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Mobbing no hospital: quando a vítima é o médico.

A condenação judicial da racionalidade perversa

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02/12/2004 às 00:00
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Sumário: 1. Extrato. 2. Mobbing e racionalidade produtiva na saúde. 3. Terror na sala de cirurgia. 4. A condenação judicial da racionalidade perversa. 5. Construir uma outra racionalidade para o Direito do Trabalho.


1. Extrato

Pregávamos os arremates no livro [Terror Psicológico no Trabalho, LTr, 2003] para uma nova edição, eis que aparece nos jornais italianos o resultado de uma pesquisa, encomendada pelo sindicato dos médicos, cujo resultado demonstra, que nos hospitais da região Veneto, um médico em cada três sofre mobbing. [1] Contemporaneamente, uma sentença do juiz Leonardo Vieira Wandelli da 1ª Vara do Trabalho de Curitiba afronta, de forma inovadora, o fenômeno da "racionalidade perversa" nas relações de trabalho.

Antecipar e compartilhar com o leitor observações acerca de fatos novos que ligam o mal-estar social à "ideologia flexível" faz parte do nosso compromisso de acompanhar o debate que hoje se trava à procura de uma nova racionalidade para o Direito do Trabalho.


2. Mobbing e racionalidade produtiva na saúde

A despeito de ser um fenômeno antigo, o psicoterror no trabalho, na sua modalidade vertical, foi incrementado no processo da reengenharia industrial, nos últimos vinte anos do século passado, e vem sendo largamente empregado como método eficaz para enxugar e "modernizar" empresas. Exemplo disso é que depois da privatização do emprego público nos hospitais do Veneto italiano, são freqüentes os casos de mobbing contra médicos.

A Anaao / Assomed, sindicato que congrega o maior número de pessoas empregadas em hospitais na Itália, acaba de divulgar o resultado de uma ampla pesquisa sobre as condições de trabalho dos médicos nos hospitais do Veneto, região cuja capital é Veneza e onde a taxa de desemprego gira em torno de 2.5%. De acordo com os dados dessa pesquisa, a partir de 1996, isto é, depois da transformação do emprego público em privado, de um total de 7 mil médicos da região, pelo menos 2.100 sofrem vexação dos superiores, retorsão e rebaixamento humilhante das funções, ou seja, de mobbing. Dentre as vítimas golpeadas com maior freqüência, estão os médicos com idade entre 40 e 50 anos e 55% das médicas.

Com um modelo de gestão das unidades de saúde altamente centralizado, assentado na exaltação de dinâmicas interpessoais, aliado aos legítimos anseios de espaço e progresso na carreira profissional, verifica-se, nos últimos tempos, o estiramento dos músculos em lugar do pensamento nas áreas de ponta e vitrine da medicina na Itália. Em primeiro lugar vem a cirúrgia, seguida da oftalmologia, urologia e otorrinolaringologia. Essas áreas são consideradas o filé mignon da medicina e berço de acendrada competição e controle.

Muito embora haja previsão legal para se implantar uma nova organização do trabalho que reconhece aos médicos autonomia técnico-profissional e co-participação no governo clínico, a realidade dos hopitais do Veneto é bem outra. O processo de privatização do emprego público foi montado sobre a velha estrutura verticalizada e nem mesmo o projeto de Departamentos, que abarcaria um número maior de repartições sob uma única coordenação e possibilitaria uma gestão mais democrática, foi concretizado.

Além disso, o sistema de avaliação, introduzido a partir de 1996, centralizado na direção, faz com que os médicos passem a depender inteiramente do médico chefe de uma determinada área ou setor [primario], responsável direto pela avaliação e rendimento da equipe de médicos a ele subordinados. O chefe da equipe, por sua vez, está subordinado ao diretor geral do hospital, que, não raro, também pratica mobbing.

Piero Gonella coordenador dos diretores gerais do Veneto por nove anos, não apenas admite que existe um mal-estar generalizado que provoca a desqualificação profissional, mas numa inconfidência afirma: "contribuímos inconscientemente para o crescimento do mobbing nos hospitais, porque estamos totalmente assoberbados de trabalho, que não conseguimos ver tudo aquilo que acontece em torno. A nossa atenção é focalizada sobre aspectos gerenciais, em particular a emergência financeira, que infelizmente está substituindo o primeiro objetivo da saúde publica, isto é, a saúde das pessoas." [2]

Como se sabe, mobbing é o assédio psicológico e moral contínuo que destrói a auto-estima, a segurança pessoal, o rendimento profissional, as relações interpessoais e familiares, enfim, a vida de quem o sofre. O fenômeno se desencadeia quando o chefe do setor ou departamento se volta contra o médico afirmando: "você, não demonstrou estar à altura" e retira-lhe o encargo, afastando-o para executar terefas mais humildes.

Outra forma conhecida de mobbing se dá no caso [verídico] ressaltado na pesquisa, do cirurgião chefe da equipe de oftalmologistas, que filma com uma telecâmera o seu ajudante quando opera, em teoria para acertar a precisão do movimento e da técnica, na prática, porém, para suscitar ânsia e insegurança no, presumido, rival.

Inúmeros são os casos de médicos repentinamente expulsos da atividade ambulatorial ou de um setor especializado com a única explicação: "ali não serve mais". Para não falar nos médicos que, com a incorporação de empresas ou de repartições, são transformados em "copiões", destinados aos cargos e tarefas de menor prestígio.

Prova de que esse mal-estar difuso é produto da racionalidade econômico-social evidencia-se na escolha das áreas da medicina, reconhecidas na pesquisa da Assomed como alvo do mobbing. Dentre essas, sobressai o departamento de cirurgia. A cirurgia em qualquer hospital é a vitrine na qual as chances de carreira estão ligadas à engrenagem da casuística enfrentada e, claro, à qualidade dos resultados apresentados. A competência dos cirurgiões, naturalmente, é decisiva para a reputação do hospital. O cirurgião, portanto, é, dentre os médicos, aquele que está mais sujeito à lógica da produtividade e por esta razão suporta em maior medida o peso da pressão psicológica.


3. Terror na Sala de Cirurgia

O caso que relatamos, a seguir, envolvendo um cirurgião de um dos maiores hospitais públicos do Veneto, pertencente à USL [Unità sanitaria locale] de Verona, é um dos primeiros a chegar aos Tribunais depois da legilslação introduzida em 1996 e que deu início à privatização do emprego público.

Na Mira do Chefe: não pode mais operar e cai em depressão

Veneza _ A história deste cirurgião é emblemática para se compreender o mobbing no hospital. Para ele o pesadelo toma corpo no início de 2000, quando no departamento da USL de Verona, onde trabalhava, chega um novo cirurgião-chefe. O novo chefe da área de cirurgia não tem simpatia pelo médico, que conta 25 anos de experiência e 22 de sala operatória, e o relacionamento entre os dois é tenso. Até que numa reunião, diante de enfermeiros e médicos, o chefe do setor de cirúrgia denigre alguns cirurgiões, acusando-os de desempenhar mal as funções assinaladas, depois, apontando com o dedo o cirurgião, anuncia: "este doutor, eu o despeço". O médico é acusado de negligente exercício da profissão, porque teria operado um paciente em terapia anticoagulante [situação na qual o sangue não cicatriza], portanto não disponível para a operação. Assim, a vida do paciente teria sido salva pelo cirurgião-chefe, constrangido a reparar o erro do "colega".

De nada valem as palavras da vítima, que assegura jamais ter cometido um erro semelhante. A direção do hospital o afasta da sala de cirúrgia e o transfere para o Pronto Socorro, impondo-lhe ritmo de trabalho massacrante e turnos de noite sempre em sábado e domingo. O brilhante cirurgião é obrigado a fazer o plantão junto com os residentes e tem o salário rebaixado de 4.000 para 2.000 euros, sem receber o adicional pago aos profissionais que trabalham com radiologia. Depois da desorientação inicial, o médico procurou o sindicato, que o encaminhou a um dos seus advogados, contratado especialmente para ajudar na solução de casos de mobbing [3].

O advogado que acompanha esse caso apresentou reclamação trabalhista em 15 de maio de 2000. A audiência aconteceu em maio de 2001, mas nesse ínterim foi realizada uma perícia por uma comissão de médicos da Universidade de Padova, escolhidos paritariamente pelas partes, cujo resultado revela o excelente exercício profissional do cirurgião e desmente o erro maldosamente a ele atribuído pelo chefe. Por força de uma decisão cautelar, a Unidade de Saúde está aceitando pagar a diferença salarial. A USL está, porém, protelando a reintegração da vítima no cargo porque a mesma se encontra em tratamento para cura de depressão, gagueira e outras disfunções correlatas.

A Anaoo/Assomed possui um Observatório Nacional sobre Mobbing. Os casos, todavia, revelados através da pesquisa multimencionada são apenas a ponta do iceberg, porque, como se sabe, o mobbing é um fenômeno submerso e raramente denunciado pela vítima inconsciente ou temerosa das ulteriores repercussões.

Diferente de outras categorias, o médico, por força do liame que se estabelece com o paciente, tende a suportar o mobbing sem se refugiar no absenteísmo. Além disso, a consciência dos enormes obstáculos para transpor com segurança os muros dos tribunais e receber uma prestação jurisdicional a tempo de recuperar o prestígio e a posição perdida, para muitos, é mais uma razão para desistir.


4. A condenação judicial à racionalidade perversa

O mobbing nas relações de trabalho é a situação limite a que chegou a racionalidade produtiva, mas outras violações dos direitos fundamentais dos trabalhadores são praticadas cotidianamente nas unidades de produção, e, diante do conformismo das vítimas, ficam banalizadas, [quase] coonestando essa absurda "normalidade". A complexidade do mundo post moderno, seguramente, exige um juiz especial, menos técnico e mais científico. Daí o significado ímpar de decisões judiciais, que, bafejadas por um "esprit de finesse", não apenas revelam o caráter perverso dessa racionalidade, mas apontam na direção de uma outra racionalidade. A sentença do juiz Leonardo Vieira Wandelli, aqui transcrita em parte, pode ser vista como um exemplo nessa direção.

TERMO DE AUDIÊNCIA

AUTOR: RAIMUNDO SOARES DOS SANTOS

RÉ: GERALDO J. COAN CIA. LTDA

PROC.: : 12.142/03

DATA :18.06.04

HORÁRIO :17:52

JUIZ DO TRABALHO: LEONARDO VIEIRA WANDELLI [4]

Apregoadas as partes para a audiência de leitura e publicação da presente, ausentes, profere o Juízo a seguinte

S E N T E N Ç A

Vistos, etc.

I - RELATÓRIO: RAIMUNDO SOARES DOS SANTOS propõe ação trabalhista em face de GERALDO J. COAN CIA. LTDA postulando as verbas elencadas às fls. 09/11, basicamente equiparação salarial, acúmulo de funções, integração de salário in natura, adicional de insalubridade, horas extras, indenização por danos morais, multas convencionais e consectários. Dá à causa o valor de R$ 10.000,00. Junta os documentos de fls. 13/21 e 70/77.

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A ré oferece contestação escrita na audiência designada, propugnando pela total improcedência dos pedidos da exordial, individualmente contestados. Juntam, além dos relativos à representação, os documentos de fls. 40/65. Réplica às fls. 67/69.

(...). Colhe-se o depoimento das partes e de uma testemunha trazida pelo autor. Encerrada a instrução processual, as razões finais são remissivas. Julgamento designado para esta data.

É o relatório. Decide-se.

II – FUNDAMENTOS

(...)

E– Indenização por dano pessoal

Alega o autor que, diante da ciência do falecimento de seu pai, solicitou a dispensa do trabalho, o que foi negado pela gerente, Vanilza Ferreira, que determinou que retornasse ao trabalho, violando não só o disposto no art. 473 da CLT, mas sua honra e dignidade, humilhando-o em situação de extrema fragilidade e ferindo a sua auto-estima e lhe propiciando elevado sentimento de angústia e frustração.

A defesa alega apenas que o autor compareceu espontaneamente para trabalhar e que não exerceu o direito porque não o quis, não havendo interferência da gerência da unidade.

A prova produzida, entretanto, desmente a alegação defensória. Conforme explicita o autor em seu depoimento, "quando do falecimento de seu pai, recebeu a notícia por telefone na empresa e comunicou à gerente da unidade, Vanilza, que disse que o depoente não poderia se ausentar porque estava com o número reduzido de empregados". Já o preposto da ré apresenta versão diametralmente oposta àquela da defesa, aduzindo que "o autor comunicou o falecimento de seu pai à supervisora Vesselina; o autor recebeu licença em razão do falecimento, não se recorda a data".

Ou seja, ao passo que a defesa reconhece que o autor não teve a licença legal em razão do falecimento, o preposto reconhece que o autor a solicitou, tanto que afirma que a mesma foi usufruída. Entretanto, do atestado de óbito de fl. 14 se constata que o pai do autor (indicado na ficha de fl. 40) faleceu em 28.07.02, às 12h, dia em que o autor realizou extenuante jornada das 6h às 22h (fl. 46), em Salvador-BA, sendo sepultado às 9h do dia 29.07.02, no cemitério de Açu da Torre, havendo o autor trabalhado normalmente, assim como nos dias subseqüentes, donde resulta provado que, embora o autor tenha comunicado o falecimento de seu pai, não lhe foi autorizado afastar-se do trabalho.

Essa situação é corroborada pelo depoimento da testemunha, que afirma que "soube por comentários que o pai do autor havia falecido e que havia pedido licença mas que não foi dispensado; neste dia o depoente não estava trabalhando no mesmo turno do autor".

Registra-se que, embora, por lapso, não tenha constado da ata, foi referido em audiência que o pai do autor era residente na Bahia, o que é comprovado pelo atestado de fl. 14. Esse dado é relevante para se dimensionar a extensão do dano provocado pela ré ao negar o afastamento do autor, pois ficou ele impedido de comparecer ao enterro do pai.

Desde logo, é evidente a grave e odiosa ofensa moral que a conduta ilegal da ré produz. Não só o extremo desrespeito com a condição pessoal do trabalhador, afetado pela perda do ente querido, mas por ter-lhe tirado, de modo brutal, a possibilidade de algo que marca, atávica e imemorialmente a própria espécie humana em todas as culturas e credos: o ritual de homenagem fúnebre. Trata-se de algo que transcende a própria noção de tradição. Os rituais fúnebres humanos são anteriores mesmo à noção de divindade e nenhuma cultura jamais ousou desprezar a sua importância. A morte, dizem os filósofos, é o limite e condição de possibilidade de todo o sentido humano. Disse Epicuro: "Quando nós estamos, a morte não está". Mas a participação nos rituais fúnebres expressa o sentido de continuidade da vida humana, da vida dos que seguem e se igualam diante da morte. Esse direito de participação nos cultos familiares, em especial nos rituais fúnebres e de culto aos antepassados – e não o nascimento – foi, por muitos milênios, o que definia a condição de membro da coletividade familiar, inclusive o direito à herança.

Exemplo histórico que dimensiona o sentido do que, aqui, se trata, está no relato mítico de Antígona. Na versão eternizada por Sófocles, Antígona prefere aceitar a pena de morte imposta por Creonte, a deixar de prestar as honras fúnebres ao irmão Polinices, invocando, na célebre passagem, as leis transcendentes a todo ato humano, "cuja vigência não é de hoje, nem de ontem, senão de sempre, e ninguém sabe quando foi que apareceram".

Raimundo, o autor, foi obstado de participar do funeral de seu pai, porque a empresa estava com número reduzido de empregados ou por alguma outra conveniência imediata da organização. Vanilza, a gerente, certamente não se deu conta da brutalidade da negativa. É provável que, como gerente dedicada e eficiente, tenha considerado apenas a dificuldade que a ausência do cozinheiro traria para a produção naqueles dias.

É impressionante como a racionalização da produção capitalista, ou seja, a instrumentalização de tudo e todos em prol da eficiência ótima da atividade empresarial, leva pessoas normais a agirem malignamente, mesmo por motivos banais. Foi o que ocorreu na situação dos autos, em que Raimundo foi impedido de prestar as homenagens fúnebres a seu pai, Durval Gonçalves dos Santos, e obrigado a seguir trabalhando em jornada de 16h de duração, até às 22h desse dia de luto. Não se trata de imputar à gerente Vanilza a inteira responsabilidade pela ignomínia, mas de perceber como a organização do trabalho pode levar a práticas que devoram as características éticas mais fundamentais da condição humana.

A lógica do capital como valor que se valoriza incessantemente, tende ao descontrole e destrói progressivamente as próprias fontes de produção de valor: a natureza e os seres humanos. Na produção, essa lógica pode se expressar em estruturas organizacionais que não só produzem sofrimento nas pessoas que trabalham, acabam por funcionalizar o sofrimento à produção, incorporando-o às estratégias organizacionais.

Estruturas organizacionais impessoais têm grande poder (e responsabilidade) na produção e reprodução de práticas que levam pessoas de bem a se comportarem de maneira maligna. Essa origem alheia à estrutura da personalidade dos agentes, que foi objeto de reflexão quanto ao engajamento de pessoas de bem na colaboração com o nazismo [Veja-se Hannah ARENDT, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo, Diagrama & Texto, 1983], e que volta a ser percebida nas atrocidades cometidas recentemente contra prisioneiros no Iraque,[Veja-se CALLIGARIS, Contardo. Os "tarados" de Abu Ghraib, in Jornal Folha de São Paulo, 27.05.04], se faz presente em condutas empresariais que parecem fatos isolados mas que ocultam sua origem sistemática.

A psicodinâmica do trabalho estudou de perto as relações entre o trabalho e o sofrimento e mostra como a banalização da violência e do sofrimento no trabalho, como estratégia organizacional, se alimenta da luta cotidiana dos sujeitos em conseguir conviver com práticas nefastas, até o ponto de, como estratégia de defesa contra a insanidade mental, perceber tais práticas como normais, consentir com elas e reproduzi-las. Veja-se a observação do psiquiatra francês Christophe Dejours, em revelador estudo a respeito:

As motivações subjetivas do consentimento (isto é, derivadas do sujeito psíquico) têm aqui um papel que considero decisivo, se não determinante. Pelo menos é isso que mostram as pesquisas sobre o sofrimento no trabalho de que falaremos mais adiante. É por intermédio do sofrimento no trabalho que se forma o consentimento para participar do sistema. E quando funciona, o sistema gera, por sua vez, um sofrimento crescente entre os que trabalham. (...)

A normalidade é interpretada como o resultado de uma composição entre o sofrimento e a luta (individual e coletiva) contra o sofrimento no trabalho. Portanto, a normalidade não implica ausência de sofrimento, muito pelo contrário. Pode-se propor um conceito de ‘normalidade sofrente’, sendo pois a normalidade não o efeito passivo de um condicionamento social, de algum conformismo ou de uma ‘normalização’ pejorativa e desprezível, obtida pela ‘interiorização’ da dominação social, e sim o resultado alcançado na dura luta contra a desestabilização psíquica provocada pelas pressões do trabalho DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. 3ª ed., São Paulo, FGV, 2000, p. 17 e 36.]

Essa luta contra a desestabilização emocional decorrente o sofrimento experimentado pessoalmente e do sofrimento ético vivenciado quando se impinge um sofrimento injusto a outrem, funciona como uma armadilha que leva à insensibilização e tolerância para com as causas do sofrimento, gerando mais violência e sofrimento.

A manipulação da ameaça como estratégia gerencial que se utiliza do medo e do sofrimento no ambiente de trabalho é, como descreveu Dejours, um dos mais perversos e freqüentes instrumentos na administração de empresas de alta competitividade. É espantoso como, em nossa sociedade, o vício é convertido em virtude e a capacidade gerencial é tanto mais valorizada quanto maior for a disponibilidade em ameaçar, exigir mais e mais esforço sem limites, em submeter os operadores a qualquer custo, inclusive com a manipulação do medo e do sofrimento. "Mede-se exatamente a virilidade pela violência que se é capaz de cometer contra outrem, especialmente contra os que são dominados (...) abster-se dessas práticas é prova de fraqueza, de covardia, de baixeza, de falta de solidariedade". [Idem, ibidem, p. 81-82.]

Na situação dos autos, chama a atenção a extrema instrumentalização da pessoa do autor que, em face de alguma conveniência imediata da produção, teve negado o direito ao luto pelo falecimento do pai, mantido no trabalho por 16 horas naquele dia, tendo negada a possibilidade de participar do seu sepultamento.Se, à diferença de Antígona, que exerceu sua liberdade diante da morte, o autor resignou-se de alguma forma à determinação da gerente, isso não é sinal de menor dor, mas de mais profunda deterioração da condição humana pela racionalização produtivista sem limites: a perda da percepção da própria liberdade. Somos todos iguais diante da morte, mas Raimundo não teve direito ao luto pelo falecimento de seu pai, Durval Gonçalves dos Santos, porque a gerente considerou mais importante seguir à diante a roda da produção.Do ponto de vista do direito, em um sistema que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho e da livre iniciativa (CF, art. 1º, III e IV), sendo objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I), é curial que tal espécie de prática deve ser coibida, não se admitindo que a atividade econômica se sobreponha a tais valores e objetivos fundamentais (CF, art. 170).

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, assegura a reparação da ofensa ao patrimônio moral da pessoa:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

evidentemente, também o empregador, que responde pelos atos de seus prepostos (art. 1521 do CCB de 1916 e 932, III, do CCB de 2002), está obrigado a respeitar a inviolabilidade moral do empregado. Como leciona Délio Maranhão "as obrigações acessórias do empregador, e que estão previstas na lei, se referem, de um modo geral à prevenção dos danos que o empregado possa sofrer tanto física como moralmente pela execução do trabalho; à assistência e indenização quando tais danos ocorrerem;(...)" (grifei). "E, acima de tudo," continua o Mestre, "tem o empregador a obrigação de respeitar a personalidade moral do empregado na sua dignidade absoluta de pessoa humana". [MARANHÃO, Délio. Instituições de Direito do Trabalho. Rio, Freitas Bastos, 1981, p. 229.].

Na lição de Pinho Pedreira, em tudo aplicável à situação, "enquanto nas contratações privadas se acham normalmente em jogo valores econômicos e como exceção podem ser afetados bens pessoais dos contratantes, geralmente de forma indireta, no contrato de trabalho o trabalhador, pela situação de dependência pessoal em que se encontra, arrisca permanentemente seus bens pessoais mais valiosos (vida, integridade física, honra, dignidade, etc)." [In: LTr, 55-55-553, maio/91].

Neste ponto, o processo judicial se qualifica como útil instrumento de elaboração que permite reverter a "normalização" da injustiça, contribuindo para resgatar os sentidos de humanidade devorados pela racionalização.

Considerando-se a condição econômica da ré, que se deduz de seu capital social e a elevada magnitude do menoscabo sofrido pelo autor, violando sua dignidade, honra e auto-estima, tem-se por adequado o montante reparatório postulado na inicial, que não é excessivo, inclusive para que possa, além de amenizar a dor sofrida, viajar algumas vezes, querendo, para a cidade onde se encontra sepultado seu pai e prestar-lhe as homenagens que entender devidas.Defere-se ao autor indenização por dano moral no importe equivalente a 100 salários mínimos nesta data, atualizáveis desde então.

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Sobre a autora
Márcia Novaes Guedes

juíza do trabalho na Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEDES, Márcia Novaes. Mobbing no hospital: quando a vítima é o médico.: A condenação judicial da racionalidade perversa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 513, 2 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5999. Acesso em: 19 abr. 2024.

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