidades cotidianas dos homens, e quando várias famílias se unem e procuram algo mais que a satisfação das necessidades diárias, origina-se a aldeia. Em seguida forma-se o Estado. Ao pregarmos a idéia de um Estado protetor, estamos, em verdade, cobrando o cumprimento de obrigações básicas, cobrando que o Estado exerça suas funções de suprir, ceder e abastecer. Assim, quando exerce a função de servir o homem e seus interesses, o Estado está exercendo sua função positiva.
Compulsando-se sobre a história da humanidade podemos verificar que em menor ou maior escala o homem, per si, e mais tarde na figura do Estado, sempre levou a cabo, voluntária ou involuntariamente, projetos diversos de aniquilação em massa da população excedente. Não à toa que Thomas Hobbes pregou, em leviatã, que o homem é o lobo do homem, “homo homini lupus" num ambiente em que se trata de uma guerra de todos contra todos, ou seja, "bellum omnium contra omnes" e que seria assim no estado de natureza. Nesse sentido, o infanticídio social é promovido pelo Estado enquanto pátria, contra seus filhos enquanto cidadãos que vivem à margem da proteção estatal.
Sob a necessidade de proteção, segundo Hobbes, o homem saiu do estado de natureza e passou ao estado das leis e, para tanto, cedeu parte de seus direitos aduzindo, entre outras coisas, que: autorizo e cedo meu direito de governar-se a este homem (O Estado), ou a esta assembléia de homens, com a condição de cederes teu direito a ele, autorizando todas as suas ações da mesma maneira.
Ora, se assim entendermos, o Estado assumiu, enquanto pátria dos cidadãos que entabularam tal acordo, o dever legal de proteção e cuidado, e tornando-se filhos daquele Estado o infanticídio social é vislumbrado quando se constata que o Estado não cumpre seu papel de mãe no tocante às atribuições de proteção e cuidados conforme se infere do “contrato”.
Ademais, Rousseau, no seu contrato social, defende que suas cláusulas, embora nunca enunciadas, são reconhecidamente iguais em todos os lugares. Tais cláusulas são determinadas pela natureza do ato, tanto que qualquer alteração o anula, como a que mencionamos acima, pois o infanticídio social infringe letalmente o pacto social e, com isso, os indivíduos voltam à liberdade natural e perdem a liberdade contratada.
Entendemos que o homem, na sua formação, saindo do estado de natureza e cedendo parte de sua liberdade e com isso, celebrando o pacto social, não se livra por completo do seu estado natural, uma vez que, dentro do novo contexto social e, dentro de uma concepção de cidadania, é uma criança em formação. Logo, enquanto não atinge um certo grau de amadurecimento intelectual que o possibilite lutar por direitos, continua a ser uma criança. O infanticídio social é justamente a morte de tais cidadanias em formação à medida que seus atores são renegados à pobreza extrema e, conseqüentemente à segregação social. Os efeitos da morte de sua cidadania são os mais variados possíveis, visto que ficam submetidos aos males da humanidade, como à marginalidade, à desnutrição e, por fim, à morte física.
Assim, consideramos que o pacto social definido anteriormente, carece de complemento, visto que o homem, em plena formação de sua cidadania, não passa de criança e, portanto, incapaz de entender a natureza jurídica da obrigação estatal em relação a si. Tem-se assim um contrato social inválido e que não serve de parâmetro de medição do direito de participação e inclusão social de todos os cidadãos à assistência, proteção e cuidados estatais.
Os fundamentos sociológicos
A morte da cidadania do homem que vive à mercê das garantias constitucionais individuais e coletivas, é uma espécie de aniquilamento de parte da população à moda malthusiana. Malthus[2] pregava que o equilíbrio populacional é mantido pela eliminação dos excedentes populacionais que ocorrem por meio dos obstáculos, podendo ser estes, negativos ou repressivos ou simplesmente, obstáculos malthusianos, a saber: as guerras, as epidemias e a fome generalizada.
Por seu turno, Durkheim[3] defendia a reflexão de uma espécie de “Consciência Coletiva”, pois amparava-se na idéia de que o homem seria apenas um animal selvagem que só se tornou humano porque se tornou sociável, ou seja, foi capaz de aprender hábitos e costumes característicos de seu grupo social para poder conviver no meio deste.
Defendiam, também, que a instituição é um mecanismo de proteção da sociedade, ou seja, é o conjunto de regras e procedimentos padronizados socialmente, reconhecidos, aceitos e sancionados pela sociedade, cuja importância estratégica é manter a organização do grupo e satisfazer as necessidades dos indivíduos que dele participam. As instituições são, portanto, conservadoras por excelência, quer seja família, escola, governo, polícia ou qualquer outra, elas agem fazendo força contra as mudanças, pela manutenção da ordem.
Assim, o infanticídio social é utilizado como instrumento de uma prática que o Estado faz uso para realizar controle populacional, visando livrar-se do excedente, de forma a diminuir sua responsabilidade.
Estelionato Estatal
Temos por estelionato o crime onde alguém obtém para si ou para outrem uma vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. Nesse contexto, analisando as circunstâncias do infanticídio social nos deparamos com um ilícito de estelionato, senão vejamos: O Estado ao receber do cidadão parte de sua liberdade, tornou-se beneficiário dessa concessão e assumiu o compromisso da contrapartida, qual seja fornecer serviços de qualidade mínima necessária em áreas como de saúde, educação e segurança.
No entanto, se o Estado não cumpre sua parte, é cediço que se conclua que se trata de obtenção de vantagem ilícita e em prejuízo dos cidadãos. Trata-se, portanto, de estelionato e, como foi praticado pelo Estado, tem-se a denominação de estelionato estatal, que é a prática do crime de estelionato, cujo objeto é a fé pública, o autor o Estado e a vítima o cidadão que sobrevive à mercê de garantias constitucionais individuais e coletivas.
Legitimação do Infanticídio Social
Conforme abordamos anteriormente, o fenômeno Infanticídio Social se faz presente desde que o homem saiu do estado de natureza e cedeu parte de sua liberdade ao Estado, afim de que este lhe cuidasse, dando-lhe proteção e suprisse-lhe as necessidades básicas, como a implementação de políticas públicas eficazes nas áreas de saúde, educação e segurança. A legitimação do Infanticídio Social ocorre quando há uma aceitação de condições impostas pelo Estado, mesmo que estas não reflitam ou signifiquem a garantia de direitos e garantias individuais. É uma espécie da badalada política romana do pão e circo.
Por esta política, entende-se que o Estado, com o emprego de políticas marcadas pelo assistencialismo, cala a boca do cidadão e, de forma paliativa, resolve-lhe os problemas mais básicos à vida humana, como a alimentação. A política romana do pão e circo, por ter sido muito eficaz, existe até os dias atuais, e apresenta-se de diferentes formas. Exemplo disso são os programas assistenciais, como o “pão e leite e o bolsa-família” e outros similares que nada mais são que espécies de legitimação do Infanticídio Social, por meio da conformação.
Resumo
Ao não cumprir com seu papel de pátria mãe, que lhe cabe junto aos seus filhos-cidadãos, o Estado pratica o infanticídio social;
O infanticídio social é um instrumento utilizado pelo Estado como meio de diminuição de responsabilidade e atribuição;
Ao não cumprir o que foi pactuado e renegar o cidadão ao estado de segregação social, o Estado pratica infanticídio social; e
Ao aceitar pacificamente políticas assistencialistas paliativas, o homem e o Estado ratificam e legitimam o infanticídio social.