Infanticídio social

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07/08/2017 às 17:43
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4. DAS CONSEQÜÊNCIAS DO INFANTICÍDIO SOCIAL

Exclusão Social

Analisando a sociedade atual vislumbramos que os governos de fato governam para poucos quando deveriam governar para todos e que a proteção dada a alguns não é dada em igual medida aos demais. Nesse sentido, analisaremos a situação atual de duas famílias posicionadas de forma antagônicas na sociedade.

A primeira é a família de José, cidadão de quarenta e três anos de idade, analfabeto e catador de lixo. Sua residência é um barraco coberto por plástico preto e pedaços de telhas de amianto quebrados e postos uns sobre os outros de maneira, aparentemente, desordenada. Também sarrafos e pedaços de madeira compõem a estrutura do barraco, construídos nos arredores do Aterro Sanitário da cidade.

José é um homem de compleição marcada pela desnutrição e pele escura mais pelo impacto do sol que propriamente pela sua cor. Sua esposa, a dona Maria, também de 43 anos de idade e igualmente analfabeta, o acompanha há 20 anos e, desde que casaram vivem nos arredores do aterro, tendo mudado apenas de barraco de acordo com a conveniência da situação fática apresentada em cada época.

Do aterro, eles retiram o sustento da família composta por cinco filhos, a saber: José filho, José Raimundo, Maria Francisca, Raimundo José e Francisca Maria, respectivamente com quinze, quatorze, treze, doze e 10 anos de idade. Em que pese a idade escolar, nenhum deles freqüentou a escola e, provavelmente, assim, como seus pais, nunca freqüentarão. A renda per capita da família oscila entre 20 e 30 por cento do salário mínimo local.

No barraco da família, além de outros móveis usados, possui com uma cama de casal, cinco colchões de espuma fina e surrada e um fogão de 4 bocas, todos retirados do lixão ao longo dos anos. A jornada de trabalho é intensa e demasiadamente pesada, principalmente para as crianças mais novas que restam privadas de muitas regalias definidas como básicas para a vida de uma criança. Do aterro sanitário são retirados, além dos recicláveis para a venda e sustento da família, também brinquedos para as crianças e pequenas quantidades de material orgânico que são habilmente “tratadas” por dona Maria para consumo da família. Assim é e tem sido desde que eram ela era criança também, tendo aprendido o ofício com seus pais que também viviam nos arredores do lixão e, igualmente catadores de lixo e analfabetos. Internet? Não! A família do Sr. José não sabe o que venha a ser esta “coisa”.

A segunda família é a do Sr. Hamilton Ramos, cidadão de 43 anos de idade, pós-doutorado em ciências contábeis e detentor de diversos outros cursos e títulos inerentes à mesma área. Casado com a Sra. Fátima França, escritora, doutora em letras e igualmente detentora de diversos diplomas e títulos inerentes à sua área de atuação. Casados há 10 anos, possuem um casal de filhos, Stéfano Alberto e Cíntia França, de oito e seis anos de idade, respectivamente. Moram num bairro luxuoso, dentro de suas possibilidades, num apartamento de quatro quartos de 220 m², e possuem renda per capita de cerca de 40 salários mínimos locais. Os filhos são alunos da melhor escola particular do bairro e freqüentam cursos extras curriculares, como o de inglês, música, teatro e natação. Obviamente os móveis no apartamento são da melhor qualidade possível e de acordo com suas condições financeiras, bem como suas roupas, brinquedos das crianças etc.

No mundo moderno é cada vez maior a discrepância entre a situação econômica de pobres e ricos e, com o advento de fenômenos como a globalização e os recentes avanços tecnológicos em escala mundial, torna cada vez mais patente que o número de famílias no mesmo nível social à do Sr. José é escandalosamente superior à do Sr. Hamilton.

A razão é simples de ser verificada, vislumbrando-se os aspectos sociais e políticos de cada Estado, onde se constata que o mais rico à custa do mais pobre fica cada vez mais rico, enquanto que o pobre, por ausência do Estado fica cada vez mais pobre. Tanto é que, segundo a ONU, em 2004, sob a ótica da maioria dos homens e mulheres, a globalização não atendeu às suas simples aspirações por empregos decentes e um futuro melhor para seus filhos.

Desigualdades segundo a ONU e outros organismos[4]

Os reflexos de tamanha desigualdade podem ser vistos em números que se materializam e manifestam-se a nível global e que estampam o verdadeiro quadro de infanticídio social, conforme passamos a mostrar: Segundo a ONU, a diferença entre países ricos e pobres aumentou desde o começo dos anos 90, com um grupo minoritário de nações não superior a 14% da população mundial dominando metade do comércio mundial.

Na mesma pesquisa da ONU, encontramos ainda as seguintes constatações: No começo dos anos 60, a renda per capita nas nações mais pobres era de US$ 212, enquanto nos países mais ricos era de US$ 11.417; em 2002, essas cifras passaram a US$ 267 (+26%) e US$ 32.339 (+183,3%), respectivamente; Ainda, quatro cidadãos dos EUA – Bill Gates, Paul Allen, Warren Buffett e Larry Ellyson – concentravam em suas mãos, em 2004, uma fortuna equivalente ao Produto Interno Bruto de 42 países pobres, com uma população de 600 milhões de habitantes. Talvez por isso, segundo a mesma pesquisa, 80% da riqueza mundial está nas mãos de 15% dos mais ricos.

Um dos primeiros efeitos dessa desigualdade é que, na década de 90, 21 países retrocederam em seu Índice de Desenvolvimento Humano, contra apenas 4 na década anterior. Nesse mesmo sentido, segundo o Unicef, 6 milhões de crianças (10% do total) estão em condições de “severa degradação das condições humanas básicas, incluindo alimentação, água limpa, condições sanitárias, saúde, habitação, educação e informação”. A pesquisa ainda mostra que 15% das crianças brasileiras vivem sem condições sanitárias básicas. As áreas rurais do Brasil concentram a maioria das crianças carentes, com 27,5% delas vivendo em “absoluta pobreza”.

  Os números, embora sendo de 2005, assombram a sociedade, pois mostram que o bolo das garantias constitucionais fundamentais ainda não foi bem dividido. Prova disso é que cerca de 800 milhões de pessoas, entre elas 150 milhões de crianças, sofrem de desnutrição no planeta. Somente no Brasil, até 2004, 54 milhões de brasileiros viviam abaixo da linha da miséria, ou seja, recebiam menos de meio salário mínimo por mês.

A situação não se mostrava muito distante da global que à época mostrava que 1 em cada 3 habitantes do planeta, ou seja, cerca de 1,8 bilhões, viviam com menos de US$ 2 ao dia. Ademais, segundo estudo realizado pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe e pela Organização Ibero-Americana da Juventude, em 2002 existiriam na América Latina ao redor de 58 milhões de jovens pobres, 7,6 milhões a mais que em 1990. (Adital). A situação chega a ser estarrecedora quando se vislumbra, segundo a CNBB, baseada em documentos de organismos internacionais, como a ONU e a FAO, que a cada sete segundos, morre uma criança de fome no mundo.

Trabalho Infantil[5]

Todos os números ligados às crianças e aos adolescentes assustam e mexem mais com o imaginário humano, daí entendermos ser um dos principais nichos de infanticídio social provocado pela ausência do Estado. Para que se tenha uma idéia, segundo a Organização Mundial do Trabalho (OIT), a cada ano, 1,2 milhões de crianças são vítimas do trabalho infantil, de um negócio que produz 100 milhões de dólares no mundo.

Ainda, segundo a OIT, os dados de trabalhadores domésticos infantis são espantosos, principalmente na América Latina, onde no Peru, por exemplo, cerca de 110 mil exercem atividades que não deveriam. Já no Paraguai, são mais de 40 mil; na Colômbia, 64 mil; na República Dominicana, 170 mil; apenas na Guatemala, 40 mil; no Haiti, 200 mil; e no Brasil, o campeão de trabalho doméstico na América Latina e talvez no mundo, são cerca de 500 mil.

No mesmo relatório se constata que, até 2004, cerca de 5,4 milhões de crianças e jovens trabalhavam no Brasil. Esse número significa que 12,7% da população entre 5 e 17 anos estava, de alguma forma, inserido no mercado informal de trabalho e longe das salas de aula.

Mortalidade Infantil[6]

A mortalidade infantil é a pedra no calcanhar dos governantes, dado ser um fenômeno que atinge o sentimento de solidariedade e de família da sociedade. Os números divulgados a cada ano assustam e dão a noção do rumo tomado pelo Estado, no tocante à ausência de políticas públicas eficazes. Se a taxa de mortalidade infantil é baixa, faz-se a leitura de que o Estado está sendo responsável e que suas políticas públicas apresentam resultados positivos.

No entanto, sendo a taxa alta, mostra que as políticas públicas do Estado não funcionam ou, se funcionam, o fazem de forma capenga, o que propicia a presença do infanticídio social. Para que se tenha uma idéia, a taxa de mortalidade infantil de menores de 5 anos é de 7 por mil nos EUA e de 8 por mil no Canadá, enquanto que no Haiti é de 123, na Bolívia é de 77 e na Guiana é de 72 por mil. A única grande exceção é Cuba, com uma taxa de 9 por mil, típica de países do centro do capitalismo. (Fonte: Adital – 2004).

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A repetência e a evasão escolar[7]

A repetência e a evasão escolar constituem dois exemplos de infanticídio social, pois a educação das crianças é tão fundamental quanto outras necessidades básicas. Parafraseando muitos pensadores, a educação é o alimento da alma e da mente, sem ela, decreta-se a morte intelectual do infante. Segundo documento da ONU de 2004, 2,8 milhões de crianças abandonavam o ensino fundamental e das que concluíam a 4ª série, 52% não sabiam ler nem escrever. No Brasil, os direitos de mais de 23% das crianças e adolescentes, cerca de 14 milhões, estão sendo completamente negados. Segundo consta do mesmo documento da ONU, um milhão de crianças entre 7 e 14 anos estão fora da escola, 1,9 milhão são analfabetas e 2,9 milhões de crianças entre 5 e 14 anos trabalham, a maioria como empregadas domésticas e em lixões.

Outros Reflexos do Infanticídio Social[8]

De acordo com o censo de 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de mortalidade infantil, apesar da queda nos últimos anos, está na média de 29,6 mortes para cada mil crianças nascidas. Entre 1988 e 1990, 4.661 crianças e adolescentes foram mortos, o que significa quatro assassinatos por dia, em sua maioria meninos pobres e negros. Desses, 52% foram assassinados pela polícia ou por seguranças privados e o que é pior, a cada sete segundos, morre uma criança de fome segundo o documento-base da Campanha da Fraternidade de 2005.

Em 2003, segundo o UNICEF, cerca de trinta e cinco em cada mil crianças com idade menor de cinco anos morreram no Brasil. Ademais, ainda segundo o UNICEF, mais de 27 milhões de crianças viviam abaixo da linha da pobreza no Brasil, e faziam parte de famílias que têm renda mensal de até meio salário mínimo. Reflexo disso é que, segundo o UNICEF, aproximadamente 33,5% de brasileiros vivem nessas condições econômicas no país, e destes, 45% são crianças que têm três vezes mais possibilidade de morrer antes dos cinco anos.

Em relação à AIDS, a situação é igualmente dramática e de igual maneira expõe a negra face do infanticídio social. Segundo fontes oriundas de documentos internacionais, principalmente da ONU, UNICEF, OMS, FAO e UNAIDS, o número de pessoas que vivem com o HIV continua crescendo e passou de 35 milhões em 2001 para 38 milhões em 2003. O número de mulheres infectadas tem crescido regularmente, tanto que em 2002, os órgãos já apontavam que metade dos portadores do vírus da Aids eram do sexo feminino.

A África Subsaariana, em 2003, já apontava com 25 milhões de infectados, e na Ásia a epidemia avança com muita rapidez, tanto que mais de um milhão de pessoas contraiu a Aids em 2003. Na América Latina, cerca de 1,6 milhão de pessoas vivem com o HIV e a epidemia tende a se concentrar principalmente entre os grupos de risco, como viciados em drogas e homossexuais. Com mais de três milhões de consumidores de drogas injetáveis, a Rússia segue sendo um dos países mais afetados pela Aids na Europa Oriental e Ásia Central, com mais de 80% dos infectados abaixo dos 30 anos. O uso do preservativo é pouco difundido nesta zona.

O relatório revela que o número de infectados também cresce nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Nos EUA, cerca de 950 mil pessoas vivem com o HIV, com a ocorrência de 50 mil infecções nos últimos três anos, especialmente entre a população afro-americana. Na Europa Ocidental, há cerca de 580 mil portadores do HIV, contra 540 mil em 2001. Segundo a ONU, até 2020 o planeta perderá 68 milhões de habitantes vítimas da AIDS.


5. CONCLUSÃO

Como vimos, os números do infanticídio social são assustadores e frutos do descaso estatal em relação aos direitos e garantias individuais. Nesse sentido, é salutar que as autoridades governamentais se debrucem, cada vez mais, sobre pesquisas e progamas de políticas públicas aptos a minimizar - ou até, quiçá, extinguir - tantos dissabores vividos pelos cidadãos.

Entendemos que a construção da cidadania é lenta e carece de conscientização para o livre acesso a direitos básicos como a educação e a segurança, tanto no tocante à violência, quanto à segurança alimentar. E, nesse sentido, a constatação da existência do Infanticídio Social deve servir apenas como mais um alerta para que a sejam buscadas, em definitivo, soluções para o livre exercício da cidadania.


Notas

[1] Artigo originalmente publicado na Revista Persona, podendo ser consultado no seguinte link: http://www.revistapersona.com.ar/Persona85/85Solon.htm.

[2] Thomas Robert Malthus, economista inglês, nasceu em Rookery, no dia 14 de fevereiro de 1766 e faleceu em Bath, no dia 23 de dezembro de 1834.

[3] Émile Durkheim (Épinal, 15 de abril de 1858 — Paris, 15 de novembro de 1917) é considerado um dos pais da sociologia moderna.

[4] Fonte: http://www.consciencia.net/mundo/desigual.html. (Consulta realizada no dia 06 de janeiro de 2010, às 20:22 horas.

[5] Fonte: http://www.consciencia.net/mundo/desigual.html. (Consulta realizada no dia 06 de janeiro de 2010, às 20:22 horas.

[6] Idem.

[7] Fonte: http://www.consciencia.net/mundo/desigual.html. (Consulta realizada no dia 06 de janeiro de 2010, às 20:22 horas.

[8] Idem.

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Sobre o autor
Antonio Sólon Rudá

Antonio Sólon Rudá é um Jurista brasileiro, especialista em ciências criminais, Ph.D. student (Ciências Criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra); e MSc student (Teoria do Direito pela Fac. de Direito da Universidade de Lisboa); É membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; É membro julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-DF; Autor de artigos e livros jurídicos; É Advogado cível e trabalhista; e Sócio fundador do Escritório Sanches & Sólon Advogados Associados. E-mail: [email protected]. WhatsApp 61 9 9698-3973. Currículo: http://lattes.cnpq.br/7589396799233806. 

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O presente artigo, em sua versão em Português, é oriundo da matéria Sociologia Jurídica do curso de doutorado da Universidade de Buenos Aires, Argentina, no ano de 2010.

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