Análise do dolo no crime de receptação qualificada

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09/08/2017 às 13:50
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Análise crítica do dolo no crime de receptação qualificada, que está expresso no artigo 180, § 1° do Código Penal, mostrando com clareza as divergências existentes na doutrina e jurisprudência.

RESUMO:O presente artigo, a princípio, faz uma breve introdução ao elemento subjetivo “dolo”, expondo três teorias a respeito deste elemento. Em sequência faz uma análise do crime de receptação, que está expresso no artigo 180 do Código Penal, mostrando o objeto material, pressuposto e os elementos do tipo penal. Por fim, se adentra com profundidade ao tema proposto, que faz uma análise crítica do dolo no crime de receptação qualificada, que está expresso no artigo 180, § 1° do Código Penal, mostrando, com clareza, as divergências existentes na doutrina, a discussão a respeito da expressão “deve saber” constante no tipo penal para que seja aplicada a pena cominada.

Palavras-chave: Elemento; Receptação; Doutrina.

ABSTRACT:The present article at the beginning, makes a brief introduction to the subjective element "deceit", exposing three theories about this element. In sequence, it analyzes the crime of receiving that is expressed in article 180 of the Criminal Code, showing the material object, assumption and elements of the criminal type. Finally, it delves deeper into the proposed theme, which critically examines misconduct in the crime of qualified reception, which is expressed in article 180, § 1 of the Criminal Code, clearly showing the differences in doctrine, the Respect of the term "must know" in the criminal type for the penalty to be applied.

Keywords: Element; Receiving; Doctrine.


INTRODUÇÃO

O dolo é o componente psicológico da conduta, sendo a conduta um dos elementos do fato típico. Dessa forma o dolo é um dos componentes do fato típico. Daí tira-se o conceito de dolo, sendo a vontade e consciência de realizar os elementos tipificados. Esse elemento subjetivo é formado pela consciência e a vontade do agente.

 Foram criadas e estudadas três teorias a respeito do dolo, sendo elas: teoria da vontade, teoria da representação e teoria do assentimento ou consentimento.

Na teoria da vontade o dolo deve ser tanto ao realizar a conduta quanto ao produzir o resultado, não se admitindo só a previsão do resultado.

Ao se tratar da teoria da representação o elemento dolo se dá pela vontade do agente em realizar a conduta, tendo a previsão de ser possível o resultado, porém sem desejá-lo. É necessário apenas que o sujeito preveja o possível resultado para que a conduta realizada seja dolosa.

E por fim a teoria do assentimento ou consentimento em que o dolo é quando o agente prevê o resultado e aceita os riscos de produzi-lo.

Ao ser analisado o artigo 18, I do Código Penal de 1940, é possível ver que ele adotou duas dessas teorias, a do consentimento e a da vontade. Nas palavras de Fernando Capez o Dolo é a vontade de realizar o resultado ou a aceitação dos riscos de produzi-lo, não aceitando a teoria da representação, pois ela faz confundir culpa consciente com dolo.

Existem várias espécies de dolo, sendo elas: Dolo natural; normativo; direto ou determinado; indireto ou indeterminado; dolo de dano; de perigo de dano; genérico; específico; geral, erro sucessivo ou “aberratio causae”.


2 ANÁLISE DO CRIME DE RECEPTAÇÃO

O artigo 180 do Código Penal trata do crime de Receptação: “Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. ” Cominando pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa. É tutelado nesse tipo penal a inviolabilidade do patrimônio.

 Objeto Material

O objeto material desse crime é a coisa advinda do anterior delito contra o patrimônio. Existe um debate na doutrina sobre o bem imóvel poder ser objeto material deste crime, existe dois entendimentos. De acordo com Nélson Hungria:                                  

Um imóvel não pode ser receptado, pois a receptação pressupõe um deslocamento da res do poder de quem legitimamente a detém para o do receptador, de modo a tornar mais difícil a sua recuperação por quem de direito. (HUNGRIA, 1958, p. 304)

Segundo Julio Fabbrini Mirabete:

A lei não distingue entre coisas móveis e imóveis, nem há razão para se afirmar que é necessário o deslocamento da coisa. O nomen juris, por si só, não deve levar à conclusão de que o legislador quis referir-se apenas às coisas móveis, pois fácil seria limitar o dispositivo, como fez em outros tipos penais (artigos 155, 157, etc.). É perfeitamente possível que um imóvel possa ser produto de crime (estelionato, falsidade, etc.). (JULIO F. MIRABETE, 2001, p. 355 e 356).

A primeira corrente é a majoritária, com fundamento em que para o Direito Penal, para que um bem seja considerado móvel é necessário apenas que este possa sofrer deslocamento físico.                                  

 Pressuposto

Neste tipo penal se pressupõe a ocorrência de um delito anterior. É um crime acessório, no qual o objeto material deve ser objeto de delito antecedente, no qual não é necessário que seja patrimonial. Dessa forma, o produto pode ser objeto material de um delito de peculato. O fato será considerado atípico quando o fato antecedente for considerado contravenção penal.

É crime autônomo em relação ao cometido anteriormente, dessa forma, basta que se prove que existe o crime anterior, sem ser necessário a demonstração cabal de sua autoria. Essa forma se aplica na modalidade dolosa e também a culposa desse crime.

 Elementos do Tipo

O tipo penal que incrimina, ou seja, aquele em que está previsto uma infração penal, equivale a definição em abstrato da conduta do homem feita pela lei penal e condizente a um ato ilícito. Dessa forma, o tipo é um formato criado pela lei, em que o a infração penal é descrita com todos os seus elementos, assim as pessoas sabem que estarão cometendo um crime se praticarem qualquer conduta idêntica a descrição legal. Não se pode criar figuras típicas de forma genérica, pois criaria uma insegurança no meio social e vindo a violar o princípio da legalidade.

Ação Nuclear

Na primeira parte (receptação própria) do art. 180, caput, os verbos do tipo são: adquirir, receber, transportar, conduzir e ocultar. Na segunda parte (receptação imprópria), funda-se em: “ influir para que terceiro de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”, neste caso, o sujeito incita terceiro de boa-fé a praticar alguma das condutas descritas. Esse incitador deverá ser pessoa diferente da que cometeu o crime antecedente, se não for, responderá apenas pelo crime anteriormente praticado.

Sujeitos

O sujeito ativo desse crime é qualquer pessoa (crime comum), salvo o autor, coautor ou partícipe do crime antecedente. O sujeito passivo é a pessoa vítima do delito antecedente, aquele que teve seu bem jurídico atingido pelo crime pressuposto.

Existe a possibilidade de o proprietário do bem ser receptador, a doutrina cita esse exemplo: “o bem se acha na posse do credor pignoratício, e, furtado por terceiro, é receptado pelo proprietário. Nesta situação, este recebe, adquire ou oculta coisa produto do delito (furto), praticado contra o legítimo possuidor”.

Doutrinadores como E. Magalhães Noronha e Nélson Hungria dizem que pode existir receptação da receptação desde que a coisa conserve seu caráter criminoso, dessa forma, se a coisa for adquirida por um terceiro de boa-fé que a passa para outro, não há de se falar em receptação, mesmo que o último a adquirir o produto saiba que provém de um delito criminoso. Já os doutrinadores Victor Eduardo Rios Gonçalves e Fernando Capez, em posição diversa, dizem que respondem pelo crime todos aqueles que, nas negociações futuras em que envolvem o produto do crime tenham ciência da sua origem criminosa.

O autor Mirabete faz menção ao caso do advogado que recebe dinheiro ou coisa que sabe ser objeto de delito criminoso, a título de honorários advocatícios, se ele pode ou não responder pelo crime de receptação, nas suas palavras: “tratando-se de pagamento em dinheiro, além do conhecimento da origem ilícita, é necessário que fique positivado que o cliente não tinha condições de saldas a obrigação de outra forma, sabendo disso o profissional”. 

Consumação e Tentativa

Se a receptação é própria, o crime é material, ocorrendo no momento em que o agente realiza uma das condutas típicas. Já no caso da receptação imprópria, o crime é formal, sendo preciso apenas que ocorra o ato de influenciar, sem que seja necessário a aquisição, recebimento ou ocultação do objeto proveniente de delito criminoso pelo terceiro de boa-fé.

É possível a tentativa somente na receptação própria, pois é um crime plurissubsistente. Já na receptação imprópria, por ser crime unissubsistente não se admite a tentativa.

Elemento Subjetivo

O elemento subjetivo no caput deste artigo é o dolo, que consiste na vontade consciente e livre de praticar as condutas nucleares. O dolo direto é exigido expressamente, havendo o enquadro no caput somente se o sujeito tiver certeza que a coisa é proveniente de delito praticado anteriormente. O dolo eventual nesse caso não é suficiente. É exigido também um fim especial de agir, que está na expressão “em proveito próprio ou alheio”, que é a intenção de conseguir vantagem para si ou para terceiro. Se a intenção e vontade do agente for ocultar a coisa para favorecer o autor do delito anterior, haverá crime de favorecimento real.

Nas palavras de Nélson Hungria:

O elemento subjetivo compreende a ciência de que se adquire, recebe ou oculta coisa procedente de crime ou de que se influi para tal aquisição, recebimento ou ocultação por parte de terceiros bonafide (dolo genérico) e o fim de proveito próprio ou alheio (dolo específico). (NÉLSON HUNGRIA, 1980, p. 306)

Existe a hipótese em que o dolo é posterior ao recebimento do objeto, ou seja, o agente adquiri a coisa e só fica sabendo que é produto de crime antecedente depois. Para o autor Bento Faria se o indivíduo tem o conhecimento posterior, e mesmo assim continua com a posse da coisa, deverá ser responsabilizado. Já Magalhães Noronha tem opinião contrária, ao dizer que ciência de que se trata esse objeto de crime deve ser anterior ou pelo menos, contemporânea à ação de adquirir, receber, ocultar.                       


3 ANÁLISE DO DOLO NO CRIME DE RECEPTAÇÃO QUALIFICADA

O Artigo 180, § 1° do Código Penal dispõe sobre o crime em sua forma qualificada: “Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime”. A pena cominada é de reclusão, de três a oito anos, e multa.

Neste caso o agente praticante da conduta deve ser comerciante ou industrial. É dito por Damásio Evangelista de Jesus, Celso Delmanto e outros que de fato a conduta descrita na disposição primária do art. 180, § 1° do CP, é mais leve que a receptação simples, que está expressa no caput do artigo referido acima. Isso porque no crime de receptação qualificada a pena cominada em abstrato é de reclusão de três a oito anos e multa, para o sujeito (comerciante) que deveria saber da origem ilícita do produto. Porém, se ele realmente conhecesse essa origem ilegal, a pena cominada só seria de um a quatro anos e multa, sendo claro que é inadequado e incoerente, pois é imposto uma pena mais severa para o agente que assume uma conduta mais leve. Dessa forma não faz sentido a pena ser mais severa ao crime de receptação qualificada que pressupõe, em seu texto legal, mero dolo eventual, impondo uma pena mais benéfica à receptação simples, em que o elemento subjetivo é o dolo direto, como Damásio de Jesus destaca que o § 1° do art. 180 do CP, versando crime próprio, repreende o comerciante ou industrial que pratica a receptação, usando a expressão “que deve saber ser produto do crime”. No caput é previsto conhecimento pleno, onde é claro para todos o dolo direto, e é tratado no § 3° o delito em sua modalidade culposa, o § 1° só pode discorrer de crime doloso com a designação do conhecimento fragmentário da origem ilegal do produto, seja por vacilação, incerteza, insegurança, fazendo a doutrina se ligar ao dolo eventual.

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Destarte, ocorreria violação aos princípios da isonomia e proporcionalidade, assim foi a manifestação da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

RECEPTAÇÃO QUALIFICADA. CONDENAÇÃO: AUTORIZADA PELA PROVA ORAL COLHIDA EM JUÍZO. PENA: POR ISONOMIA E PROPORCIONALIDADE, DEVE SER DOSADA DENTRO DOS PARÂMETROS DO CAPUT DO ART. 180 DO CP (PRECEDENTES). DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO. UNÂNIME. (APELAÇÃO CRIME Nº 70040108367, QUINTA CÂMARA CRIMINAL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: AMILTON BUENO DE CARVALHO, JULGADO EM 26/01/2011). (TJ-RS - ACR: 70040108367 RS, RELATOR: AMILTON BUENO DE CARVALHO, DATA DE JULGAMENTO: 26/01/2011, QUINTA CÂMARA CRIMINAL, DATA DE PUBLICAÇÃO: DIÁRIO DA JUSTIÇA DO DIA 11/03/2011).

No mesmo sentido se manifestou o Min. Celso de Mello no HC 95.525, quando indeferiu medida cautelar, segundo a ementa:

RECEPTAÇÃO SIMPLES (DOLO DIRETO) E RECEPTAÇÃO QUALIFICADA (DOLO INDIRETO EVENTUAL). COMINAÇÃO DE PENA MAIS LEVE PARA O CRIME MAIS GRAVE (CP, ART. 180, “CAPUT”) E DE PENA MAIS SEVERA PARA O CRIME MENOS GRAVE (CP, ART. 180, § 1º). TRANSGRESSÃO, PELO LEGISLADOR, DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PROPORCIONALIDADE E DA INDIVIDUALIZAÇÃO “IN ABSTRACTO” DA PENA. LIMITAÇÕES MATERIAIS QUE SE IMPÕEM À OBSERVÂNCIA DO ESTADO, QUANDO DA ELABORAÇÃO DAS LEIS. A POSIÇÃO DE ALBERTO SILVA FRANCO, DAMÁSIO E. JESUS E DE CELSO, ROBERTO, ROBERTO JÚNIOR E FÁBIO DELMANTO. A PROPORCIONALIDADE COMO POSTULADO BÁSICO DE CONTENÇÃO DOS EXCESSOS DO PODER PÚBLICO. O “DUE PROCESS OF LAW” EM SUA DIMENSÃO SUBSTANTIVA (CF, ART. 5º, INCISO LIV). DOUTRINA. PRECEDENTES. A QUESTÃO DAS ANTINOMIAS (APARENTES E REAIS). CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO. INTERPRETAÇÃO AB-ROGANTE. EXCEPCIONALIDADE. UTILIZAÇÃO, SEMPRE QUE POSSÍVEL, PELO PODER JUDICIÁRIO, DA INTERPRETAÇÃO CORRETIVA, AINDA QUE DESTA RESULTE PEQUENA MODIFICAÇÃO NO TEXTO DA LEI. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

Assim, é claro a violação de princípios como a individualização da pena, isonomia, proporcionalidade e razoabilidade.

Para muitos, a pena mais grave aplicada ao art. 180, § 1° foi escolha do próprio legislador, por reclamação da sociedade em punir mais severamente a conduta realizada no exercício da atividade comercial ou industrial, por ser mais lesiva de forma ampla.

De maneira diferente, o autor Guilherme de Souza Nucci discorre que a expressão “deve saber” encontrada no art. 180, § 1° do CP, não deve ser analisada de forma rigorosa e precisa, pois, deve ser interpretada não apenas como dolo eventual, mas também como dolo direto, incluindo a expressão “sabe”.

Está também é a posição do autor Fernando Capez:

A lei pretendeu punir não apenas quem sabe, mas até mesmo aquele que devia saber. Foi além, portanto; previu como qualificadora mais do que o dolo direto, razão pela qual a conduta de quem sabe encontra-se embutida na de quem deve saber, de fora que o § 1° do art. 180 alcança tanto o dolo direto (sabe) quanto o dolo eventual (deve saber). Não se trata de analogia ou interpretação extensiva, mas de declarar o exato significado da expressão (“deve saber” inclui o “sabe”), interpretação meramente declarativa, portanto. Se aquele que devia saber comete o crime, com maior razão responderá pela receptação qualificada o sujeito que sabia da origem ilícita do produto”. (FERNANDO CAPEZ, 2016, p. 625)

O assunto em particular, dessa forma, passa pelo conceito de dolo. Uma separação habitual diferencia dolo direto e dolo indireto.

Na figura do dolo direto e também chamado de determinado, a vontade do agente é de realizar a conduta e produzir o resultado. É quando o agente quer diretamente que aquele resultado ocorra. Nesse tipo de dolo o sujeito que pratica a conduta diz: “eu quero”.

Já no dolo indireto e também chamado de indeterminado, a vontade do agente não é de praticar diretamente o resultado, porém aceita que esse resultado seja possível (dolo eventual), ou não da importância se produzir este ou aquele resultado (dolo alternativo).

Assim para esse caso utiliza-se a diferenciação entre dolo direto e dolo eventual: no primeiro o agente quer praticar a conduta e obter o resultado. Já no segundo, o agente prevê o resultado, embora não o queira propriamente praticá-lo, mas pouco se importa se isto ocorrer.

A desproporção em que é tratada no texto legal no caso da cominação da pena para quem pratica a conduta com dolo eventual, e para quem pratica ela com dolo direto, leva a um resultado não proporcional com a razoabilidade, podendo ser considera norma inconstitucional pela matéria trazida à discussão.

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