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Teto de retribuição pecuniária e direito adquirido:

uma abordagem acerca da Emenda Constitucional nº 41/2003

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06/12/2004 às 00:00
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O presente trabalho afirma a impossibilidade, na ordem constitucional brasileira, de se proceder a qualquer redução das retribuições pecuniárias dos agentes públicos, se estas (retribuições) tiverem se incorporado ao seu (dos agentes) patrimônio jurídico e estiverem de acordo com os limites impostos pela Constituição originária.

RESUMO

O presente trabalho afirma a impossibilidade, na ordem constitucional brasileira, de se proceder a qualquer redução das retribuições pecuniárias dos agentes públicos, se estas (retribuições) tiverem se incorporado ao seu (dos agentes) patrimônio jurídico e estiverem de acordo com os limites impostos pela Constituição originária. Diferencia os poderes constituinte e reformador, ressaltando que somente o primeiro é inicial, soberano e incondicionado e que cada um tem um titular diverso. Conceitua direito adquirido, analisando suas características e relacionando-o com o princípio da irretroatividade das leis. Expõe que a garantia do direito adquirido é cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988, devendo ser respeitada inclusive por emenda constitucional. Após trabalhar os conceitos de agentes públicos e retribuição pecuniária, analisa os termos do teto de retribuição posto na Constituição originária e elucida o verdadeiro significado normativo do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Discorre sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal referente à questão do teto de retribuição pecuniária, frisando a peculiar situação das vantagens pecuniárias de caráter individual ou relativas à natureza ou ao local de trabalho e suas conseqüências quanto à configuração de direito adquirido. Fala sobre a não-auto-aplicabilidade do art. 29 da Emenda Constitucional nº 19/98. A partir da constatação de que há direito adquirido contra as emendas constitucionais, conclui pela inconstitucionalidade do art. 9º da Emenda Constitucional nº 41/2003. Antes, no entanto, refuta os argumentos de que o interesse público e o princípio da razoabilidade poderiam justificar a redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos. Afasta também, por intermédio do princípio da proporcionalidade, o conflito entre a moralidade e a segurança jurídica.

Palavras-chave: Emenda Constitucional. Direito adquirido. Poder constituinte. Poder Reformador. Cláusula pétrea. Teto de retribuição pecuniária. Agentes públicos. Vantagem pessoal. Segurança jurídica. Moralidade. Proporcionalidade. Declaração de inconstitucionalidade.


INTRODUÇÃO

Às vezes, na vida de uma nação, medidas são tomadas pelos governantes (e aqui se entenda não só os do Poder Executivo), gerando calorosos aplausos por grande parte do povo. São as raras ocasiões em que se alcança uma quase-unanimidade. No entanto, algumas dessas providências, intencionalmente ou não, acabam por trazer consigo o germe de nefastas conseqüências que só mais tarde são verificadas.

O presente estudo analisará uma dessas medidas que são largamente aplaudidas pelo senso-comum (e também por alguns juristas), mas que parecem possuir um potencial de destruição incalculável. Está-se a tratar da redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos, medida claramente visada pela norma insculpida no art. 9º da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003.

Essa Emenda, seguindo os passos já trilhados pela Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, incluiu, no seu art. 9º, norma que permitiria a redução nominal das retribuições pecuniárias percebidas pelos agentes públicos em desacordo com o novo teto estabelecido na própria Emenda. Ocorre que, em inúmeros casos, essas retribuições estavam de acordo com o teto estabelecido na Constituição Federal, tanto na sua redação originária quanto na redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98, tendo em vista, principalmente, interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal, máxime no tocante às vantagens pecuniárias de caráter pessoal e as relativas à natureza e ao local de trabalho. O presente estudo questionará a possibilidade de a Emenda Constitucional nº 41/2003, ao reduzir o teto de retribuição dantes posto, incidir sobre parte do patrimônio jurídico dos agentes públicos, ferindo seu direito adquirido, sob a justificativa de adequar as situações concretas às novas normas constitucionais.

No primeiro capítulo, far-se-á uma apuração da possibilidade ou não de uma emenda constitucional ferir direito adquirido. Para isso, analisar-se-ão as características dos poderes constituinte e reformador, declinar-se-á o conceito de direito adquirido e se observará como funciona, no que se refere à emenda constitucional, a cláusula que garante a intocabilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julga (art. 5º, inciso XXXVI, CF).

No segundo capítulo, perquirir-se-á se se configura algum direito adquirido em favor dos agentes públicos no tocante ao teto de retribuição pecuniária. Após delimitar os conteúdos das expressões agentes públicos e retribuição pecuniária, será necessário, então, fazer uma retrospectiva da legislação, analisando-se os limites de retribuição pecuniária postos na Constituição originária e o verdadeiro significado normativo do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. E tal análise não dispensará, por imprescindível, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito do assunto.

No terceiro capítulo, abordar-se-á a situação trazida pela Emenda Constitucional nº 41/2003, tanto o novo teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos (art. 37, inciso XI, CF) quanto seu art. 9º, que traz a referência à aludida redução. Não sem antes, todavia, tecer observações sobre o conflito entre os princípios da moralidade e da segurança jurídica, conflito esse cuja solução passa, inexoravelmente, pelo princípio da proporcionalidade.

Enfim, as páginas que se lerão daqui por diante podem (ou não) se encaminhar para uma conclusão que muitos receberiam a contragosto, que certamente não contaria com o aplauso da grande maioria do povo. É preciso salientar, no entanto, seja qual for o resultado do presente trabalho, que aquilo que mais motivou a pesquisa do tema foi a intenção de propugnar pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão.


CAPÍTULO I

EMENDA CONSTITUCIONAL E DIREITO ADQUIRIDO

1.1.PODER CONSTITUINTE E PODER REFORMADOR

Ao discorrer sobre emenda constitucional, imperiosa se faz a prévia abordagem sobre os poderes constituinte e reformador. Enquanto a Constituição originária é obra do primeiro, a emenda constitucional (assim como a revisão [1]) é fruto do segundo. Dessa forma, para se fazer qualquer análise jurídica acerca da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, é preciso, antes de tudo, conhecer as características e limitações do poder de onde emanou.

1.1.1.Características do poder constituinte e do poder reformador

A melhor forma para se delinear com acuidade as características do poder reformador é esclarecer o que caracteriza o poder constituinte. Isso se dá porque os poderes constituinte e reformador são essencialmente distintos. Tal distinção é tão acentuada que se pode dizer incorreta a própria denominação de poder constituinte derivado que a doutrina confere ao poder reformador.

A expressão poder constituinte derivado é uma contradição em si mesma. Ou o poder é constituinte ou é derivado. Isso ocorre porque uma característica essencial do poder constituinte é a inicialidade.

O poder constituinte é aquele que inaugura o Estado e estrutura suas bases. No dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho [2], ele (o poder constituinte) é inicial porque não se funda em nenhum outro poder, mas, muito pelo contrário, é dele que derivam os demais poderes. Daí surge a constatação de que só há um único poder verdadeiramente constituinte, não passando os demais (aqui incluído o poder reformador) de simples poderes constituídos.

Essa característica de inicialidade levou Jorge Reinaldo Vanossi a considerar no próprio conceito de poder constituinte a idéia de separação de poderes. Para ele,

"[...] Era óbvio que não podia haver uma distribuição do Poder sem a pressuposição da existência de um poder superior, que praticasse essa distribuição, isto é: para poder falar de diversos poderes, das diversas funções do poder que estavam repartidas e distribuídas, havia-se que supor a existência prévia, lógica e cronologicamente falando, de um poder supremo que realizasse essa repartição, que levasse a cabo essa distribuição; [...]" [3] [grifo nosso]

Assim, o que se verifica é a distinção entre, de um lado, o poder constituinte e, de outro, os poderes constituídos. Cabe ao primeiro, no momento inicial de fundar o Estado, fazer a distribuição dos poderes estatais entre seus vários órgãos. Questiona-se, então: o poder de reforma constitucional (poder do qual emanou a Emenda Constitucional nº 41/2003) pode alterar a distribuição das funções estatais entre os demais Poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário)?

A resposta que se impõe parece ser a negativa. Isso porque somente o poder constituinte "[...] não se acha coordenado com outros poderes divididos (Legislativo, Executivo, Judiciário), mas serve de fundamento a todos os poderes constituídos [...]". [4] O poder reformador, pelo contrário, está ao lado dos demais poderes do Estado [5], o que realça sua natureza constituída e não constituinte. Aliás, uma característica do poder constituinte (que, portanto, não está presente no poder reformador) apontada por Carlos Ayres Britto é a solidão. Esse autor, ao comparar o poder constituinte a Deus, assim assevera: "[...] Se Deus pudesse criar um segundo Deus, à completa imagem e semelhança Dele, primitivo Deus, o que impediria o novo Deus ‘onipotente’ de refundir, ou até mesmo descriar o Primeiro?" [6]

Assim, é inconcebível a existência de dois poderes constituintes, um originário e outro derivado. Até porque aquilo que se chama de poder constituinte derivado não possui uma outra característica indispensável ao poder constituinte: a ilimitabilidade ou soberania. [7] Enquanto o poder constituinte não encontra limites na sua tarefa de criar o Direito, o poder reformador é, pelo menos na tradição constitucional brasileira, exercido dentro de severas (e necessárias) limitações.

Abra-se um parêntese aqui para refutar a opinião de certos autores, a exemplo de Canotilho, para quem o poder constituinte não é tão ilimitado assim. Segundo esse autor, o poder constituinte obedece a padrões de conduta espirituais, culturais, éticos, está adstrito a princípios de justiça e vinculado a princípios de Direito Internacional. [8]

Quanto ao Direito Internacional, este apenas passará a vincular, independentemente do consentimento, o Direito interno dos Estados quando o poder constituinte se transferir do povo enquanto nação para o povo enquanto humanidade. Mesmo nessa hipótese, o poder constituinte não perderá seu caráter soberano, apenas o titular da soberania é que terá mudado. Quanto aos padrões de conduta espirituais, culturais, éticos e quanto aos princípios de justiça, estes, na verdade, não limitam o poder constituinte, mas são forças que compõem o próprio poder. Assim, se é que se pode falar em limites, eles são autolimites. E todo poder que se autolimita, autodeslimita-se a qualquer momento, não perdendo o caráter soberano. Assim afirma Constantino Mortati:

"[...] a constituição, enquanto ato ou fato jurídico, não pode ser expressão de um poder sujeito a limites. Tais limites, permanecendo internos às próprias forças de que ela emana, colocam-se como autolimites enquanto os limites que circunscrevem as manifestações do poder de revisão são heterolimites, limites que derivam de uma vontade diversa e supra-ordenada àquela que opera dentro do seu âmbito." [9] [grifo nosso]

Portanto, o poder constituinte é soberano, ilimitado. O mesmo não se pode falar do poder reformador, que está adstrito a limitações impostas pelo próprio poder constituinte. Há tanto limites implícitos [10] quanto explícitos. Os primeiros consistem em princípios que, mesmo não positivados, uma vez descumpridos, implicam a ruptura da ordem constitucional (é o chamado espírito da Constituição). Já os limites explícitos estão contidos, de forma expressa, na Constituição. São eles de ordem temporal, circunstancial, formal e material (sobre os limites explícitos ao poder reformador na Constituição de 1988, ver item 1.1.3, infra).

Destarte, o poder reformador, ao dar ensejo a uma emenda constitucional, deve, obrigatoriamente, observar os limites que o poder constituinte (único poder verdadeiramente soberano) lhe impôs. Uma vez ultrapassados esses limites, cabe ao Poder Judiciário (e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica nesse sentido [11]), por intermédio do controle de constitucionalidade, restabelecer a supremacia da Constituição. E aqui se apresenta mais uma distinção entre o poder constituinte e o poder reformador. A Constituição originária, obra do primeiro, não pode ser objeto de controle de constitucionalidade, enquanto a norma constitucional veiculada por emenda (ou revisão) pode. [12]

Uma outra característica do poder constituinte e que o diferencia, de forma clara, do poder reformador é sua incondicionalidade. O poder constituinte não está subordinado a qualquer procedimento preestabelecido para sua manifestação. Ninguém dita ao poder constituinte como, quando e onde se manifestar. [13] Já o poder reformador só se expressa de acordo com o procedimento previsto na Constituição (são os limites formais que adiante se verão).

Por fim, saliente-se ainda o caráter estritamente político (e não jurídico) do poder constituinte. [14] Ao contrário do poder reformador, que só existe porque está previsto e regulado pela Constituição, o poder constituinte antecede a qualquer norma de Direito e se constitui no único momento político-normativo que vai da sociedade para o Estado. No dizer de Carlos Ayres Britto, o poder constituinte não se exaure na obra que edita (permanência), sobrevivendo do lado de fora e podendo fazer quantas Constituições quiser. [15]

1.1.2. Permanência e titularidade do poder constituinte

A característica do poder constituinte que acabou de se afirmar, ou seja, aquela de que ele não se exaure na obra que edita (permanência), fez com que surgisse, ignorando todas as diferenças entre os poderes constituinte e reformador, o pensamento de que o poder constituinte engloba tanto a possibilidade de fazer quanto a de alterar a Constituição (quem pode o mais pode o menos). Por esse raciocínio, o poder reformador é, na verdade, uma extensão do próprio poder constituinte (e, nesse caso, a Emenda Constitucional nº 41/2003 seria resultado do exercício de um poder constituinte). Tal pensamento parece não ser o mais condizente com a realidade.

O poder de reformar a Constituição não pode ser o mesmo poder que a inicialmente elabora porque seus titulares são diversos (além, claro, de todas as diferenças acima apontadas). [16] Enquanto o poder constituinte (poder de elaborar a Constituição) pertence, numa visão democrática, ao povo-nação, o poder reformador (poder de reformar a Constituição) tem como titular o povo-população. [17] Explique-se.

Povo-nação nada mais é do que o povo considerado como uma unidade política soberana. É o que Sieyès chama simplesmente de nação e que Carlos Ayres Britto denomina sociedade política. [18] Já o povo-população consiste no conjunto de indivíduos (considerados individualmente) que habitam um território em certo momento [19]. Na definição de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, povo-nação

"[...] Designa o povo como unidade política com capacidade de realizar e com a consciência de sua singularidade política e vontade de existência política: por outro lado, o povo, enquanto não existir como nação, não passará de mera associação de homens unidos com alguma forma de coincidência étnica ou cultural, mas não necessariamente política." [20]

Há, portanto, uma "[...] diferença qualitativa entre o contingente humano que se faz matriz de um poder constituinte e esse mesmo contingente que se faz o berço de um poder apenas constituído." [21] Sabendo-se que os elementos constitutivos de um Estado são o povo, o território e a soberania, pode-se muito bem afirmar que o povo, enquanto conjunto de indivíduos que habitam um certo território num dado momento (povo-população), só detém capacidade de constituir um Estado no momento em que adquire soberania. É, destarte, essa soberania que faz com que surja o poder constituinte, que nada mais é do que o poder de estabelecer uma Constituição organizadora das bases do Estado.

Por isso parece ser equivocada a idéia de que o poder constituinte está com o povo-população (conjunto de pessoas). Ora, se o poder constituinte estivesse com cada pessoa individualmente, bastaria haver uma população (conjunto de pessoas) e um território para se formar um Estado. E não é assim que acontece. É necessário que esse povo adquira uma unidade, uma objetividade que o transforme em nação.

No momento em que o povo-população se transforma em povo-nação (realidade objetiva e intertemporal) é que surge a soberania e, por conseguinte, a capacidade de fundar um Estado (poder constituinte). E só surge a soberania quando o povo-nação não encontrar mais limites, nem internos nem externos, para sua afirmação (daí a ilimitabilidade do poder constituinte).

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E é exatamente nesse ponto que se apresenta a grande importância da diferenciação entre os titulares dos poderes constituinte e reformador. Se ao mesmo povo titular do poder reformador (povo-população) fosse também creditado o poder constituinte, ter-se-ia que aceitar a reforma indiscriminada da Constituição, pois quem pode criar pode modificar como bem entender. A se aceitar que o poder de reformar a Constituição é, na verdade, uma extensão permanente do poder constituinte, ter-se-ia que admitir também sua ilimitabilidade. Ter-se-ia que considerar (como, de fato, alguns já consideram) que as limitações materiais ao poder reformador não passam de simples moções.

Como se procurou demonstrar, o caráter permanente do poder constituinte, ou seja, o fato de ele não se esgotar na obra que produz, não implica dizer que essa permanência se dê através do poder reformador. Este não é a continuação no tempo daquele. O poder constituinte é permanente, mas fica em estado de latência, aguardando o momento em que o povo-nação (seu único titular) resolva destruir a ordem constitucional anterior, fundando uma nova. O poder reformador, por sua vez, é um poder constituído como os demais poderes do Estado e, como toda criatura, não pode se rebelar contra o criador. Assim assevera Carlos Ayres Britto, ao enfatizar a natureza constituída (e limitada) do poder reformador:

"Que paradoxo então se apresentaria aos olhos incrédulos do estudioso dos fenômenos político-jurídicos! A Constituição originária criaria um poder cuja função seria a de reformá-la para que ela não perdesse a atualidade e assim atualizada pudesse inibir o surgimento de um poder de fato que a retirasse do mundo dos vivos, e como sairia aparelhado esse poder de reforma? Sairia aparelhado com a energia assassina de poder se assumir, a todo instante, como aquele preciso poder de fato que a Constituição quis evitar... para não ser morta." [22]

Outra importante conseqüência da diferenciação entre os titulares dos poderes constituinte e reformador é a superação do que Canotilho chama de paradoxo da democracia. [23] Segundo esse autor, o paradoxo se apresenta na dúvida de como um poder pode estabelecer limites às gerações futuras, de como pode aprisioná-las. O constitucionalismo se revelaria de uma antidemocraticidade básica ao impor cadeias para o futuro?

A superação desse paradoxo, que, na verdade, é aparente, dá-se através do reconhecimento de que o poder constituinte tem como titular o povo-nação e não o povo-população, este detentor apenas do poder reformador (e dos demais poderes constituídos do Estado). Assim, quando o poder constituinte estabelece limites intransponíveis à reforma constitucional, não há aprisionamento de um povo-população futuro (conjunto de indivíduos que habitam um território) por um povo-população presente. Isso ocorre porque quem elabora a Constituição não é o povo-população de um determinado momento histórico, mas sim o povo-nação, que encarna os valores consolidados durante várias gerações (caráter intertemporal do poder constituinte).

O poder constituinte não está à disposição dos indivíduos enquanto indivíduos, mas existe em função do interesse da comunidade como um todo e em sua permanência estável no tempo. Os interesses circunstanciais do povo-população não podem se contrapor aos interesses duradouros do povo-nação. [24] A rigidez constitucional, caracterizada, entre outros aspectos, pela previsão de cláusulas pétreas, não é, portanto, uma forma autoritária de impor a vontade de uma geração sobre outra.

1.1.3. As limitações explícitas ao poder reformador na Constituição de 1988

Restando claro que a Emenda Constitucional nº 41/2003 (assim como toda emenda ou revisão constitucional) adveio do exercício do poder reformador (e não de uma espécie de poder constituinte), um poder constituído e limitado, implícita e explicitamente, pela Constituição Federal de 1988, mister se faz agora conhecer quais esses limites explícitos. [25] Assim está redigido o art. 60 da Constituição Federal:

"Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II – do Presidente da República;

III – de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros;

§ 1º. A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

§ 2º. A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º. A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico;

III – a separação dos Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais.

§ 5º. A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa." [grifo nosso]

Conforme se asseverou no item 1.1.1, as limitações explícitas ao poder reformador são de ordem temporal, circunstancial, formal e material. As limitações temporais, que não estão presentes na atual Carta Constitucional brasileira, são aquelas que estabelecem um prazo dentro do qual a Constituição não poderá ser reformada. As de ordem circunstancial prevêem situações excepcionais que, uma vez constatadas e até seu término, obstam a emenda à Constituição (art. 60, § 1º). Já os limites formais são aquelas regras que estabelecem um procedimento dificultoso para a elaboração das emendas. São prescrições a respeito da iniciativa, do quorum de votação e da necessidade de mais de uma sessão (art. 60, incisos I, II e III e seus §§ 2º e 5º).

As limitações materiais consistem na proibição de deliberação de proposta de emenda tendente a abolir alguns dos postulados fundamentais da Constituição (art. 60, § 4º). Os limites materiais dizem respeito ao próprio conteúdo das emendas e visam a proteger certos princípios sem os quais haveria uma ruptura da ordem constitucional vigente. Assim, as decisões políticas fundamentais do poder constituinte são postas fora do alcance dos poderes constituídos.

Dentre esses postulados fundamentais da Constituição de 1988 estão os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV). São eles a mais clara expressão do verdadeiro caráter democrático da atual Constituição Federal, pois representam, acima de tudo, uma proteção do indivíduo contra o exercício arbitrário do poder estatal. E uma das mais importantes garantias dos cidadãos está consubstanciada no art. 5º, inciso XXXVI: a garantia do direito adquirido.

1.2. CONCEITO DE DIREITO ADQUIRIDO

Mas o que vem a ser direito adquirido? São palavras de Ovídio Bernardi:

"[...] Todos nós sabemos o que seja direito adquirido. Qualquer homem de relativa sensatez jurídica sabe o que ele seja. Mas, na hora de defini-lo, os obstáculos se apresentam. O direito adquirido é um instituto de direito natural, está na ordem das coisas, e, por isso, todo homem pode compreendê-lo, diante das circunstâncias concretas. Mas porque ele pode desdobrar-se numa série infinita de casos, como a superfície cromática de um prisma, é que se torna refratário a qualquer conceituação jurídica ou técnica." [26]

O direito adquirido surge, primeiramente, como instituto jurídico de Direito privado. No Direito brasileiro, somente a partir da Constituição de 1934 ele aparece como princípio constitucional. Antes disso, as Constituições brasileiras só tratavam da irretroatividade das leis.

Aliás, o direito adquirido nasceu como um princípio-reflexo do postulado da irretroatividade das leis. Explique-se logo que não se está a dizer que direito adquirido é o mesmo que irretroatividade das leis. Conforme sintetiza Raul Machado Horta [27], no Direito Constitucional brasileiro podem ser destacados dois períodos na evolução do direito adquirido: no primeiro, a irretroatividade está localizada na Constituição e o direito adquirido não passava de um princípio-reflexo dessa irretroatividade; posteriormente, o direito adquirido passou a ser previsto em norma infraconstitucional para, já no segundo período, adentrar as Constituições, "[...] absorvendo nele a irretroatividade da lei, que deixou de figurar no enunciado da Constituição, por sua absorção na regra do direito adquirido". [28]

É, na verdade, o que ocorre hoje. Enquanto o princípio da irretroatividade das leis consubstancia uma garantia de imutabilidade dos efeitos passados dos fatos (ou atos) pretéritos, o direito adquirido consiste em uma garantia dos efeitos futuros dos fatos (ou atos) passados. O espectro de proteção é, portanto, infinitamente maior. Diz-se que, atualmente, o postulado do direito adquirido absorve o da irretroatividade das leis porque, por consectário lógico, não se garantiria a imutabilidade dos efeitos futuros de certo fato (ou ato) sem que estivessem igualmente protegidos os efeitos já consumados.

Isso se dá porque tanto o princípio da irretroatividade das leis quanto o do direito adquirido são límpidas expressões do princípio da segurança jurídica. Este está enunciado no art. 5º, caput, da Constituição Federal e se constitui num dos pilares indispensáveis a qualquer ordenamento jurídico, pois visa a conferir certeza e estabilidade às relações jurídicas. [29] Que estabilidade se alcançaria ao, de um lado, garantir a imutabilidade dos efeitos futuros de um fato (ou ato), se, por outro lado, não se tem certeza nem quanto ao passado?

E foi nessa transformação qualitativa de mera proteção contra a retroatividade das leis a ampla garantia de perpetuidade dos direitos já incorporados ao patrimônio jurídico dos cidadãos que o princípio do direito adquirido se libertou da esfera privada e adentrou também no ramo público do Direito. E essa sua estréia no Direito público se deu logo da forma mais eminente possível, pois passou a constituir um princípio constitucional fundamental.

Destarte, como garantia constitucional que é, o conceito de direito adquirido não pode advir de outro lugar senão da própria Constituição. Como assevera Canotilho, o Direito Constitucional "[...] é um direito que gravita sobre si mesmo, apelando para as suas próprias forças e garantias, de forma a assegurar as condições de realização e execução das suas normas [...]." [30] Conquanto o art. 6º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil [31] forneça uma base para se chegar à delimitação do que seja direito adquirido, somente a Constituição poderá delimitar o seu conteúdo, já que o alcance de uma garantia constitucional não pode ficar à mercê do legislador ordinário (nem do reformador), sob pena de amesquinhamento da própria garantia. São palavras de Paulo Modesto:

"[...] Se o conceito de direito adquirido constituísse matéria de caráter ordinário, a garantia constitucional do direito adquirido estaria de modo indireto à disposição do legislador, subordinada aos seus humores, esvaziada enquanto norma de proteção individual. Além disso, teríamos de admitir o paradoxo de um limite ao legislador depender da atuação do próprio legislador." [32]

Talvez ciente do que se afirmou acima, ou seja, de que o direito adquirido é refratário a qualquer conceituação jurídica ou técnica, a Constituição Federal de 1988 não traz qualquer conceito de direito adquirido. Embora a Constituição se omita (omissão, frise-se, de excelente técnica legislativa), certas características, uma vez presentes no caso concreto, indicam a configuração do direito adquirido. [33]

A primeira delas é a existência de um fato (ou ato) aquisitivo, idôneo a produzir direito. Embora esteja certo Limongi França quanto à possibilidade de uma lei, por si só, independentemente de qualquer fato ou ato jurídico, conferir um direito, o direito adquirido surge, com muito mais freqüência, a partir da realização de um certo fato ou ato jurídico. Assim, por exemplo, o direito adquirido à incorporação de certa gratificação salarial pode surgir pelo desempenho de uma função durante determinado tempo. Similarmente, o direito adquirido à percepção de proventos emana do preenchimento dos requisitos para a aposentadoria. Num e noutro casos, houve um fato ou ato que deu ensejo ao direito, que, então, diz-se adquirido.

Mas é necessário que esse fato (ou ato) seja idôneo a produzir direito, ou seja, é imprescindível que ele seja realizado em conformidade com a lei vigente à época de sua realização. A norma abstrata, ao mesmo tempo em que declara o direito, traz em seu bojo todos os requisitos para sua concessão. Para que o fato (ou ato) seja idôneo, deve ele revestir todos os requisitos dantes postos na lei (ou na própria Constituição). Assim, uma vez respeitada a legislação então em vigor, pode-se falar em direito adquirido.

Não basta, no entanto, a existência de um fato (ou ato) aquisitivo e a vigência de uma lei à época da realização desse fato. Uma característica imprescindível para a configuração do direito adquirido é que tenha esse direito se incorporado ao patrimônio jurídico (que pode ser material ou moral) do seu titular. É, entre outras razões, por causa disso que um agente público, por exemplo, não tem direito adquirido a regime jurídico, pois sempre é deferido ao Estado redefinir os termos dentro dos quais atuará, o que impede que qualquer regramento favorável a um dado agente público se incorpore a seu patrimônio. Situação diferente se verifica quanto à percepção de sua retribuição pecuniária, pois esta, tendo a função precípua de garantir a sobrevivência digna do agente público e de sua família, não pode ser retirada (nem minorada) pelo Poder Público. [34]

Por fim, para se falar que um certo direito é adquirido, não pode esse direito já se ter exercido em todos os seus efeitos, exaurindo-se. Nesse caso, estar-se-ia a tratar não de um mero direito adquirido, mas de um direito já consumado.

Enfim, mesmo sabendo dos inconvenientes que toda conceituação sempre traz, forçoso é reconhecer que é bastante satisfatório o conceito de Limongi França, para quem direito adquirido "[...] é a conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto." [35] [grifo do autor]

O importante é que se deixe claro que o direito adquirido, qualquer que seja o conceito adotado, será sempre uma das mais alvissareiras manifestações do princípio constitucional da segurança jurídica. Por intermédio da garantia do direito adquirido, o poder constituinte visou a proteger a esfera patrimonial e moral dos cidadãos contra as ilegalidades dos outros particulares e, principalmente, contra os abusos de poder por parte do Estado. Afinal, nenhuma sociedade civilizada pode sobreviver sem que seus cidadãos tenham o passado definitivamente sepultado (irretroatividade das leis) e o futuro minimamente garantido (direito adquirido).

1.3. O DIREITO ADQUIRIDO COMO CLÁUSULA PÉTREA

A garantia do direito adquirido está consubstanciada no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, que assevera que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Assim, uma vez preenchidos todos os requisitos exigidos pela lei então em vigor (ou diretamente pela Constituição) e tendo se incorporado ao patrimônio jurídico de seu titular, o direito se qualifica como adquirido e não pode mais ser tocado por lei posterior. Esse é o postulado inscrito no art. 5º, XXXVI, da Constituição de 1988 e que reflete o princípio da segurança jurídica.

Dúvidas não há de que é vedado à lei ordinária (bem como à complementar e delegada), ao irromper no ordenamento jurídico, prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Tal conclusão decorre da própria literalidade do texto constitucional e da supremacia da Constituição sobre a lei. Assim, toda norma infraconstitucional que contrarie o direito adquirido estará desrespeitando a Constituição e será, portanto, inconstitucional.

Também pacífica é a assertiva de que não há direito adquirido contra a Constituição originária. Como já visto nos itens precedentes, a Constituição originária é o produto acabado do exercício do poder constituinte, um poder inicial, soberano e incondicionado. Nada (além dele mesmo [36]) impõe limites a sua capacidade normante.

O poder constituinte é, ao mesmo tempo, desconstituinte. Ele não tem o compromisso de preservar nenhuma norma anterior, bem como seus efeitos concretos. Daí que os direitos adquiridos com base numa ordem constitucional pretérita não constituem óbice para a Constituição nova, que pode, simplesmente, repudiá-los.

A única controvérsia que surge a esse respeito é se precisa ser expressa ou não a Constituição originária ao revogar situações jurídicas já estabilizadas. Carlos Ayres Britto defende que sim, que a Constituição originária precisa ser expressa para atingir tanto os efeitos já exauridos da norma anterior quanto aqueles que ainda estejam a fluir (como os direitos adquiridos, por exemplo). [37]

Não parece ser essa a melhor solução. Quanto aos efeitos que estão sendo produzidos continuamente (a exemplo de proventos de aposentadoria), basta, para acabar com os efeitos concretos, que a nova norma geral (Constituição originária) seja incompatível com aquela norma geral anterior que deu ensejo ao direito. Se a própria Constituição originária, de forma clara e inequívoca, retira validade da norma geral anterior, de onde os efeitos concretos estarão partindo? Em outras palavras, sendo a norma constitucional (originária) posterior totalmente incompatível com a norma anterior que gerou o direito adquirido, extingue-se o direito. E para se operar essa extinção não precisa ser expressa a Constituição. [38] Quanto aos efeitos já produzidos à exaustão, aí sim seria necessário que a Constituição expressamente dissesse que lhes atingiria. [39]

A questão que suscita maiores debates e cuja resposta, particularmente, será de imensa importância para o encaminhamento das análises subseqüentes, é se há ou não direito adquirido contra as emendas constitucionais. Em outras palavras, a dúvida consiste na possibilidade ou não de o poder reformador desconstituir direitos já incorporados ao patrimônio jurídico dos cidadãos (direitos adquiridos).

1.3.1. A emenda constitucional como fruto do poder reformador

Diga-se, logo de início, que há sim direito adquirido contra as emendas constitucionais. Estas não podem, desrespeitando a garantia insculpida no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição de 1988, atingir as relações jurídicas já estabilizadas sob a forma de direito adquirido. A garantia do direito adquirido (como o próprio direito adquirido, conforme se esclarecerá adiante) constitui uma cláusula pétrea, barreira intransponível para a emenda constitucional.

E a primeira razão para essa afirmativa, qual seja, a de que há direito adquirido contra a emenda constitucional, está na própria natureza do poder de que emana a emenda. Conforme já se teve a oportunidade de frisar, a emenda constitucional é fruto do poder reformador [40], um poder essencialmente constituído. O poder de emendar a Constituição é derivado, limitado e condicionado pelo poder constituinte.

Um desses limites é exatamente a intangibilidade do direito adquirido. O poder constituinte, através de sua obra, a Constituição originária, deixou expressa a garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, numa reverência clara ao princípio da segurança jurídica. Mais que isso, o poder constituinte apôs o carimbo de cláusula pétrea a esses institutos, colocando-os ao largo, inclusive, da sanha reformadora. Assim assevera Cármen Lúcia Antunes Rocha:

"[...] o que se adquire na vigência de uma norma constitucional não pode ser desconstituído por ação do elaborador normativo constituído, como é, dentre outros, o reformador constituinte. Não se pode desconstituir o quanto já integrado ao patrimônio jurídico de uma pessoa, porque assim determinado pela Constituição da República, no capítulo dos direitos fundamentais e que é ali definido como limite material inexpugnável à ação do órgão competente a promover as alterações que lhe venham a ser necessárias [...]." [41]

1.3.2. O direito adquirido e sua garantia

Ocorre que, visando a permitir que uma emenda constitucional revogue os direitos já incorporados ao patrimônio jurídico dos cidadãos e reduza a cinzas o princípio da segurança jurídica elencado no art. 5º, caput, da Constituição Federal, fez-se uma diferenciação entre o direito adquirido e a norma de sua garantia. A partir dessa premissa, concluiu-se que cláusula pétrea é somente a garantia, não o próprio direito.

Paulo Modesto, ao destacar que a garantia do direito adquirido "trata-se de garantia que opera no plano dos efeitos jurídicos, no plano concreto das relações jurídicas, não no plano lógico abstrato das normas jurídicas [...]" [42], diferencia o direito adquirido da garantia do direito adquirido. Fala que o primeiro é uma situação individual concreta que se apresenta de inúmeras formas e em inúmeros casos enquanto a segunda é uma norma geral abstrata contemplada na Constituição Federal. Para ele, somente a norma geral abstrata consubstanciadora da garantia do direito adquirido pertenceria ao rol das cláusulas pétreas, pois estas "[...] dizem respeito a normas que constam da Constituição e não a situações jurídicas concretas titularizadas pelo Poder Público ou por particulares. [...]" [43]

É certo que direito adquirido não é o mesmo que garantia do direito adquirido. Como afirma José Afonso da Silva, "[...] os direitos são bens e vantagens conferidos pela norma, enquanto as garantias são meios destinados a fazer valer esses direitos, são instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo daqueles bens e vantagens." [44] Já a conclusão de que somente a garantia (e não o direito) constitui cláusula pétrea parece ter sido equivocada.

E por uma razão simples: uma garantia só é digna do nome se assegurar (garantir) a efetiva fruição do direito. Uma garantia constitucional, ao mesmo tempo em que protege o direito, confere ao indivíduo os meios para a efetiva consecução do direito garantido (do contrário não se chamaria garantia). Afirma Carlos Sánchez Viamonte que "[...] garantia é a instituição criada em favor do indivíduo, para que, armado com ela, possa ter ao seu alcance imediato o meio de fazer efetivo qualquer dos direitos individuais que constituem em conjunto a liberdade civil e política." [45]

Se o indivíduo não tem como fazer efetivo seu direito adquirido frente a uma emenda constitucional, claro está que essa emenda lhe retirou a própria garantia imposta pelo poder constituinte. Se uma garantia só tem razão de ser se confere um meio eficaz para que o indivíduo usufrua um direito, ao retirar esse direito, a emenda constitucional esvazia a garantia.

É possível pensar na existência de uma garantia sem qualquer direito a garantir? Se se pode falar em supressão da garantia com manutenção do direito, o mesmo não ocorre quando há supressão do direito. Ferindo-se o direito, fere-se a garantia.

Uma emenda constitucional que venha a retirar da norma geral abstrata da Constituição o poder de assegurar o efetivo respeito do direito adquirido estará a suprimir uma garantia. Se a emenda constitucional pudesse ferir o direito adquirido (situação concreta), a própria norma abstrata da garantia restaria prejudicada. Que função teria uma norma que garante o direito adquirido se este pode ser retirado a qualquer tempo?

É exatamente por isso que também o direito adquirido (situação individual concreta) se constitui numa cláusula pétrea, inalcançável até mesmo pelo poder reformador. A Constituição Federal, em seu art. 60, § 4º, inciso IV, veda a deliberação de emenda que vise a abolir os direitos e garantias individuais ou que simplesmente tenda à abolição. Assim, não só a supressão da norma geral abstrata enunciada no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, como também a tentativa de dessubstancialização da garantia através do ferimento ao direito, ultrapassa o limite material imposto pelo poder constituinte. É como bem afirma Carlos Ayres Britto:

"Em diferentes palavras, ao proibir a discussão de emenda tendente a abolir as cláusulas pétreas, a Lei Maior desta Terra de Santa Cruz preveniu-se contra a mutilação indireta dos valores jurídicos subtraídos à ação reformista do Congresso Nacional, vedou o artifício de ‘se comer por dentro’ ou de se ‘roer as entranhas’ de tais valores, inaceitando fórmula legislativa de relativização daquilo que somente é idêntico a si mesmo na medida em que absolutamente intocado (e relativização só pode significar toda medida legislativa de tocabilidade nos elementos conceituais de cada cláusula pétrea, dispersos pelo assoalho da Constituição) [...]." [46]

Quando a Constituição fala que não será deliberada proposta de emenda que tenda a abolir a garantia do direito adquirido, ela quer dizer que a garantia deve permanecer com toda a força que lhe conferiu. Não é proibido à emenda constitucional apenas abolir a norma abstrata da garantia, retirando da Constituição o art. 5º, inciso XXXVI. É vedado também retirar da garantia parcela de sua força, força esta que foi dada para garantir um direito.

A inconstitucionalidade se escancara ao se perceber que revogar direitos adquiridos significa retirar o próprio núcleo da garantia, deixando apenas uma casca que nenhuma valia tem. E para que serviria a garantia do direito adquirido se ela nada garantiria, já que o poder reformador estaria autorizado a ignorá-la? Onde estaria o respeito à segurança jurídica, núcleo basilar do princípio do direito adquirido?

É forçoso notar que o princípio do direito adquirido existe no ordenamento jurídico brasileiro para cumprir um papel de estabilizador das relações jurídicas. Assim, uma vez cumpridos os requisitos exigidos pela lei ou pela própria Constituição, a perpetuidade dos efeitos futuros dos fatos passados se impõe. Da mesma forma, foi visando à plenitude do princípio da segurança das relações jurídicas que o poder constituinte erigiu o direito adquirido ao posto de garantia constitucional individual fundamental, cláusula pétrea, portanto.

Não teria sentido o poder constituinte estabelecer a garantia dos direitos adquiridos, em homenagem ao princípio da segurança jurídica e visando, principalmente, a proteger a esfera patrimonial dos indivíduos contra os abusos de poder do Estado, se esses direitos pudessem ficar ao talante do próprio Estado (frise-se que é um órgão do Estado – o Congresso Nacional – o responsável por elaborar as emendas constitucionais). Estar-se-ia diante da absurda situação de uma garantia de fachada, de uma norma "para inglês ver". E não se concebe tão inusitada peculiaridade num verdadeiro Estado Democrático de Direito.

1.3.3. O significado da palavra "lei" no art. 5º, inciso XXXVI da Constituição

Mais uma tentativa de burlar o princípio da segurança jurídica e relativizar a garantia do direito adquirido se vê através da interpretação equivocada que se conferiu ao art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal. Segundo tal exegese, esse dispositivo constitucional, ao se referir expressamente à lei ("A lei não prejudicará.. ."), exclui a emenda constitucional da vedação imposta. Assim, o art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal seria um mandamento a vincular o legislador ordinário, não o reformador.

Carlos Ayres Britto e Valmir Pontes Filho [47] afirmam que existe uma razão lógica para não se ter falado em emenda constitucional. Citam esses juristas outros dispositivos constitucionais em que a referência é feita apenas à lei (art. 5º, incisos XXXV, XXXIX e XL, da Constituição). E aí questionam: por que a referência apenas à lei e não à emenda constitucional em matéria penal e processual? Resposta: porque foi para a lei que a Constituição reservou a regulação da matéria (art. 22, I, CF).

Da mesma forma, seguem Carlos Ayres Britto e Valmir Pontes Filho, foi para a lei que a Constituição remeteu a tarefa de criar direitos subjetivos. É a lei e não a emenda constitucional o veículo normativo ordinário de inovação da ordem jurídica. A emenda constitucional é (ou pelo menos deveria ser) episódica e se caracteriza não pela indicação das matérias que lhe são reservadas, mas pela indicação das matérias que lhe são proibidas. [48] Se a Constituição se referisse à emenda constitucional como veículo normativo ordinário, estaria a admitir que ela mesma (Constituição) já nasceu capenga, pois poderia ter desde logo regulado o que reservou à emenda. [49]

Caso emblemático é o do art. 5º, inciso II, da Lei Fundamental brasileira: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei." Quer dizer, então, que a emenda constitucional não pode obrigar, positiva ou negativamente, alguém? Claro que não significa isso. O silêncio da Constituição foi porque ela, em nenhum momento, se referiu às emendas como veículo de concessão de direitos ou imposição de deveres. E também porque não fez da emenda um instrumento usual de regulação jurídica. [50]

Destarte, o fato de o art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição não se referir expressamente à emenda constitucional não conduz à interpretação de que ela pode ferir direito adquirido. A garantia do direito adquirido, como tantas vezes já frisado, é uma clara manifestação do princípio da segurança jurídica. E esse princípio se impõe tanto ao legislador ordinário quanto ao reformador.

1.3.4. Teses e antíteses a respeito da petrealidade do direito adquirido

Ao se sustentar que os direitos adquiridos (situações concretas e individuais) não são cláusula pétrea, costumam-se apontar, ainda, alguns argumentos em desfavor do entendimento contrário. O primeiro deles seria o de que, ao se considerar imutáveis os direitos adquiridos, o legislador ordinário estaria autorizado a criar inúmeras cláusulas pétreas, tornando, de forma indireta, completamente inútil a delimitação do art. 60, § 4º, da Constituição. Paulo Modesto [51] afirma que as cláusulas pétreas se referem a normas constitucionais e não a atos inferiores.

Ocorre que as várias situações individuais e concretas caracterizadas como direito adquirido se petrealizam não porque a lei de que emanou o direito se tornou cláusula pétrea, mas sim porque o próprio direito adquirido está inserido na norma de sua garantia (vide item 1.3.2, supra). Esclarece Carlos Ayres Britto:

"O que fica intocável, portanto, é aquela dimensão da norma geral que passou, em caráter definitivo, de pedaço de vida humana objetivada a pedaço de vida humana subjetivada. O que se protege, então, já não é a norma geral, mas determinados titulares do direito por ela ensejado. [...]" [52] [grifo do autor]

Dessa forma, só existe, na verdade, uma norma geral abstrata com a cláusula de intangibilidade: é o art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição. Agora essa norma é lata o suficiente para abrigar todos os chamados pelo precitado autor pedaços de vida humana subjetivada. Saliente-se, mais uma vez, que essa é a única forma de se garantir a efetividade do princípio da segurança jurídica.

Outro argumento contra a petrealidade do direito adquirido é o de que se criaria um imobilismo exacerbado no ordenamento jurídico. Imobilismo nenhum existe, já que aquilo que se torna imutável não é a norma abstrata que deu ensejo ao direito. Ela continua ao alcance do legislador, pois o direito individual é que se pereniza. O ordenamento jurídico, portanto, não perde sua dinamicidade.

Costuma-se argüir também que a Constituição, como texto político, pode ampliar ou limitar situações individuais, pois suas normas representam a intenção da coletividade. Argumenta-se que quem pode fazer nova Constituição (e já ficou assentado que não há direito adquirido contra a Constituição originária) pode também modificá-la para atingir direitos adquiridos (quem pode o mais pode o menos). Do contrário, escravizar-se-iam as futuras gerações.

Aqui é de se lembrar o já estatuído no item 1.1.2, onde se procurou mostrar a diferença entre os titulares dos poderes constituinte e reformador. O primeiro pertence ao povo-nação e o segundo, ao povo-população. É incorreta, portanto, a assertiva de que o mesmo povo que pode modificar a Constituição pode criar uma nova. A garantia dos direitos adquiridos representa a vontade do povo-nação (realidade objetiva e intertemporal), não estando à disposição dos interesses episódicos do povo-população (indivíduos de uma determinada geração). Daí porque também não há qualquer escravização de uma geração futura por outra passada. [53]

Cogita-se, por fim, a tese de que, ao se petrealizar os direitos adquiridos (situações individuais concretas), fomentar-se-ia a ruptura constitucional. E a descontinuidade formal é uma pá de cal no princípio da segurança jurídica. Por esse raciocínio, não seria inaceitável (seria até louvável mesmo) uma interpretação restritiva das cláusulas pétreas para que as mudanças constitucionais pudessem ocorrer sem ruptura da ordem constitucional.

Ora, é uma solução às avessas. Em vez de se evitar a descontinuidade formal dando amplo alcance ao princípio fundamental da segurança jurídica e exercendo o atento controle de constitucionalidade das emendas, prefere-se evitar tal descontinuidade através da diminuição da esfera de proteção do próprio princípio fundamental da segurança jurídica. Esse último pensamento traria como conseqüência nefasta a mesma que uma descontinuidade formal traria: amesquinhamento da segurança jurídica.

O verdadeiro argumento, mas não contra a petrealidade do direito adquirido e sim a seu favor, é que estaria aberta a possibilidade de se desrespeitar também o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. O dispositivo constitucional é o mesmo e os fundamentos também. [54] Pelo raciocínio de autores como, por exemplo, Paulo Modesto, as várias decisões judiciais transitadas em julgado também não seriam cláusulas pétreas, mas apenas a norma geral abstrata (como se a norma, sozinha, representasse alguma garantia). E "cesteiro que faz um cesto faz um cento".

1.3.5. Considerações finais

É preciso que fique claro que uma coisa é a norma constitucional contida na Constituição originária e outra bastante diferente é aquela introduzida por emenda à Constituição. A norma constitucional originária pode desconstituir tanto os efeitos passados de fatos pretéritos (neste caso tem que estar expresso), quanto os direitos adquiridos cujo exercício se dá através de uma relação de trato sucessivo (neste caso, basta a norma constitucional retirar, de forma clara e inequívoca, a validade da norma geral abstrata anterior que serviu de fonte para a aquisição do direito). Já a norma constitucional introduzida no ordenamento jurídico por emenda à Constituição não pode nem uma coisa nem outra. Isso se dá, essencialmente, porque o poder reformador [55] está cerceado por limites de toda ordem, entre eles a intangibilidade da garantia do direito adquirido, que não é (nem pode ser) uma norma abstrata vazia.

Assim, na esteira do pensamento de Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira, "[...] inexiste invocação de direito adquirido contra a Constituição Federal, só que não se pode alterar a Constituição naquilo que afrontar o direito adquirido." [56] E tal conclusão parece ser a única a respeitar o princípio supremo da segurança jurídica, pois sem o mínimo de estabilidade nas relações jurídicas nenhuma sociedade se mantém organizada. São palavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha:

"[...] Afirmar que o direito adquirido, tal como a coisa julgada, pode ser infirmado pela ação do constituinte reformador significaria mais ainda: que o direito no Brasil não teria o fundamento que justifica a sua observância em toda a história da humanidade, qual seja, o de ser o elemento que dá segurança ao indivíduo, para que ele viva numa sociedade política com a convicção do seu presente e a projeção do seu futuro [...]." [57]

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Sobre o autor
Júlio de Melo Ribeiro

bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Júlio Melo. Teto de retribuição pecuniária e direito adquirido:: uma abordagem acerca da Emenda Constitucional nº 41/2003. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 517, 6 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6017. Acesso em: 23 abr. 2024.

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