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Aspectos da aplicação das medidas protetivas e sócio-educativas do Estatuto da Criança e do Adolescente:

teoria e prática

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04/12/2004 às 00:00
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5-Dinâmica da aplicação das medidas sócio-educativas

A pratica de ato infracional pode chegar ao conhecimento da autoridade pelas mesmas formas pelas quais toma conhecimento da prática de um crime, significa dizer, através de "notitia criminis" ou flagrante, e de ofício.

A primeira hipótese corresponde à popular "queixa". Na verdade denominar de "queixa" o ato pelo qual se dá conhecimento à autoridade policial da prática de ato infracional ou crime (lato sensu), é sabidamente erro crasso, visto que devemos reservar tal denominação somente à peça que dá início à ação penal privada. Na verdade, trata-se de comunicação de ocorrência, materializada no boletim de ocorrência.

A segunda hipótese corresponde ao flagrante, nos mesmos moldes do que ocorre no processo criminal. Mas é possível flagrância à luz da legislação especial ? Sim. Flagrância é um estado que relaciona uma pessoa com um fato, seja ele crime ou ato infracional, seja o indivíduo imputável ou não. O que não existe é prisão em flagrante. De fato, o adolescente está sujeito à apreensão (não à prisão), a qual pode resultar de ordem judicial ou estado de flagrância.

A terceira hipótese ocorre quando a atividade infracional aparece conjugada à ação de imputáveis ou é mencionada em investigação criminal, ou mesmo em outro ato infracional em apuração.

Na primeira e na terceira hipótese, o ato inicial do procedimento é a instauração do Relatório de Investigações, que corresponde ao inquérito policial. No caso de apreensão, e situação é diversa.

Primeiramente, é preciso que se esclareça que a repartição policial especializada em criança e adolescentes terá precedência no encaminhamento do caso (artigo 172, parágrafo único, do ECA).

Deverá ser lavrado, incontinenti, o auto de apreensão a partir do qual duas possibilidades se colocam. Na primeira, a infração não é grave e não gerou repercussão social e se apresentam os pais os responsáveis, seja por vontade própria seja porque informados pela autoridade policial.

Neste caso, deverá a autoridade policial proceder à entrega do menor aos pais ou responsáveis mediante compromisso de sua apresentação ao agente do Ministério Público. Quando? Imediatamente, se possível, ou no dia seguinte, se impossível. A finalidade desta apresentação será adiante esclarecida. Por isso, cópias do boletim de ocorrência e do auto de apreensão devem ser remetidas sem perda de tempo ao órgão do Ministério Público.

Na segunda hipótese, ou os pais ou responsáveis não se apresentaram, ou a infração é grave e gerou repercussão social. No primeiro caso, deve a criança ou adolescente ser encaminhado à entidade de abrigo. Na segunda possibilidade, o caso é de internação provisória.

A internação provisória tem como fundamentos a garantia da segurança pessoal do indigitado infrator e a manutenção da ordem pública.

Mas quais seriam estes casos na prática? Em verdade, a um sem fim de hipótese que expõem o infrator a perigo. Um exemplo seria aquele em que são cometidas infrações de grave repercussão, como o latrocínio ou o estupro com morte da vítima. São infrações que, com muita razão, causam revolta popular. Nestes casos, a possibilidade de represálias por parte da população é um fator ponderável. Da mesma forma, em caso de infratores renitentes, a manutenção da liberdade do infrator também pode significar grande probabilidade de novas infrações, e não se pode olvidar que a própria prática da infração coloca a segurança do adolescente em perigo.

Já no que pertine à ordem pública, da mesma forma podem ser hauridos elementos para a internação tanto na espécie da infração como no infrator. Infrações graves que geram repercussão social, causam insegurança e intranqüilidade na população. Por outro lado, infratores contumazes sem dúvida fazem periclitar a ordem pública na medida em que é elevada a probabilidade de cometimento de novas infrações.

Sob o ponto de vista formal, dois são os requisitos da internação provisória (artigo 108, parágrafo único, do ECA). Em primeiro lugar, deve haver indícios suficientes de autoria e materialidade, ou, por outras palavras, deve haver indícios da existência da infração e de sua autoria. Nem todas as infrações comportam a aferição de materialidade, que é o conjunto dos vestígios perceptíveis da infração.

Traçando um paralelo com a prisão preventiva, vemos que o legislador foi menos exigente, pois não há necessidade de prova da existência da infração.

É, ainda, necessário que se demonstre a necessidade imperiosa da medida.

Por força do parágrafo único do 108 do ECA e do artigo 93, inc. IX [3], da CF/88, a decisão que determina a internação deverá ser fundamentada, ainda que sumariamente.

A medida caduca em 45 dias (artigo 108, caput, do ECA). Mas este é um prazo máximo, que pode ser reduzido diante das peculiaridades do caso.

Escusado referir que em hipótese alguma poderá o adolescente ficar custodiado juntamente com adultos. Tampouco pode ser transportado em compartimento fechado de veículo policial (artigo 178 do ECA).

E quem pode postular a internação. A priori, não há nenhuma indicação legal específica. Porém a autoridade policial não teria interesse em pedir internação provisória, pois ou procederá a entrega do adolescente aos pais ou responsável ou deverá encaminha-lo ao Ministério Público imediatamente, de modo que a internação provisória ordinariamente é requerida na representação.

Recebendo os autos do Relatório de Investigação, ou o boletim de ocorrência, e o auto de apreensão, quatro alternativas se colocam frente ao representante do Ministério Público.

Antes de tomar qualquer delas, deverá proceder a oitiva do adolescente e de seus pais ou responsável. Este, aliás, é um direito do adolescente, consoante se verifica do artigo 108, inc. V, do ECA, e está previsto como obrigação do agente ministerial no artigo 179.

À vista dos elementos constantes dos documentos acima referidos e das declarações do pretenso infrator, poderá o órgão do Ministério Público: a) solicitar o arquivamento do feito à autoridade judiciária; b) conceder remissão; c) representar; e d) solicitar diligências à autoridade policial.

A aplicação de medidas sócio-educativas pressupõe aferição da existência de um ato tipificado como crime ou contravenção e a individualização do seu autor. Desta forma, se desde logo se afigura a conduta atípica ou se uma excludente que torne desnecessária a proteção do infrator (como já referido, a excludente por si só não implica afastamento da possibilidade de aplicação de medida sócio-educativa), não há sentido algum em prosseguir-se com o feito, de modo que deve ser requerido o arquivamento em pedido fundamentado.

Não sendo o caso de arquivamento, havendo admissão da autoria da infração, e atentando-se às conseqüências e circunstâncias do fato, ao contexto social, à personalidade do agente e a sua participação no fato, poderá ser concedida remissão.

A remissão é um instituto que obsta a propositura ou o prosseguimento de processo judicial de aplicação de medida sócio-educativa, ou que implica em sua extinção. Pode ser concedida com aplicação conjunta de qualquer das medidas dos artigos 101 ou 112, exceto semiliberdade e internação.

Mas "apesar da possibilidade de o Ministério Público conceder remissão ao adolescente na fase pré-processual, não significa que possa aplicar ao jovem medida sócio-educativa, função exclusiva do magistrado, nos termos da Súmula 108 do Superior Tribunal de Justiça." [4]

Por outro lado, no Sodalício Gaúcho também já se decidiu que

"A remissão concedida ao adolescente pelo Ministério Público, não comporta alteração, notificação ou acolhimento em parte pelo Magistrado, nem mesmo para a inclusão de medida sócio-educativa mais branda, porque a legislação menorista conferiu ao Ministério Público a titularidade da concessão da remissão. Se a autoridade judiciária discordar da sua concessão ou modalidade, deverá proceder na forma do art. 181, par. 2º do ECA" [5].

A súmula 108 do STJ, de seu turno, estabelece que:"A aplicação de medidas sócio-educativas ao adolescente, pela prática de ato infracional, é da competência exclusiva do juiz.".

Como devemos interpretar, portanto, a possibilidade de concessão de remissão cumulada com medidas? À luz do artigo 181 do ECA, os autos com a "promoção" de concessão de remissão deverão ser remetidos à autoridade judiciária (leia-se: juiz da infância e juventude), para homologação.

Conclui-se, assim, que se trata de um ato composto, pois o órgão do Ministério Público concede a remissão, ajustando com o adolescente a medida sócio-educativa eventualmente aplicável, submetendo a promoção de remissão ao juiz que a homologará para que surta os efeitos jurídicos próprios, inclusive para que seja formado do PEM (processo de execução de medida), se for o caso.

Neste norte, a chancela judicial é requisito de validade da remissão. Em caso de discordância do magistrado, deverá à semelhança do que ocorre com o processo penal remeter o feito ao Procurador-Geral de Justiça (artigo 181, parágrafo 2º), à semelhança do que ocorre no processo penal (artigo 28 do CPP).

O descumprimento da medida imposta por força de remissão implica no agravamento da medida. Mas uma interpretação conjugada dos artigos 127 e 128 do Estatuto da Criança e do Adolescente tem por corolário o impedimento de que a "regressão" enseje a colocação do adolescente em semi-liberdade ou internação.

Ao contrário, se a medida fora imposta por força de sentença, pode ser operada a regressão sem limitação quando à espécie de medida a ser aplicada.

Por uma ilação lógica, consectário da consagração da ampla defesa e contraditório em foro constitucional "a regressão de medida sócio-educativa está sujeita às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, caracterizando-se constrangimento ilegal a sua decretação sem a oitiva do adolescente e a manifestação de seu defensor" [6].

Se não concedida a remissão ou pedido o arquivamento, dois caminhos se colocam. Se o feito comporta elementos mínimos para a representação esta será oferecida. Mas poderá ocorrer de estes elementos não existirem. Cumprirá, portanto, ao agente ministerial requisitar diligências a serem cumpridas pela autoridade policial ou outros órgãos, para, por exemplo, proceder-se a oitiva de testemunhas, realização de perícias [7], ou juntada de documentos [8].

Cumpridas as diligencias ou sendo desnecessárias, abra-se espaço para a representação. Aqui estamos frente a mais um termo com duplo significado jurídico. Mas aqui não se cuida da representação penal, que é a manifestação do ofendido e que é condição de procedibilidade da ação penal pública condicionada.

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A representação referida pelo ECA é, mutatis mutandis, uma denúncia. Destarte, trata-se de peça inaugural do procedimento de aplicação de medida sócio-educativa, na qual é descrito o ato infracional e pedida a instauração do procedimento em vista dele.

Assim como ocorre com a denúncia, a representação deve descrever o ato infracional com todas as suas circunstancias relevantes de forma precisa e objetiva, procedendo sua subsunção à lei (capitulação do fato). Deverá, por conseguinte, conter a indicação da autoridade judiciária à qual é dirigida (órgão), a qualificação do infrator, dando-se especial ênfase a sua idade na época do ato infracional, a descrição do fato, sua capitulação legal, pedido de aplicação de medida sócio-educativa, e rol de testemunhas.

Poderá acompanhar a representação a promoção de internação provisória, ou de arquivamento em relação a outro fato ou infrator, ou ainda, a justificação pelo não oferecimento de remissão ou pedido de diligências complementares.

A descrição de cada fato normalmente é feita em dois parágrafos. No primeiro, são mencionados data, local, hora e o tipo infringido, exatamente o seu texto (matou, subtraiu, obteve vantagem ilícita induzindo em erro, constrangeu mediante violência, ameaçou, deu instauração etc...), com as circunstâncias qualificadoras e majorantes (com emprego de escalada, por motivo fútil, através de meio cruel, com emprego de arma de fogo etc.).

No segundo parágrafo, é feita a materialização do primeiro parágrafo em fatos concretos, ou seja, os fatos específicos do caso concreto, cuja descrição, sob o prisma jurídico, foi feita no primeiro parágrafo, são descritos em fatos concretos e específicos. Ali se dirá que o infrator, motivado por desejo de vingança, deu tantos disparos de arma de fogo na vítima; que o infrator ameaçou a vítima dizendo-lhe as seguintes palavras; que o infrator, escalou uma janela e furtou os bens etc...

A praxe é o valor de bens e sua descrição, assim como a descrição de lesões ou do dano, ser feita no primeiro parágrafo, onde também é mencionada a circunstância de terem sido os bens apreendidos e avaliados, indicando-se as folhas dos respectivos autos etc...

A capitulação do ato, por outro lado, não gera, se equivocada, nulidade, pois é cediço que a defesa visa os fatos e não sua capitulação legal, sendo aplicável, na hipótese, o artigo 383 do CPP.

Devem ser articuladas na capitulação as qualificadoras, majorantes e agravantes e atenuantes.


6- A Fase Judicial

A fase judicial, por sua importância, comporta um tópico separado. Ela inicia-se com a propositura da representação a qual é submetida à apreciação da autoridade judiciária. Neste momento, deverá decidir, fundamentadamente, sobre eventual pedido de internação provisória.

Recebida a representação, o juiz designará audiência de oitiva do adolescente, procedendo-se a notificação e cientificação dele e de seus pais ou responsável.

Caso não logre o oficial de justiça encontra-los e as diligências para tanto resultem infrutíferas, a autoridade judiciária determinará a busca e apreensão do adolescente, sobrestando o feito até que seja encontrado (artigo 184, parágrafo 3º, do ECA) Se já estava internado provisoriamente, será requisitada a sua apresentação, procedendo-se igualmente a notificação dos pais ou responsável.

Caso o adolescente devidamente cientificado deixe de comparecer à audiência de apresentação e seja conhecido seu paradeiro, será determinada a condução coercitiva.

Após a oitiva do adolcescente, poderá entender o magistrado cabível a remissão diante da situação do caso concreto. Assim sendo, deverá consultar o Ministério Público e conceder o benefício, o qual poderá vir acompanhado de medida sócio-educativa, exceto semiliberdade ou internação. Neste caso, a remissão funciona como causa de suspensão do processo (caso cumulada medida que demande tempo para cumprimento), ou como forma de extinção do feito, se concedida fé forma simples.

Se a hipótese compreender ato grave, passível de ter aplicadas semiliberdade ou internação, designará o juiz audiência de continuação, para instrução no feito. Nesta hipótese, da mesma forma que ocorre no processo penal, se o representado não possuir defensor, ser-lhe-á nomeado um dativo. Em qualquer caso, abre-se, a partir da audiência, prazo de três dias para apresentação de defesa prévia, que é semelhante aquela do processo penal.

Com as recentes reformas do CPP, que exigem a presença de advogado no interrogatório, entendemos que na audiência de apresentação também deve ser procedido de tal forma. Normalmente sempre há advogados que podem ser nomeados e prontamente intervirem na audiência, de modo que raramente o ato teria de ser adiado por falta de defensor.

Finda a instrução, abre-se espaço para debates orais com prazo de 20 minutos, prorrogáveis por mais dez. Na prática, não é incomum a sua conversão em alegações escritas com prazo de cinco dias, a critério do magistrado.

A lei refere à juntada de relatório de equipe interdisciplinar nesta fase. Em verdade, diante da realidade nacional, dificilmente isto acontece, pois a maioria das comarcas do interior não dispõe de serviços públicos aptos a exercer a tarefa de elaboração de estudo a partir de uma ótica interdisciplinar. Normalmente, portanto, este estudo resume-se a um estudo social elaborado por serviços de assistência social.

Na sentença, poderá o magistrado não aplicar medida alguma se reconhecer:

"I - estar provada a inexistência do fato;

II - não haver prova da existência do fato;

III - não constituir o fato ato infracional;

IV - não existir prova de ter o adolescente concorrido para o ato infracional".

Tais são as hipóteses contempladas no artigo 189 do ECA. É de suma importância observar que as excludentes da ilicitude não foram mencionadas, como ocorre no artigo 386, inc. V, do CPP. Não obstante, tem-se admitido a invocação da legítima defesa. Volto a repetir: como não está em jogo a punição por um fato, mas sim a proteção do adolescente, ainda quando tenha agido sob o pálio de uma excludente, poderá ser necessária a aplicação de medida sócio-educativa [9].

Uma vez que tenha sido aplicada medida de internação ou semiliberdade a intimação deverá sempre ser feita ao defensor, e ao infrator, se possível. Caso contrário, deverá ser comunicada a seus pais ou responsável. Nas demais medidas, a intimação pode ser feita na pessoa do defensor, exclusivamente.

Caso tenha sido procedida a intimação do infrator, deverá ser questionado acerca do interesse em recorrer. Em assim desejando, deverá ser intimado o defensor para formalização do ato.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Aspectos da aplicação das medidas protetivas e sócio-educativas do Estatuto da Criança e do Adolescente:: teoria e prática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 515, 4 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5993. Acesso em: 19 abr. 2024.

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