2. O INQUÉRITO POLICIAL EM PERSPECTIVA COMPARADA
Há vários sistemas alienígenas que, ao priorizar em suas reformas processuais o fortalecimento do Ministério Público, passaram a permitir de maneira ampla a investigação criminal pelo parquet.(LOPES JÚNIOR, 2001)*
No direito comparado observamos a existência de dois sistemas principais: o inglês (a polícia detém o poder de conduzir as investigações preliminares) e o continental (o Ministério Público conduz a investigação criminal).
Neste segundo sistema, encontramos, por exemplo, países como a Itália, Alemanha, França e Portugal, como será visto a seguir.
Na França, a apuração das infrações penais cabe à polícia judiciária que age sob a direção do Ministério Público. Tão logo tomam conhecimento de uma infração penal, os policiais procuram o Ministério Público a fim de obterem um "visto" para iniciarem as investigações. A medida em que as diligências vão avançando, o Oficial ou o Agente de Polícia devem ter o cuidado de prestar contas das investigações ao titular da ação penal. Na Itália, a polícia trabalha sob a orientação e dependência dos Magistrados do Ministério Público. Igual posição ocorre na Alemanha.
Na Espanha, as investigações preliminares estão a cargo do Juiz de Instrução que tem o Ministério Público como seu auxilia,r e este tem como auxiliares subordinados a polícia judiciária. Em Portugal, a "instrução preparatória" é secreta e fica a cargo do Promotor, estando a polícia judiciária na posição de órgão auxiliar do Ministério Público. Nos países da América Latina, a posição do Ministério Público é sempre a de orientador da Polícia na apuração das infrações Penais.
Veja a seguir as principais características de cada um dos países acima mencionados:
2.1. ESPANHA
O sistema processual espanhol divide-se em Instrução Preliminar ou Fase Pré-Processual e Juicio Oral ou Fase Processual. Nota-se, no entanto, a existência da Fase Intermédia que faz a ligação entre as duas fases citadas anteriormente. Nesta fase é decidido sobre o término da fase pré-processual, conforme o caso seja de arquivamento ou de abertura do processo através da petição de abertura do juízo oral.
A fase pré-processual caracteriza-se por ser uma fase de investigação preliminar judicial, tendo em vista a presença do juiz instrutor. Vale ressaltar que o juiz da instrução preliminar está impedido de atuar na fase processual, de modo que a prevenção é causa de exclusão da competência, justamente para preservar a imparcialidade do juiz.
O titular da ação penal nos crimes perseguidos de ofício (ou público) é o Ministério Fiscal; e é o particular, nos crimes perseguidos pelo interesse da parte (semi-público ou particular). Mesmo nos delitos perseguidos de ofício, o particular independentemente de ser vítima ou não, poderá participar ao lado do Ministério Fiscal (MP) como titular da ação através de uma ação popular.
A instrução preliminar se dá de duas formas de acordo com o crime: Sumário e Diligências Prévias. O Sumário é a fase pré-processual do procedimento ordinário que atende aos delitos mais graves, cuja pena seja superior a 9 anos; tem início com a notitia criminis através da denúncia, da querella ou de ofício. (No ordenamento espanhol, a notícia crime é obrigatória nos crimes perseguíveis de ofício).
Se dá a denúncia pública quando a parte exerce meramente seu dever de informar um delito de que tenha conhecimento, caracteriza-se por ser uma mera exposição dos fatos, simples e informal.
Ocorre a querella pública quando além de informar o delito, a pessoa tem interesse de ser parte processual. É através da querella pública que será exercida a ação popular e também a acusação a cargo do Ministério Fiscal (MP). Por isso ela exige determinados requisitos formais – deve ser escrita, recebida por meio de procurador (agente incumbido de receber as comunicações processuais, recursos, petições e etc.) e assinada por advogado.
A denúncia privada corresponde mais ou menos à representação no Direito Brasileiro. A atuação do Estado está vinculada não só à declaração de conhecimento do ofendido, mas também à uma declaração de vontade de que o Estado persiga o delito.
A querella privada está situada no campo dos crimes de perseguição particular onde o interessado atua como parte.
Seja qual for o ato do início (Querella ou Denúncia ), este será dirigido ao juiz instrutor que tem a função de buscar os elementos necessários ao processo. Os atos serão por ele decididos, ordenados e até colhidos, podendo inclusive atuar contra vontade do Ministério Fiscal (MP).
O Ministério Fiscal (MP) tem a função de inspecionar os juizes de instrução, mas não passa de um mero colaborador já que o juiz não está vinculado à aceitar as diligências solicitadas pelo (MP).
O sumário é obrigatório, escrito e o segredo externo existe até o início da fase processual. O segredo interno, não atinge o promotor, mas apenas os sujeitos passivos e eventuais acusadores, e somente pode ser determinado por declaração judicial com a duração de até 30 dias.
Ao final do sumário o juiz profere a decisão denominada auto de conclusión del sumário e o remeterá ao tribunal competente para julgar, dando ciência aos acusadores inclusive ao (MP). Com o recebimento pelo tribunal do sumário, inicia-se o período intermediário, momento em que as partes terão acesso ao contraditório para que seja decidido quanto ao arquivamento ou oferecimento da petição de abertura do juízo oral, que dependerá de manifestação do (MP) ou do acusador para poder prosseguir e ter início o processo.
O Procedimento Abreviado abrange os delitos cuja pena privativa de liberdade não seja superior à 9 anos, salvo quando houver rito especial. Sua fase pré-processual chama-se diligências prévias e está a cargo do juiz instrutor, mas com uma participação mais ativa do (MP).
A única inovação que merece destaque é o maior valor atestado ao policial, pois se ele estiver suficientemente instruído, o juiz da instrução poderá decidir que o (MP) poderá de imediato pedir a abertura do processo.
Nesta fase, excepcionalmente, o promotor poderá ser o encarregado da fase pré-processual, mas a qualquer momento o juiz instrutor poderá intervir, já que a regra é a instrução sob seu comando.
A polícia espanhola está subordinada ao juiz instrutor e ao Ministério Fiscal (MP) e divide-se me polícia de segurança e polícia judiciária tendo atuações distintas, seja prevendo o crime ou fornecendo elementos para a propositura da ação penal conforme a sua área de atuação.
2.2. FRANÇA
No processo penal francês há duas modalidades de instrução preliminar:
- Enquête Préliminare: para os delitos de menor gravidade onde a investigação pode ser realizada pela polícia judiciária sob o comando do MP. Tal modalidade não permite o contraditório.
- Instruction Préparatoire: realizada por requisição do MP pelo juiz instrutor que poderá determinar que a polícia judiciária realize as diligências, sendo obrigatório nos crimes mais graves e facultativa nos délit (crimes menos graves). Neste procedimento o sujeito passivo tem direito à assistência do advogado que tem amplo direito de consultar os autos e deve ser informado de qualquer informação que influencie na liberdade de seu cliente.
Na França, assim como na Espanha, o juiz da instrução preliminar não se confunde com o juiz do processo.
Os procedimentos por contravenções são chamados de enquête de police já que por ela realizados.
A instruction é mais complexa até por sua natureza já que destinada à delitos mais graves. Enquanto a enquête se limita à existência do fato narrado e à definição de seus autores, na instruction a investigação vai além, colhendo inclusive informações quanto à personalidade da vítima e do autor.
Ambos os procedimentos são escritos e secretos e a violação do segredo importa em um delito.
2.3. ITÁLIA
O Código de processo penal hoje vigente entrou em vigor em 1989 substituindo o Código de Rocco de 1930, trazendo modificações substanciais quanto ao sistema da instrução preliminar, estabelecendo em lugar da instrução judicial, a chamada Idagini Preliminari - instrução preliminar a cabo do MP, que tem à sua disposição a polícia judiciária. Tal investigação deve ser realizada também sobre as circunstâncias e fatos que possam favorecer a pessoa à ela submetida.
O sistema fortalece o MP ainda quando a ação penal dependa do requerimento do ofendido, e terá início através da querella, que consiste na manifestação de vontade do particular para que o MP possa atuar; ou da instanza, necessária para os crimes que não podem ser investigados de ofício e foram praticados no exterior; ou da richiesta que é um requerimento da autoridade afetada, utilizada para determinados delito; ou a autorizzazione a procedere que consiste numa autorização obtida pelo MP para atuar contra pessoas que ocupam determinados cargos, como um membro do parlamento por exemplo.
Apesar de estar a cargo do MP a indagini preliminari é supervisionada pelo juiz da instrução que atua como garante das medidas restritivas de direitos fundamentais do sujeito passivo, não podendo este ser confundido com o juiz instrutor de instrução (juiz da fase processual). É também o juiz de instrução que controla a duração da instrução preliminar que terá 6 meses à contar da data à quem se atribui o cometimento do crime e 1 ano para os delitos mais graves; além de ter a função de decidir o resultado da investigação preliminar na audiência de instrução, cujo momento possibilita o contraditório.
Os atos praticados na fase da investigação preliminar não servem de prova ao processo e tal fase é facultativa, estando a cargo do MP a decisão quanto ao arquivamento, instauração ou oferecimento direto da ação penal.
O segredo da indagini preliminari não deverá durar além do término da instrução preliminar.
2.4. ALEMANHA
Na Alemanha a investigação preliminar – ermittlungsverfahren e vorverfahren – está a cargo do MP que deverá investigar não só os atos que possam incriminar o sujeito passivo como também os atos que o possam exculpar.
No sistema alemão, o MP tem o monopólio da ação penal (inclusive na ação penal privada onde o ofendido poderá acusar junto com o promotor) e na prática quem realiza grande parte da investigação é a polícia.
O juiz garante também atua na instrução preliminar e além de realizar o juízo de admissibilidade da acusação na fase intermediária, garante a legalidade dos atos e excepcionalmente poderá praticar atos de investigação que tenham caráter de urgência.
A investigação preliminar tem por fim apenas fornecer elementos para a propositura da ação penal e poderá recolher provas indicadas pelo sujeito passivo desde que relevantes para determinar as conseqüências jurídicas do fato, mas apesar disso, o procedimento é secreto não podendo nem o imputado nem seu defensor assistir às diligências salvo algumas exceções. No entanto, em caso de arquivamento o ofendido poderá requerer que o tribunal examine se o MP agiu com legalidade.
Na fase intermediária, realizada através de uma audiência onde é permitido o contraditório, é analisado se é cabível a ação penal. A resolução é tomada por um tribunal, o mesmo órgão que no caso de propositura da ação a julgará.
Na Alemanha não existe o princípio da defesa técnica necessária para todos os juízos penais.
2.5. PORTUGAL
O código de processo penal português atual, entrou em vigor 1988, e foi reformado em 1995 para se adequar ao Código Penal.
A investigação preliminar é chamada de inquérito e está a cabo do MP que conta com a assistência da polícia judiciária. Existe também nesta fase a figura do juiz garante da instrução, garantindo a legalidade e atuando também na colheita de provas procedendo ao primeiro interrogatório e etc., desde que sofra requisição do MP, da polícia, do assistente de acusação ou do sujeito passivo. Este juiz não poderá atuar na fase processual e tem o poder de decisão quanto à pronúncia (propositura da ação penal) ou arquivamento.
O inquérito tem o prazo máximo de 6 meses em caso de estar o sujeito passivo preso e de 8 meses se estiver em liberdade, nos delitos mais graves os prazos são respectivamente de 8 e 12 meses e está limitado à colheita de provas que somente poderão ser utilizadas para a propositura da ação penal, não tendo utilidade na fase processual.
O inquérito é facultativo salvo quando de ação penal privada ou condicionada que quando da notícia crime o promotor deverá instaurar o inquérito. Assim, nos casos de ação penal pública o MP poderá oferecer diretamente a ação penal, já que tem a titularidade para o oferecimento da ação penal, podendo o ofendido atuar como assistente. Nos crimes de ação penal privada a titularidade está a cargo do particular.
Escrito, secreto, não é contraditório, mas está assegurado a presença do defensor no interrogatório.
3. REDEFINIÇÃO DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E AS CENTRAIS DE INQUÉRITO
As discussões em torno da crise do inquérito policial permitem a proposição de análises acerca do papel do Ministério Público como instituição capaz de garantir o devido processo legal a partir da fase do inquérito.
O Ministério Público no Brasil constitui-se em um dos órgãos previstos na Constituição Federal de 1988 cujas "funções são essenciais à justiça", estando ligado ao poder executivo.
As Centrais de Inquérito criadas inicialmente em 1991 pelo Ministério Público do Rio de Janeiro representam a busca de se melhorar um sistema que se encontra em crise – o inquérito policial.
As Centrais seriam órgãos do Ministério Público com atribuição para funcionar em inquéritos policiais, de forma a controlar, conforme disposição constitucional do artigo 129,VII da CF, a atividade policial.
3.1 O MINISTÉRIO PÚBLICO NA LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA E AS CENTRAIS DE INQUÉRITO NO RIO DE JANEIRO
Antes de analisar o desenho específico adotado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro de 1991 a 1997 – as Centrais de Inquérito, cabe fazer uma breve incursão na legislação brasileira que rege os princípios dessa instituição.
A instituição do Ministério Público não é recente em nossa história legal, embora o seu tratamento como instituição possa ser considerado relativamente novo. Segundo Hugo Nigro Mazzilli [35], "[...] inicialmente vinculada ao direito português, o Ministério Público teria passado por vários momentos até chegar a ser como hoje se apresenta."
É opinião corrente entre os que estudam a instituição do Ministério Público (Hugo Nigro Mazzilli e Walter Sabella são exemplos) que o tratamento à ela dispensado pela Carta Constitucional de 1988 é bastante inovador no ordenamento jurídico brasileiro.
O Ministério Público, que em outras constituições era tratado em Seções nos Capítulos dedicados aos Poderes Executivos ou Judiciário, nessa é tratado na Seção I do Capítulo IV, que trata das Funções Essenciais à Justiça, capítulo inserido no Título IV, Da Organização de Poderes.
O tratamento inovador notado pelos comentadores da instituição pode ser exemplificado pelo texto do caput do artigo 127 da CRFB 88. Nele, o Ministério Público é conceituado como: "Art. 127. CF – Instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis."
[...] Pela forma com que foi redigido este artigo e pela importância que confere ao Ministério Público – tido até então como um órgão do Poder Executivo, ora mais ligado ao poder judiciário – é possível perceber, como indica Sabella, que "a intenção dos legisladores de 1988 era bem mais do que simplesmente dispor sobre as regras de funcionamento da instituição." Segundo este autor, havia entre os constituintes a idéia da necessidade de se instituir mecanismos de controle externo entre os Poderes e entre as Instituições. Esta idéia estaria vinculada à idéia de aperfeiçoar o funcionamento das instituições e no caso do Ministério Público, diria respeito principalmente à execução de suas funções de zelar pela democracia e defesa dos direitos individuais e coletivos.
[...] Um estudo realizado em 1994, pelo Núcleo de Violência do ISER evidencia a relação que se estabelece entre a polícia civil – ou judiciária – e o Ministério Público. Dos inquéritos policiais realizados pela polícia judiciária, apenas 8% foram convertidos em denúncia pelo Ministério Público, enquanto os 92% restantes foram arquivados ou restaram inconcluídos. Os arquivamentos, em sua maior parte, e a não conclusão dos inquéritos se dão for falta de provas, tendo em vista a ineficiência de atuação da polícia civil, gerando uma situação de insegurança social muito grande, em razão da primazia da impunidade. [36]
Outro exemplo claro do abismo que há entre a comunicação do crime e a persecução penal é constatada em estudo realizado no Estado de São Paulo em 1999.
Em 1999, o Estado de São Paulo tinha um quadro de 36 mil policiais no efetivo da polícia civil. Neste mesmo ano, foram registrados na capital paulista 523.396 boletins de ocorrência de crimes, 73% dos quais eram delitos patrimoniais. Com base nesse s boletins, foram instaurados, apenas, 84.519 inquérito policiais (cerca de 16% do total), sendo que o Ministério Publico formalizou 25.301 denúncias instruídas por esses inquéritos, das quais 12.102 foram iniciadas por autos de prisão em flagrante em que a atividade investigatória foi praticamente inexistente. A produtividade da polícia judiciária da maior parte da Polícia Civil do país não ultrapassou, nesse aspecto, 3% dos fatos registrados. [37]
A situação não é diferente em outros Estados e fica ainda pior nos Estados que adotam as VPIs, como já tratados em capítulo anterior.
É o Código de Processo Penal de 1941, que garante com exclusividade, a prerrogativa policial de conduzir o inquérito policial. Francisco Campos, na Exposição de Motivos do CPP, justifica tal fato tendo em vista a realidade brasileira, e em um de seus argumentos, defende:
O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis. [38]
A forma com que o Código de Processo Penal trata do inquérito policial, apesar de justificada por Francisco Campos, propicia um hiato entre o Ministério Público e o fato delituoso, já que pelo procedimento previsto o Ministério Público não tem como conhecer todos os aspectos do crime e, portanto, saber se a cada ato delituoso corresponde um inquérito policial. Desta forma o trabalho do Ministério Público fica delimitado pela atuação policial.
Se o Ministério Público, para o correto exercício de suas funções, depende da atuação policial, tem-se que a consecução de sua tarefa constitucional de zelar pela ordem jurídica, pelo regime democrático e pelos interesses sociais e individuais, encontra-se "aparentemente ameaçada", tendo em vista a existência de norma que impede a sua real autonomia de agir.
Trata-se apenas de ameaça aparente, pois como bem lembra José Afonso da Silva, "mesmo as regras constitucionais, que devem ser regulamentadas pelo legislador ordinário, possuem eficácia ab-rogativa da legislação precedente com ela incompatível." [39]
É necessário atentar que a realidade atual em nada tem à ver com a realidade de 1941, tanto com relação aos aspectos sociais e culturais que encontram-se mudados, quanto o aspecto legal, tendo em vista que a Constituição vigente à época de promulgação do vigente CPP, era a Constituição de 1937.
Tal Constituição representou um retrocesso frente à Constituição de 1934 X10 no que tange o tratamento do Ministério Público. Na Constituição de 1934 o MP foi tratado no Capítulo IV, Dos Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais, que deliberou sobre as organizações do Ministério Público da União e dos Estados, bem como das garantias e impedimentos dos promotores e procuradores gerais. Na Constituição de 1937 apenas dois artigos regulavam o Ministério Público: um artigo regulava a instituição e o outro definia a competência do julgamento de seus membros.
Atentando à definição tridimensional de direito dado pelo jurista Miguel Reale que defende que "direito é fato, valor e norma" [40], cabe, neste momento o questionamento quanto à real validade, aplicabilidade, eficácia e eficiência da norma do CPP que dita a exclusividade policial na condução do inquérito policial.
O Código de Processo Penal é de 1941, e atualmente todo o ordenamento jurídico brasileiro está sob a égide da Constituição de 1988. Antes de qualquer comentário crítico sobre o assunto, vale lembrar, que entre a promulgação do CPP e a atual Constituição houveram quatro diferentes Constituições – quais sejam, a Constituição de 1937, de 1946, de 1967 e a de 1969.
A Constituição de 1988 quando comparada com as constituições anteriormente citadas, foi a que mais mudanças trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro como um todo, merecendo destaque no entanto ao concernente à atuação do Ministério Público por ser este o ponto de debate deste trabalho.
O artigo 128, § 5º, I, alíneas a, b, c da CF de 1988 deu aos membros do Ministério Público garantias anteriormente exclusivas dos Magistrados. E o artigo 129 e incisos da CF de 1988, determinou as funções institucionais do Ministério Público, assunto também nunca tratado pelas Constituições anteriores. Merecem destaque os seguintes incisos:
Art.129 CF - São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; (sem grifos no original). [41]
O controle da atividade policial pelo Ministério Público tal como previsto pelo artigo 129 da CF de 1988 não encontra precedente em nenhuma das legislações inferiores mais antigas no ordenamento jurídico brasileiro.
Neste contexto e segundo a teoria tridimensional do direito, defendida por Miguel Reale, já citada anteriormente, "impõe-se modernamente, afastar concepções meramente corporativistas, de forte conotação conservadora e que não atendem aos interesses da sociedade como um todo." [42] Com o novo texto constitucional e com legislação futura, tal fiscalização há de ser mais concreta, efetiva e exclusiva.
Como bem descreve Afrânio Silva Jardim [43]:
Com a vigência da Constituição de 1988, o Desembargador-Corregedor do Tribunal do Estado do Rio de Janeiro expediu ato normativo determinando que o Poder Judiciário Estadual não mais recebesse os inquéritos policiais e notitia criminis, que deveriam ser encaminhados diretamente ao Ministério Público como titular exclusivo do controle da atividade polícia judiciária e da ação penal.
[...]
Porém, com a exatidão do mandato do Desembargador-Corregedor, tal ato normativo foi revogado pelo seu sucessor. No entanto, posteriormente, através de uma resolução, com a recondução ao cargo do mencionado Corregedor de Justiça, foi restabelecida a primitiva, sendo esta a disciplina dos inquéritos policiais vigente até os dias de hoje.
Diante desta situação, o Procurador-Geral de Justiça viu-se na contingência de expedir a Resolução nº 438 de 09/04/1991, logo substituída pela Resolução nº 447, em 17/06/1991, alterada pela Resolução nº 487, de 27/02/1992 e pela Resolução nº 495, de 21/05/1992.
As Centrais de Inquérito foram criadas com o intuito de dar apoio administrativo às Promotorias de Investigação Penal (PIP), tinham como função: receber os autos encaminhados pelas Delegacias Policiais, bem como outras peças; proceder o tombamento dos processos e à confecção das respectivas fichas de andamento e controle; encaminhar os processos à Promotoria de Investigação Penal com atribuição para neles funcionar; elaborar mapas de distribuição de processos, para fins informativos e estatísticos; devolver os processos à Delegacia de origem, quando houver determinação de baixa; remeter os processos ao Juízo competente, quando houver sido oferecida denúncia, pedido de arquivamento ou qualquer outra medida que deva ser conhecida e apreciada pelo Poder Judiciário; manter o controle completo do andamento dos inquéritos e processos, em especial quanto à observância dos prazos que devam ser respeitados pelos diversos órgãos e autoridades que neles tiverem de funcionar; fornecer o respaldo administrativo necessário à realização, pelas Promotorias de Investigação Penal, de diligências complementares a inquéritos policiais e peças informativas, as quais sejam necessárias à propositura da ação penal; dar todo apoio administrativo necessário ao bom desempenho das atribuições das Promotorias de Investigação Penal, prestando serviços tais como de datilografia, reprodução de textos, comunicações internas e externas, inclusive serviço de mensageiros; prestar serviços necessários à informatização das suas tarefas; efetuar comunicação aos órgãos competentes relativa à Vara Criminal destinatária dos inquéritos distribuídos com denúncia ou pedido de arquivamento.
As atividades das Centrais de Inquérito são coordenadas por um Promotor ou Procurador de Justiça, para esse fim designado pelo Procurador-Geral de Justiça. Competia ao Coordenador das Centrais de Inquéritos: exercer a coordenação entre as diversas Promotorias de Investigação Penal; promover o entrosamento entre as Promotorias de Investigação Penal, os demais órgãos do Ministério Público e os organismos policiais, civis e militares, inclusive Polícia Técnica, bem como com o Poder Judiciário; colaborar no trabalho das Promotorias de Investigação Penal, proporcionando-lhes os meios cabíveis ao bom exercício de sua função, através de serviços de informática e outros que se fizerem necessários; distribuir a responsabilidade pelos trabalhos administrativos da Central aos funcionários nela lotados; acompanhar o bom desempenho dos trabalhos cometidos a cada funcionário, tomando todas as medidas administrativas para corrigir os eventuais desvios; organizar rotinas administrativas e de serviço, zelando pelo seu cumprimento; estabelecer critérios de substituição de funcionários, no caso de ausências, licenças, férias ou outros impedimentos; apresentar ao Procurador-Geral as solicitações materiais, tecnológicas e de recursos humanos necessários ao bom funcionamento, observadas as disponibilidades orçamentárias; orientar a distribuição dos inquéritos e processos às Promotorias de Investigação Penal, observada a Resolução; estabelecer divisão equânime de trabalho entre os Promotores de Justiça, quando mais de um estiver em exercício numa Promotoria de Investigação Penal ou quando duas ou mais Promotorias de Investigação Penal tiverem idênticas atribuições.
As Promotorias de Investigação Penal tinham atribuição para funcionar em inquéritos policiais e outras peças de informação ainda não distribuídas ao Juízo Criminal, possuíam também as seguintes atribuições: promover ação penal pública; requerer medidas cautelares e opinar nas representações por medidas cautelares, tais como prisão provisória, busca e apreensão e outros; promover diligências e requisitar documentos, certidões e informações de qualquer repartição pública ou órgão federal, estadual ou municipal, da administração direta ou indireta, podendo dirigir-se diretamente a qualquer autoridade; expedir notificações; acompanhar atos investigatórios junto a organismos policiais, dentro da área de suas atribuições; visitar os distritos policiais, respectivas carceragens e demais dependências policiais civis e militares existentes na sua área de atribuições; fiscalizar os prazos na execução das precatórias policiais e promover o que for necessário ao seu cumprimento; fiscalizar o cumprimento dos mandados de prisão, das requisições e demais medidas determinadas pelos órgãos judiciais e do Ministério Público; requisitar abertura de inquérito policial e a prática de quaisquer outros atos investigatórios, bem como promover o retorno de inquérito à autoridade policial, enquanto não oferecida a denúncia, para novas diligências e investigações imprescindíveis ao seu oferecimento; recorrer de decisões judiciais ensejadas por pedidos formulados em procedimentos de sua atribuição.
O aparecimento das Centrais de Inquérito e a criação das Promotorias de Investigação Penal tiveram relação com a tarefa conferida pela Constituição de 1988, ao Ministério Público de controlar a atividade policial. Com o funcionamento desses órgãos, o Ministério Público do Rio de Janeiro poderia exercer o controle policial de acordo com os limites territoriais e de acordo com a especialização policial e, onde não houvesse Promotorias de Investigação Penal, o controle externo seria realizado pelas Promotorias de Justiça.
A criação das Promotorias de Investigação Penal gerou uma série de críticas e os principais argumentos para as suas extinções eram no sentido de que o Ministério Público como órgão acusador, titular da ação penal, ao atuar na fase do inquérito policial agiria com parcialidade, ferindo o equilíbrio entre as partes; e que ao se distribuir os inquérito por temas, tendo em vista, as especializações de cada Promotoria de Investigação Penal estar-se-ia ferindo o princípio do juiz natural.
Várias ações de inconstitucionalidade foram propostas, principalmente pela Associação de Delegados do Rio de Janeiro. Não obstante parecer contrário da Corregedoria Geral da Justiça do Rio de Janeiro, em 1992, no sentido de corroborar com a constitucionalidade das Promotorias de Investigação Penal, em dezembro de 1997 elas deixaram de ter as atribuições previstas nas resoluções. A divisão do Ministério Público em PIPs e em Promotores junto às Varas Criminais passou a ser meramente funcional, interna ao órgão. [44]
Os promotores das PIPs continuaram a opinar sobre os inquérito, mas o distanciamento com relação à atividade policial tornou-se inevitável, uma vez que a comunicação entre o Parquet e a polícia voltou a ser feita nos moldes do Código de Processo Penal. [45]
3.2 Atuação do Ministério Público após a Constituição de 1988 e a Legislação Infraconstitucional.
A atuação do Ministério Público no inquérito policial está legitimada não só pela Carta Magna de 1988, como também por legislação infraconstitucional.
A Lei Federal n.º 8.625/93 confere ao Ministério Público a tarefa de instaurar procedimentos administrativos investigatórios:
Art. 26 - No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:
I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los:
II - requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processo em que oficie;
V - praticar atos administrativos executórios, de caráter preparatório; (sem grifo no original). [46]
O Professor Pedro Roberto Decomain [47] (DECOMAIN, 1995 apud MOREIRA, 2001), Promotor de Justiça em Santa Catarina comentou o inciso V supracitado:
Trata-se de todas as providências preliminares que possam ser necessárias ao subseqüente exercício de uma função institucional qualquer. Providências administrativas de âmbito interno poderão ser de rigor para o melhor exercício de alguma função institucional, em determinadas circunstâncias. Por força deste inciso, está o Ministério Público habilitado a tomá-las. Aliás, nem poderia ser diferente. É claro que a Instituição está apta a realizar todas as atividades administrativas que sejam indispensáveis ao bom desempenho de suas funções institucionais. Tal será uma direta conseqüência do princípio de sua autonomia administrativa, que orienta não apenas o funcionamento global da Instituição, mas também a sua atuação em cada caso concreto que represente exercício de suas funções institucionais.
Continuando a análise da Lei Federal, tem-se no seu art. 27:
Art. 27 - Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito:
I - pelos poderes estaduais e municipais;
II - pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta;
Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências:
I - receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhes sejam próprias e dar-lhes as soluções adequadas;
II - zelar pela celeridade e racionalização dos procedimentos administrativos; (original sem grifo). [48]
A Lei Complementar Estadual 28/82 do Rio de Janeiro em seu artigo 24 define as atribuições do MP:
Art. 24 - São atribuições dos Membros do Ministério Público:
I - promover diligências e requisitar documentos, certidões e informações de qualquer repartição pública ou órgão federal, estadual ou municipal, da administração direta ou indireta, ressalvadas as hipóteses legais de sigilo e de segurança nacional, podendo dirigir-se a qualquer autoridade;
II - expedir notificações;
III - acompanhar atos investigatórios junto a organismos policiais ou administrativos, quando assim considerarem conveniente à apuração de infrações penais, ou se designados pelo Procurador-Geral;
IV - requisitar informações, resguardando o direito de sigilo;
V - assumir a direção de inquéritos policiais, quando designados pelo Procurador-Geral, na hipótese do art. 10, inciso VII.
VI – promover o inquérito civil e a ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, do consumidor, do contribuinte, dos grupos socialmente discriminados e de qualquer outro interesse difuso e coletivo, atuando como fiscal da lei sempre que a ação não for proposta pelo Ministério Público.(original sem grifo). [49]
Tais preceitos presentes nesta Lei Estadual explicita, ainda mais, esta atribuição institucional que aqui procura-se delinear – Controle da Atividade Policial pelo Ministério Público.
Portanto, não se pode conceber, que se diga ser defeso ao Ministério Público a investigação e a coleta de provas para o processo criminal, principalmente levando-se em conta a lição doutrinária amplamente conhecida, segundo a qual o inquérito policial é peça prescindível à instauração da ação penal.
"Costuma-se opor ao entendimento acima o art. 144, § 4ºda CF, que diz caber à Polícia Civil a apuração de infração penal, exceto a de natureza militar, ressalvada, também, a competência da União." [50]
Ocorre que esta atribuição constitucional não é exclusiva da Polícia Civil, sendo esta a melhor interpretação deste dispositivo constitucional.
Não se deve interpretar um dispositivo constitucional isoladamente, mas, ao contrário, deve-se utilizar o processo sistemático, segundo o qual cada preceito é parte integrante de um corpo, analisando todas as regras em conjunto, a fim de que se possa entender o sentido de cada uma delas. [51]
Partindo-se desse pressuposto, conclui-se que Constituição não deu a exclusividade a uma Instituição na apuração de infrações penais; observe-se que um outro artigo da mesma Carta (art. 58, § 3º.), dá poderes à Comissão Parlamentar de Inquérito para investigação própria e, adiante, como já demonstrado, concede a mesma prerrogativa ao Ministério Público.
A esse respeito, manifesta-se Tourinho Filho [52] (TOURINHO FILHO, 1996 apud MOREIRA, 2001):
O parágrafo único do art. 4º. (CPP) deixa entrever que essa competência atribuída à Polícia (investigar crimes) não lhe é exclusiva, nada impedindo que autoridades administrativas outras possam, também, dentro em suas respectivas áreas de atividades, proceder a investigações. As atinentes à fauna e flora normalmente ficam a cargo da Polícia Florestal. Autoridades do setor sanitário podem, em determinados casos, proceder a investigações que têm o mesmo valor e finalidade do inquérito policial.
E não se diga que, sendo parte, não pode o Promotor de Justiça ser considerado autoridade para efeito de instauração de procedimento administrativo, na forma permitida pelo parágrafo único, do art. 4ºdo CPP; tendo em vista que não é o inquérito policial peça imprescindível para a propositura da ação penal.
O Superior Tribunal de Justiça (STF [53], 1992 apud MOREIRA, 2001) assim já se manifestou: "Como procedimento meramente informativo que é, o inquérito policial pode ser dispensado se o titular da ação penal dispuser de elementos suficientes para o oferecimento da denúncia."
O Supremo Tribunal Federal (STF [54], 1992 apud MOREIRA, 2001) também já decidiu:
A inexistência de inquérito policial não impede a denúncia, se a Promotoria dispõe de elementos suficientes para a formulação da demanda penal – Existência, no caso, de indícios suficientes para afastar a alegação de falta de justa causa para a denúncia. Habeas Corpus indeferido.
Especificamente sobre o poder investigatório do Ministério Público, veja-se:
O MP tem legitimidade para proceder a investigações ou prestar tal assessoramento à Fazenda Pública para colher elementos de prova que possam servir de base a denúncia ou ação penal. A CF/88, no art. 144, § 4º., não estabeleceu com relação às Polícias Civis a exclusividade que confere no § 1º., IV, à Polícia Federal para exercer as funções de Polícia Judiciária.(RT [55], 2000 apud MOREIRA, 2001)
Apenas ressalte-se a impossibilidade de que o mesmo Promotor de Justiça (ou os mesmos profissionais ou a mesma equipe) que investigue possa, depois, valorando a prova por ele próprio colhida, oferecer denúncia. Isto não é possível.
[...]
A jurisprudência, nesse sentido, também é encontrada: "Ministério Público. Impedimento de seus órgãos. Nulidade da denúncia. 1) O membro do Ministério Público que atua na fase inquisitorial, apurando pessoalmente os fatos, torna-se impedido para oficiar como promotor da ação penal (inteligência dos arts. 252, I e 258, CPP). Nula, portanto, é a denúncia ofertada, se inobservado esse aspecto."
[...]
Interessante, a título de ilustração, a observação feita por Renê Ariel Dotti: ´(...) forçoso é reconhecer que o sistema adotado em nosso país deixa muito a desejar quanto à eficácia e agilidade das investigações. E o maior obstáculo para alcançar estes objetivos decorre da falta de maior integração não somente das categorias funcionais da Polícia Judiciária e do Ministério Público como também de seus integrantes. Observa-se, lamentavelmente e em muitas circunstâncias, a existência de um processo de rejeição que parece ser genético. [56]