“Construir um nome” é expressão que encontra significado no que tange à criação de valor, à busca de qualidade, fama, notoriedade em fim; que venha a emprestar ao nome condições de dignidade, respeito, admiração. Mas, nem de longe tem significado caso não haja preexistência do nome.
Algumas pessoas pugnam pela alteração do nome que lhes foi dado em batismo e registro, por considerá-lo ridículo, longo, estranho, feio, ou simplesmente por não se identificarem com o mesmo. Mas, pior que isso – e tentem imaginar – é não ter um nome.
Seria isto possível? E acontecendo, será admissível?
Parece tão óbvia a apropriação de um nome pelo qual sejamos chamados, que muitas vezes não nos damos conta do valor desse atributo. Menos ainda questionamos a posse (se assim podemos classificar) de um nome como objeto do direito.
Não trato aqui do direito a um Registro, Certidão de Nascimento ou Cédula de Identidade – documentos concretos, em papel, plástico e selos. Refiro-me ao nome em seu mais abstrato significado: uma denominação, uma alcunha pela qual seremos chamados e reconhecidos pela vida afora.
Quando da expectativa de chegada de um rebento as famílias, enlevadas, passam a se ocupar da “escolha” de um nome, cujo sobrenome já tem constituição. Mas o caso que narro não é de mera escolha, mas de efetiva construção de um nome.
Pois bem, o fato ocorreu no Rio Grande do Norte.
A cidade pequena, hoje contando com uma população de cerca de 8.900 habitantes, no antanho de 1980, quando se deu tal episódio, era ainda menor e todo mundo se conhecia. Nas conversas de calçada a vida seguia seu rumo em cumprimentos cordiais, onde os nomes das pessoas eram aclamados ou mal falados. Contudo, precisava-se recorrer a um nome, fosse para elogiar, fosse para fofocar.
Eis que, por esse tempo, como Juiz da Comarca, comecei a reconhecer na rua um rosto que se apresentava com frequência pelas imediações do Fórum. Na verdade um rostinho de criança, de feições simpáticas, mas tímidas, no qual logo se adivinhava a carência de recursos e o servilismo na proposta de trabalho que fazia objetivando algum trocado para ter, talvez, o quê levar para casa.
– Posso olhar seu carro doutor? – Propunha esperançoso, aos visitantes do Fórum.
Como estivesse sempre por ali, aos poucos nos reconhecemos e iniciamos breves diálogos.
Certo dia lhe perguntei qual o seu nome. Para minha surpresa, o guri me respondeu:
– Tenho nome não doutor!
– Como assim? Não tem nome? Apressei-me em demonstrar espanto diante de tal resposta.
O menino não soube explicar os detalhes, mas me fez saber que era de família e origem desconhecida. Vivia pela rua, ao léu, de ajuda alheia. Essas coisas que ninguém sabe explicar e que, por incrível que possa parecer, assolam o interior do nosso Brasil.
Aparecer do nada, não podia ter sido. Haveria alguma história por trás disso tudo.
Seja como for propus, brincalhão:
– Posso lhe chamar de “Zé”?
– Pode sim doutor. Algumas pessoas me chamam mesmo de “Zé”!
Espanei seus cabelos num gesto de carinho e segui para casa. Mas não pude deixar de noticiar o ocorrido, em conversa familiar, e fiquei com o assunto na cabeça durante aquela noite.
José é um nome bem comum no Brasil e, de fato, é o tratamento dado quando nos referimos a alguém desconhecido: “Ei, seu Zé!”. Traz até certo carinho, por tratar-se do nome do pai de Jesus.
Mas também podia parecer um sinal de descaso. Não à toa, para referir-se a alguém sem relevância, diz-se à miúde: “é um Zé Ninguém”!
Me compadeci da pobre criança.
Dia seguinte, chegando ao Fórum, encontrei “Zé” já de plantão e aproveitei a oportunidade de pesquisar sua origem para saber-lhe verdadeiramente o nome.
– Bom dia Zé. (Pronto, esse nome já fluía como se “Zé” fosse desde o nascimento).
– Bom dia “seu” Doutor!
– Escuta aqui, Zé, de onde você veio?
– Num sei naum doutor!
– Como veio parar aqui?
– Num sei naum doutor!
– Mas você não gostaria de ter um nome? Um nome completo? Somente seu?
– Claro, doutor. Eu já tentei até estudar, mas sem nome não posso. Não me querem na escola porque não tenho nome...
Pronto. Este diálogo, muito além de me sensibilizar, me convocou à questão do direito em sua mais básica concepção. O próprio direito de reconhecimento à existência, a um registro de pessoa natural. O direito à cidadania. O inquestionável direito a um nome.
Mas como saber de onde ele viera? Não poderia ter aparecido do nada! Opa, um primeiro lampejo de ideia: “aparecido”, repeti. Aparecido! José Aparecido.
Procurei o tabelião, com quem conversei na condição de Juiz e, muito mais, na condição de ser humano sensibilizado pela evidência de um menino desprovido de um nome.
Sugeri que lhe fosse concedido o registro com o nome aventado de “José Aparecido”.
O Tabelião somou-se à minha inquietação, pois desconhecia daquela existência anônima. Mas questionou o quão simplório seria a atribuição de dois nomes apenas, sem nenhum sobrenome.
– Pois é! – Concordei intrigado – Esse é um caso típico desses recantos do Brasil. Um típico brasileirinho.
Eureca! Mais um estalo! Ao falar “típico brasileirinho” me veio logo à mente um típico sobrenome brasileiro: Silva!
Estava agora completo o nome. José: por ser o tratamento dado a quem se desconhece o nome; Aparecido: por que, do nada, “apareceu” na cidade; da Silva: por ser um sobrenome típico brasileiro.
O Tabelião concordou de pronto e, juntos, resolvemos o problema da criança, que foi assim registrada, mesmo sendo de pais desconhecidos, mas agora com um nome completo: José Aparecido da Silva, típico cidadão brasileiro, empossado em seus direitos naturais.
Precisavam ver a cara de alegria ao receber seu registro – que passou a mostrar com vaidade – e ao saber-se dono de um nome próprio – que assumiu com orgulho.
Depois de transferido da Comarca, não acompanhei a evolução da verdadeira “construção” do seu nome, mas sei que, de imediato, foi admitido na escola e ganhou outros ares, autoestima e amor próprio, ao deixar de ser anônimo.