CAPÍTULO II
CONFIGURAÇÃO DO DIREITO ADQUIRIDO EM FACE DO TETO DE RETRIBUIÇÃO PECUNIÁRIA DOS AGENTES PÚBLICOS
2.1. A DELIMITAÇÃO DE ALGUNS CONCEITOS
Após enunciar, em linhas gerais, as características identificadoras do direito adquirido e demonstrar que uma emenda constitucional, porquanto decorrente de um poder limitado (poder reformador), não pode desconstituir os direitos já integrados ao patrimônio jurídico dos cidadãos, tendo em vista o freio imposto pela garantia insculpida no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, introduzir-se-á o debate acerca do teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos. Essa questão tem ocupado o legislador desde a promulgação da atual Carta Política, com constantes alterações supervenientes de índole constitucional. Analisar-se-á a posição dos agentes públicos frente a esse cambiante tema, especialmente no que diz respeito à configuração (e respectiva proteção) de direitos adquiridos.
É necessário, no entanto, para se alcançar um maior rigor técnico e evitar possíveis dúvidas quanto à extensão das situações adiante analisadas, delimitar os contornos jurídicos das expressões agentes públicos e retribuição pecuniária. Tais conceitos se mostrarão importantes ao especificar quem se submete ao teto e quais espécies estipendiais estarão nele incluídas. Em outras palavras, visa a conferir um conteúdo concreto à expressão extremamente genérica teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos.
2.1.1. Agentes públicos
Conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, a expressão agentes públicos "[...] é a mais ampla que se pode conceber para designar genérica e indistintamente os sujeitos que servem ao Poder Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação, ainda quando o façam apenas ocasional ou episodicamente." [58] Em outras palavras, agente público é todo aquele que exerce uma função pública, esteja ela contida ou não no plexo de competências de um cargo ou emprego. Quanto a essa conceituação, é quase unânime a doutrina brasileira. [59]
O dissenso ocorre na hora de subdividir o grande grupo formado pelos agentes públicos. Cada autor tem sua classificação e, mesmo na hipótese de subdivisões semelhantes, pode acontecer que um mesmo subgrupo (os agentes políticos, por exemplo) tenha extensões diversas, a depender do autor.
Muito longe de querer esgotar o tema (até porque se trata de um tópico meramente auxiliar à discussão central), podem-se classificar os agentes públicos em: a) agentes políticos; b) servidores públicos em sentido amplo, compreendendo os servidores ocupantes de cargo (servidores públicos em sentido estrito) [60], servidores ocupantes de emprego (empregados públicos) e servidores contratados por tempo determinado (art. 37, IX, CF); c) agentes honoríficos e d) agentes delegados.
Os agentes políticos, como assevera Hely Lopes Meirelles, "[...] são os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou delegação para o exercício de atribuições constitucionais [...]." [61] São aqueles que ditam os rumos do Estado, pois integram seu (do Estado) núcleo de estrutura de poder: o Presidente da República e seus Ministros, os Governadores de Estado, os Prefeitos e seus respectivos Secretários, os Deputados Federais e Estaduais, os Senadores, os Vereadores, os Magistrados, os membros do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. [62] São (ou melhor, deveriam ser) remunerados exclusivamente por subsídio (arts. 39, § 4º, 128, inciso I, alínea "c", 73, § 3º e 75, todos da Constituição Federal).
Os servidores públicos em sentido amplo compreendem todas as pessoas físicas ligadas ao Poder Público através de um vínculo profissional. Podem elas ser titulares de cargo público, mantendo-se um vínculo estatutário (servidores públicos em sentido estrito), ocupantes de emprego público (empregados públicos) ou contratados por tempo determinado, regendo-se estes dois últimos pelas normas da Consolidação das Leis do Trabalho. Incluem tanto os agentes da Administração direta quanto os da indireta (neste último caso, há apenas empregados públicos). Recebem remuneração [63] por seu trabalho diretamente dos cofres da Administração Pública (direta ou indireta).
Os agentes honoríficos são aqueles designados, nomeados ou requisitados para o exercício de funções públicas relevantes. Não são titulares de cargos ou empregos, mas, por exercerem função pública, podem, eventualmente, ser remunerados pelo Estado. São os jurados, os mesários eleitorais, os comissários de menores, os membros de comissão de estudo, etc.
Por fim, são agentes delegados aquelas pessoas que prestam serviços públicos por delegação do Estado. Compreendem os empregados das empresas permissionárias e concessionárias de serviço público, os empregados dos serviços notariais, entre outros. Não são remunerados diretamente pelo Estado, mas sim pela pessoa (natural ou jurídica) privada a que estão subordinados.
Após essa rápida classificação e sem prejuízo de outras existentes, o importante é destacar que se submetem ao teto de retribuição pecuniária previsto no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal todos os agentes públicos que percebem retribuição pecuniária [64] diretamente dos cofres de uma pessoa estatal (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), suas autarquias e fundações. As empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias que receberem recursos de alguma das pessoas estatais para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral também terão seus empregados submetidos ao referido teto (art. 37, § 9º, CF).
Assim, como se pode depreender diretamente da norma constitucional insculpida no art. 37, inciso XI, todos os agentes políticos ("[...] membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos [...]"), todos os servidores públicos em sentido amplo ("ocupantes de cargos, [...] e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional [...]") e todos aqueles que, como alguns agentes honoríficos, exercerem função pública remunerada ("ocupantes de [...] funções [...] da administração direta, autárquica e fundacional [...]") estão submetidos ao teto constitucional de retribuição pecuniária. Os agentes delegados, por não serem remunerados diretamente pelo Estado, não estão sujeitos ao limite constitucional.
2.1.2. Retribuição pecuniária
Da mesma forma que agente público é o termo genérico utilizado para designar todas as pessoas físicas que prestam serviço para o Estado, retribuição pecuniária corresponde a toda contraprestação em dinheiro paga pelo Estado ao agente público (ou a alguém por este), seja em razão da prestação atual ou passada de um trabalho ou para fazer face a despesas contraídas pelo agente público no exercício de sua função. A retribuição pecuniária é o gênero de que são espécies o subsídio, a remuneração, os proventos, as pensões e as indenizações. As quatro primeiras constituem espécies remuneratórias e a última, espécie indenizatória. [65]
O subsídio, em sua formatação atual, foi incluído na Constituição Federal de 1988 através da Emenda Constitucional nº 19/98. Consiste ele em parcela única, "[...] vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória [...]" (o que indica a compatibilidade com as espécies indenizatórias), paga aos agentes políticos (art. 39, § 4º, CF) e a alguns servidores públicos (arts. 39, § 8º, 135 e 144, § 9º, todos da Constituição Federal). Inobstante a vedação taxativa da Constituição Federal, o subsídio, em respeito ao princípio da harmonia das normas constitucionais, deve se compatibilizar com os direitos previstos no próprio texto constitucional, a exemplo dos conferidos pelo art. 39, § 3º.
A remuneração é espécie de retribuição pecuniária, de caráter remuneratório (como o próprio nome indica), paga aos agentes públicos em atividade que não são remunerados através de subsídio. É a forma mais comum de contraprestação pecuniária do Estado ao trabalho do agente público. Pode-se afirmar que o sistema de remuneração se constitui de três círculos concêntricos. O menor deles é o chamado vencimento ou vencimento básico; o intermediário consiste nos vencimentos; e o maior constitui a remuneração.
O vencimento ou vencimento básico é a retribuição pecuniária paga ao ocupante de cargo, emprego ou função públicos pelo seu simples exercício e corresponde ao padrão ou valor de referência fixado em lei. Na esfera federal, o vencimento básico, nos termos do art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.852/94, compreende a retribuição a que se refere o art. 40 da Lei nº 8.112/90 para os servidores civis estatutários, o soldo para os servidores militares e o salário básico para os empregados públicos.
Vencimentos, no dizer de Cármen Lúcia Antunes Rocha, "[...] compreende a soma dos valores correspondentes ao padrão definido legalmente para o cargo, função ou emprego acrescido das parcelas outorgadas como vantagens que são garantidas, em caráter permanente e fixo, para o agente [...]." [66] Assim, os vencimentos correspondem ao vencimento mais as vantagens pecuniárias permanentes, isto é, aquelas vantagens que, por qualquer motivo [67], tenham se incorporado ao patrimônio do agente público.
Conforme ensina Hely Lopes Meirelles, as vantagens pecuniárias podem ser concedidas a título definitivo ou transitório pela decorrência do tempo de serviço (ex facto temporis), pelo desempenho de funções especiais (ex facto officii), em razão das condições anormais em que se realiza o serviço (propter laborem) ou em razão das condições pessoais do servidor (propter personam). As duas primeiras são os adicionais e as duas últimas são as gratificações. [68]
Sem a necessidade de aprofundar as diferenças entre os vários tipos de vantagens pecuniárias, basta aqui salientar que há vantagens que se incorporam aos vencimentos do agente público e outras que não são incorporadas. Não é de bom alvitre querer estabelecer uma classificação rígida a esse respeito, pois a lei pode simplesmente estabelecer que, por exemplo, um adicional de função, a princípio não incorporável aos vencimentos, seja incorporado após um certo período de tempo. Assim, uma vantagem relativa ao exercício de uma função, paga pro labore faciendo, passa a se constituir numa vantagem pessoal, paga pro labore facto. [69]
O importante é distinguir as vantagens pecuniárias permanentes das transitórias. Aquelas fazem parte dos vencimentos, estas englobam apenas a remuneração, que vem a ser justamente a soma dos vencimentos com as vantagens pecuniárias transitórias. As primeiras fazem parte do patrimônio jurídico dos agentes públicos, não podendo lhes ser, por hipótese alguma, retiradas; as segundas, pela própria transitoriedade, não são intangíveis. Daí se falar em irredutibilidade de vencimentos e não de remuneração (art. 37, XV, CF). [70]
Por fim, são espécies de retribuição pecuniária os proventos, as pensões e as indenizações. As duas primeiras são espécies remuneratórias (assim como o subsídio e a remuneração), só que pagas aos agentes públicos aposentados ou seus beneficiários (no caso das pensões). A última é espécie indenizatória e visa a retribuir o agente público pelos gastos extraordinários contraídos no exercício de sua função. [71]
De acordo com a redação atual do art. 37, inciso XI, da Constituição, dada pela Emenda Constitucional nº 41/2003, estão limitados pelo teto a remuneração, o subsídio, os proventos, pensões ou qualquer outra espécie remuneratória. Dessa observação, abstraem-se duas conclusões: a) a expressão teto de remuneração, largamente utilizada, deve ser substituída por teto de retribuição pecuniária [72]; b) somente as espécies remuneratórias de retribuição pecuniária estão incluídas no teto constitucional, o que exclui as indenizações.
2.2. O TETO DE RETRIBUIÇÃO ESTABELECIDO NA CONSTITUIÇÃO ORIGINÁRIA E O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO ART. 17 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS (ADCT)
O teto de retribuição pecuniária, entendido como limite constitucional à percepção, por parte dos agentes públicos (nem todos – vide item 2.1.1, supra), de altas retribuições pecuniárias (não de todas as espécies – vide item 2.1.2, supra), está positivado desde 5 de outubro de 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal. Ele é, inegavelmente, um instrumento para se concretizar um dos matizes do princípio da moralidade. [73]
Foi, inclusive, com esse escopo que o poder constituinte, no exercício de sua soberania (vide item 1.1.1, supra), estatuiu o art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ordenando a imediata redução daquelas retribuições pecuniárias que estivessem em desacordo com o teto estabelecido na Constituição, sem que se pudesse invocar direito adquirido. Problema algum haveria se o teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos não fosse questão tão afeita a mudanças por parte do poder reformador (a última foi através da Emenda Constitucional nº 41/2003). E o que é pior: mudanças que vieram (ou pelo menos intentaram) ferir direitos intangíveis dos agentes públicos.
2.2.1. O teto de retribuição na redação originária da Constituição de 1988
Para se ter uma idéia do iminente [74] desrespeito aos direitos adquiridos de alguns agentes públicos, o primeiro passo será fazer um breve relato de como a Constituição Federal tratou, originariamente, a importante questão do teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos. A Constituição Federal originária, no art. 37, inciso XI, assim enunciava:
"XI - a lei fixará o limite máximo e a relação de valores entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, observados, como limites máximos e no âmbito dos respectivos Poderes, os valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título, por membros do Congresso Nacional, Ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal e seus correspondentes nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, e, nos Municípios, os valores percebidos como remuneração, em espécie, pelo Prefeito;" [grifo nosso]
Vê-se que o teto instituído pelo poder constituinte era configurado de tal forma que certos limites poderiam ser estabelecidos posteriormente por lei ordinária e outros foram desde já estipulados na Constituição. A lei ordinária poderia estabelecer um limite máximo igual ou inferior aos paradigmas constitucionais. Quando estabelecia um valor inferior, dizia-se que instituiu um redutor ou subteto. [75] E havia dois tipos de subteto: o fixo ("[...] fixará o limite máximo [...]") e o móvel ("[...] fixará [...] a relação de valores entre a maior e a menor remuneração [...]"). [76]
2.2.2. O verdadeiro significado do art. 17 do ADCT
A observação de que o teto constitucional de retribuição pecuniária originariamente posto continha três tipos de limites (dois postos pela lei e um pela Constituição) é fundamental, como se verá mais adiante, para se apurar o verdadeiro significado normativo do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Esse dispositivo constitucional transitório é peça-chave para se entender o porquê da invocação de direito adquirido contra as normas da Emenda Constitucional nº 41/2003 que tratam do teto de retribuição pecuniária (mais especificamente seu art. 9º).
Isso porque o art. 17 do ADCT, como norma emanada do poder constituinte, podia (como pode) ferir direitos adquiridos. Ocorre que sua aplicação deve se circunscrever, exclusivamente, às situações inicialmente previstas pelo poder constituinte, único poder ilimitado. Assim, ao conhecer as situações referidas pelo poder constituinte, em relação às quais não se poderia invocar direito adquirido, acaba-se por esclarecer, a contrario sensu, todas aquelas que estão protegidas pela garantia constitucional insculpida no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal.
Assim dispõe o art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:
"Art. 17. Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título." [grifo nosso]
A primeira pergunta a ser feita é a seguinte: seria necessária a positivação da norma contida nesse art. 17 do ADCT? Em outras palavras, tendo a Constituição originária, através de seu art. 37, inciso XI, estipulado limites máximos de retribuição pecuniária, precisaria uma norma transitória explicitar que esses limites se imporiam desde logo, sem a possibilidade de invocação de direito adquirido?
A questão é pertinente, pois, como se asseverou no item 1.3, basta que a Constituição originária retire validade da norma geral abstrata de onde emanam os efeitos futuros de fatos passados para que cessem esses efeitos. [77] Dessa forma, um agente público que vinha percebendo um dado valor de retribuição pecuniária (um direito adquirido, portanto), quando da entrada em vigor do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal (originária), perdeu o direito de receber as parcelas que ultrapassassem os limites impostos pela Constituição. Isso em razão do simples enunciado constitucional trazido pelo poder constituinte (art. 37, XI), que tem vigência imediata.
O princípio da supremacia e da eficácia imediata das disposições constitucionais é atualmente pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. [78] Veja-se, a título apenas exemplificativo, a ementa do acórdão exarado no julgamento do Recurso Extraordinário nº 140.499-0/GO, em que foi relator o Ministro Moreira Alves:
"EMENTA: Pensões especiais vinculadas a salário mínimo. Aplicação imediata a elas da vedação da parte final do inciso IV do art. 7º da Constituição de 1988.
- Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que os dispositivos constitucionais têm vigência imediata, alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima). Salvo disposição expressa em contrário – e a Constituição pode fazê-lo -, eles não alcançam os fatos consumados no passado nem as prestações anteriormente vencidas e não pagas (retroatividades máxima e média).
Recurso extraordinário conhecido e provido." [RE nº 140.499-0/GO – STF – Primeira Turma – Rel. Min. Moreira Alves – DJ 09/09/1994] [grifo nosso]
Como visto, da mesma forma que as pensões especiais de que trata a ementa do acórdão acima mencionada deveriam se adequar à vedação imposta no art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal, "alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima)", as retribuições pecuniárias dos agentes públicos deveriam se adequar imediatamente ao teto estabelecido no art. 37, inciso XI. Não haveria necessidade, para esse mister, da enunciação feita pelo art. 17 do ADCT. São esclarecedoras as palavras do Ministro Moreira Alves no voto proferido quando do julgamento do já citado Recurso Extraordinário nº 140.499-0/GO:
"Portanto, ainda que se pretenda que o art. 17 do ADCT não alcança as pensões por não se referir a elas, devendo ser interpretado estritamente por se tratar de princípio restritivo, o certo é que a aplicação imediata da vedação da parte final do inciso IV do art. 7º do texto permanente da Constituição é de aplicação imediata, tendo, portanto, retroatividade mínima, o que implica dizer que ele alcança as prestações mensais posteriores a ele de pensões que anteriormente a ele foram concedidas."
Seria, então, inútil a positivação do art. 17 do ADCT? Ou teria sido ele, como defende Paulo Modesto [79], confeccionado para permitir que, de forma especial, além da própria Constituição, a lei ordinária de que tratava o art. 37, inciso XI também pudesse ferir os direitos adquiridos? Parecem ser incorretas ambas as conclusões.
A primeira porque levaria ao entendimento de que o legislador constituinte editou norma desprovida de qualquer significado jurídico. A segunda porque conduziria o intérprete da norma constitucional à constatação de que o legislador constituinte conferiu ao legislador ordinário poderes que apenas o próprio poder constituinte poderia manejar.
Ao se conferir aos subtetos a prerrogativa de reduzir ainda mais as retribuições pecuniárias dos agentes públicos, desrespeitando-se os direitos já adquiridos, o princípio da segurança jurídica estaria ferido de morte e a cláusula pétrea insculpida no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de nada valeria. E é sempre bom relembrar que o poder constituinte é solitário e sobrevive, em estado de latência, do lado de fora da Constituição. Seria uma incongruência tamanha o poder constituinte deixar dentro da Constituição uma espécie de apêndice seu para, ao bel prazer do legislador ordinário (que estaria munido de poderes verdadeiramente constituintes), amesquinhar-se a garantia do direito adquirido, arruinando o princípio da segurança jurídica.
É, na verdade, o que aconteceria se a lei ordinária de que tratava o art. 37, inciso XI, da Constituição Federal, em sua redação originária, pudesse também ferir direitos adquiridos. Ao estabelecer um limite máximo menor que o paradigma constitucional e reduzir as retribuições pecuniárias já adequadas aos novos limites decorrentes da Constituição, a lei ordinária estaria a colocar de lado o princípio da segurança jurídica. Quem garantiria que nova lei não seria editada, reduzindo-se ainda mais o limite legal de retribuição pecuniária? Que segurança poderiam ter os agentes públicos quanto a esse importante aspecto de tranqüilização de suas expectativas que é a irredutibilidade de vencimentos? Absolutamente nenhuma.
O que, afinal, está a dizer o enunciado normativo do art. 17 do ADCT? Qual a razão de existir dessa norma?
Como já se destacou acima, o teto de retribuição pecuniária estabelecido na Constituição Federal originária continha limites desde já estipulados pela própria Constituição e limites outros que poderiam ser colocados pela lei ordinária. A razão de ser do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias foi a de deixar fora de qualquer dúvida a proteção aos direitos adquiridos contra os limites que a Constituição incumbiu ao legislador ordinário fixar. Pode-se chegar a essa conclusão através de uma interpretação a contrario sensu do dispositivo constitucional transitório.
Quando o artigo 17 do ADCT fala que as retribuições pecuniárias percebidas em desacordo com a Constituição serão reduzidas aos limites dela decorrentes, refere-se tão-somente aos limites já postos na própria Constituição originária. Os conhecidos subtetos eram limites decorrentes da lei. Evidência disso é que as retribuições pecuniárias deveriam ser reduzidas imediatamente, ou seja, em momento em que ainda não existia sequer a lei ordinária (que era facultativa, diga-se) fixadora dos outros limites. [80]
Foi exatamente para ressalvar que os limites decorrentes da lei não poderiam reduzir as retribuições que estivessem dentro do limite decorrente da Constituição que o poder constituinte elaborou a norma do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Através dela, ficou definitivamente claro que somente os limites decorrentes da própria Constituição originária poderiam ferir o direito adquirido (daí a expressão "neste caso"). Em outras palavras, o art. 17 do ADCT, ao enunciar que não se poderia invocar direito adquirido contra os limites estabelecidos na Constituição, protegeu, a contrario sensu, aquelas retribuições pecuniárias que se amoldassem ao disposto na Constituição originária, mas que por acaso extrapolassem os limites estabelecidos posteriormente pela lei (ou por qualquer emenda constitucional superveniente). [81]
Essa a razão de existir da norma. Deixar evidenciado que mesmo aquela lei autorizada pelo poder constituinte a impor limites às retribuições pecuniárias dos agentes públicos teria que respeitar o direito adquirido, o mesmo acontecendo, por razões idênticas (impossibilidade de subjugar o princípio da segurança jurídica), com qualquer emenda constitucional futura que viesse a impor limites mais estreitos que os impostos na Constituição originária. Se mesmo existindo o art. 17 do ADCT ainda havia quem defendesse que a lei ordinária poderia reduzir as retribuições pecuniárias dos agentes públicos [82], imagine-se se não houvesse tal esclarecimento por parte do Constituinte de 1988.
Enfim, o que se procurou demonstrar com a análise do art. 17 do ADCT foi que os limites contra os quais não se poderia invocar direito adquirido eram somente aqueles impostos desde já pela Constituição Federal, na redação originária do art. 37, inciso XI. Em face desses limites não há mesmo que se invocar direito adquirido, pois não há direito adquirido contra a Constituição originária. Por outro lado, uma vez conforme os limites constitucionais estabelecidos pelo poder constituinte (e somente por eles), as retribuições pecuniárias dos agentes públicos se tornam irredutíveis, passando, agora sim, a estar protegidas, inclusive contra as emendas constitucionais, pela garantia do direito adquirido, cláusula pétrea da atual ordem constitucional.
Conheçam-se, então, quais os limites estabelecidos pelo poder constituinte.
2.3. A ABRANGÊNCIA DO TETO DE RETRIBUIÇÃO NA CONSTITUIÇÃO ORIGINÁRIA SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Para se conhecer os limites de retribuição decorrentes da Constituição originária, indispensável a análise da jurisprudência que se formou no Supremo Tribunal Federal. Não se vai aqui questionar o acerto ou não desse entendimento jurisprudencial, até porque o eixo central deste trabalho está justamente na busca do entendimento da legislação que veio a superar a legislação anterior que dava suporte à jurisprudência. Dessa forma, qualquer valoração acerca da antiga jurisprudência do Pretório Excelso se mostrará inócua neste momento.
Foi, na verdade, o entendimento consolidado durante alguns anos pelo Supremo Tribunal, juntamente com a nova legislação constitucional que surgiu a fim de contrariá-lo, o que gerou toda essa celeuma acerca do teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos e o (des)respeito aos direitos adquiridos. Tudo começou, segundo relato de Paulo Modesto [83], com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 14-4/DF, que está assim ementada:
"EMENTA: - Ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros. O parágrafo 2º do artigo 2º da Lei Federal nº 7.721, de 6 de janeiro de 1989, quando limita os vencimentos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal – computados os adicionais por tempo de serviço – à remuneração máxima vigente no Poder Executivo, vulnera o art. 39, § 1º, in fine, da Constituição, que sujeita a tal limite apenas os vencimentos, excluídas as vantagens pessoais. Compatibilidade do conceito de vencimentos estabelecido na Lei Complementar nº 35/79 e em outros artigos da Lei Maior com a exegese do aludido dispositivo constitucional.
Procedência parcial da ação para declarar inconstitucionais as expressões ‘... e vantagens pessoais (adicionais por tempo de serviço)...", constante do § 2º, art. 2º da Lei 7.721/89." [ADI nº 14-4/DF – STF – Tribunal Pleno – Rel. Min. Célio Borja – DJ 1º/12/1989] [grifos do original]
Por essa decisão, ficou assentado que, para que se respeitasse efetivamente a isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (art. 39, § 1º, da Constituição Federal, na sua redação originária), seria necessária a equivalência entre os vencimentos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, dos Ministros de Estado e dos membros do Congresso Nacional (princípio da equivalência). Somente com a vinculação a tetos de retribuição pecuniária equivalentes é que o princípio da isonomia entre os servidores dos três Poderes poderia ser verdadeiramente concretizado.
Mas o art. 39, § 1º, da Constituição Federal originária, que tratava do princípio da isonomia, tinha uma ressalva importante: excluía da equivalência as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho. Senão, veja-se:
"Art. 39. [...]
§ 1º. A lei assegurará, aos servidores da Administração Direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho." [grifo nosso]
Daí então surgiu o entendimento [84], ratificado, posteriormente, por inúmeros acórdãos do próprio Supremo Tribunal Federal [85], de que, pela análise do art. 37, inciso XI combinado com o art. 39, § 1º, ambos da Constituição Federal em sua originária redação, as vantagens pecuniárias de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho não seriam computadas para a incidência do teto constitucional de retribuição pecuniária. Dito de outro modo, parcela significativa dos estipêndios de alguns agentes públicos estava livre das amarras do teto de retribuição.
Vantagens pecuniárias de caráter individual são aquelas que dizem respeito, única e exclusivamente, à pessoa do agente público. São vantagens pecuniárias que somente são pagas em razão de características especiais do agente público ou tendo em vista circunstâncias que o individualizem. Diferem das vantagens relativas ao cargo, pois estas são pagas aos agentes públicos pelo exercício do cargo, independentemente da pessoa do titular ou do que anteriormente ele tenha sido. A esse respeito, a título exemplificativo, veja-se a ementa do acórdão exarado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1344-MC/ES:
"EMENTA: - Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de medida liminar. Par. 1. do artigo 71 da Lei Complementar n. 46, de 31 de janeiro de 1994, do artigo 2. da Lei Complementar n. 48, de 19 de abril de 1994, e artigo 1. da Lei Complementar n. 50, de 18 de julho de 1994, todas do Estado do Espírito Santo.
- Vantagens pessoais excluídas do teto de remuneração. Plausibilidade jurídica do pedido de liminar com relação às vantagens que as normas impugnadas excluem do teto de remuneração e que não são vantagens de caráter individual, por serem correspondentes ao exercício do cargo ou função, independentemente de quem seja o titular ou do que anteriormente ele tenha sido. No caso, são elas: as gratificações pelo exercício de função gratificada, pelo exercício de cargo em comissão, de produtividade e de representação [...]." [ADI nº 1344-MC/ES – STF – Tribunal Pleno – Rel. Min. Moreira Alves – DJ 19/04/1996 ] [grifo nosso]
Toda essa diferenciação entre as vantagens de caráter individual e relativas à natureza ou ao local de trabalho e aquelas relativas ao cargo ou função se justifica no fato de que as primeiras foram excluídas da incidência do teto exatamente porque diziam respeito a circunstâncias individuais do agente público. E como ressalvava o então vigente art. 39, § 1º da Constituição, não se poderia concretizar o princípio da isonomia tratando de forma igual agentes públicos desiguais, isto é, sem levar em consideração as dessimilitudes geradas por circunstâncias individuais.
Na esteira desse pensamento, mas também – e principalmente – em razão das permissões expressamente consignadas na própria Constituição Federal (art. 37, inciso XVI), as retribuições pecuniárias que excedessem o teto constitucional porque advindas da acumulação remunerada (desde que constitucionalmente legítima) de cargos também não seriam restringidas. Aliás, o próprio art. 37, inciso XI, na originária redação da Constituição de 1988, não se refere à hipótese de acumulação de cargos.
O que se conclui, portanto, é que os limites de retribuição pecuniária postos pelo poder constituinte não incluíam as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho nem consideravam a hipótese de acumulação remunerada de cargos. Isso quer dizer que parcelas das retribuições pecuniárias dos agentes públicos continuaram, legitimamente (frise-se), a ser percebidas.
Ocorre que, como se destacou no item 2.1.2, as vantagens pecuniárias podem ser concedidas a título definitivo ou transitório e, para diferenciá-las, não há um critério rígido, pois a lei pode estabelecer que uma vantagem inicialmente transitória (pro labore faciendo, por exemplo) se torne permanente depois de um determinado tempo ou cumprido certo requisito. Assim, como já se asseverou anteriormente, uma vantagem relativa ao exercício de uma função (função gratificada, por exemplo), paga pro labore faciendo, passa a se constituir numa vantagem de caráter individual, paga pro labore facto.
E foi exatamente esse tipo de situação que se multiplicou após a decisão do Supremo Tribunal Federal de excluir do teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos as vantagens de caráter individual. Várias leis posteriores trouxeram dispositivos que permitiram a incorporação dessas vantagens aos vencimentos (que são irredutíveis – art. 37, inciso XV, CF) dos agentes públicos, isso sem contar aquelas vantagens individuais que, por natureza, já eram incorporadas (adicional de tempo de serviço, por exemplo). Diante disso, como não podia ser diferente, o Pretório Excelso sufragou a legalidade do percebimento dessas parcelas remuneratórias, nos moldes de sua jurisprudência, já então formada. Veja-se outro exemplo:
"EMENTA:
Teto de remuneração. Vantagem pessoal. - Esta Corte já firmou o entendimento de que as vantagens pessoais do servidor público estão excluídas do cálculo da remuneração sujeita à observância do teto previsto no artigo 37, XI, da Constituição. No caso, a gratificação de representação de Secretário de estado incorporada à remuneração do ora recorrido, que é Delegado de Polícia, pelo fato de haver exercido aquele cargo pelo tempo previsto na legislação local para fazer jus a essa incorporação é vantagem pessoal, pois não decorre do simples exercício do referido cargo, mas depende, ainda, do fato individualizador que é o preenchimento de tempo mínimo de exercício dele. Recurso extraordinário não conhecido." [RE nº 208222/CE – STF – Primeira Turma – Rel. Min. Moreira Alves – DJ 03/03/2000] [grifo nosso]
Já que os limites de retribuição pecuniária decorrentes do poder constituinte, isto é, os postos desde já na Constituição Federal originária, não incluíam, para seu cálculo, as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza e ao local de trabalho e nem levavam em consideração a acumulação remunerada de cargos, certas parcelas remuneratórias, legitimamente percebidas (o que indica a existência de fato idôneo), incorporaram-se ao patrimônio jurídico dos agentes públicos, configurando-se um verdadeiro direito adquirido. [86] E não há que se falar aqui em aplicação do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, pois, segundo a construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, tais parcelas remuneratórias não estavam sendo percebidas em desacordo com os limites decorrentes da Constituição.
E então surge a controvérsia a que se pretende, com este trabalho, sugerir uma solução: pode uma emenda constitucional, ao incluir expressamente na incidência dos limites máximos de retribuição as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza e ao local de trabalho, bem como as retribuições advindas de acumulação remunerada de cargos, intentar reduzir ou até mesmo eliminar dos estipêndios dos agentes públicos aquelas parcelas já incorporadas a seu patrimônio?
2.4. O TETO DE RETRIBUIÇÃO PECUNIÁRIA ESTABELECIDO PELA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 19/98 E SUA NÃO-AUTO-APLICABILIDADE
Essa questão veio à tona quando da promulgação da Emenda Constitucional nº 19/98. A emenda, através de seu artigo 3º, deu nova redação ao art. 37, inciso XI, da Constituição Federal, incluindo expressamente no teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos qualquer espécie remuneratória, percebida cumulativamente ou não, contando-se também com as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza. Assim ficou configurado o teto de retribuição depois da promulgação da Emenda Constitucional nº 19/98:
"Art. 37 (...)
XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal;" [grifo nosso]
Mas a Emenda Constitucional nº 19/98 não se limitou a alterar a redação do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal, muito pelo contrário, modificou inúmeros dispositivos constitucionais e ainda cunhou normas que não integraram seu texto permanente. Vejam-se as inovações, no que interessa diretamente ao presente estudo:
"Art. 3º. O caput, os incisos I, II, V, VII, X, XI, XIII, XIV, XV, XVI, XVII e XIX e o § 3º do art. 37 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação, acrescentando-se ao artigo os §§ 7º a 9º:
[...]
XV – o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I;
XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
[...]
Art. 29. Os subsídios, vencimentos, remuneração, proventos da aposentadoria e pensões e quaisquer outras espécies remuneratórias adequar-se-ão, a partir da promulgação desta Emenda, aos limites decorrentes da Constituição Federal, não se admitindo a percepção de excesso a qualquer título." [grifo nosso]
Pode-se perceber, pela análise conjunta das novas normas trazidas pela Emenda Constitucional nº 19/98, que o legislador reformador parece ter se empenhado em que os novos limites constitucionais fossem rigorosamente observados. A dúvida estava em dois pontos: a) teria o legislador reformador intentado impor o novo teto de retribuição pecuniária inclusive para aqueles agentes públicos que já tinham direito adquirido às suas retribuições nos valores em que percebiam até então? b) se a resposta à questão anterior fosse afirmativa, poderia o poder reformador concretizar tal intento?
A doutrina brasileira se dividiu. Enquanto alguns autores defendiam a imediata redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos, com espeque no art. 29 da Emenda Constitucional nº 19/98 e nas ressalvas introduzidas no art. 37, incisos XV e XVI, da Constituição Federal, outros sustentavam que o art. 29 da referida Emenda deveria ser interpretado conforme a Constituição Federal, para se respeitar os direitos adquiridos, o mesmo ocorrendo com as ressalvas introduzidas no texto permanente da Constituição.
Os atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles, por exemplo, a fim de abstrair o verdadeiro significado normativo do art. 29 da Emenda Constitucional nº 19/98, buscaram compará-lo com o art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Segundo esses autores, o art. 29 da Emenda Constitucional nº 19/98 não determinou a imediata redução dos vencimentos e nem afastou o direito adquirido. Essa norma utilizou expressão no futuro ("[...] adequar-se-ão [...]"), bem diferente do art. 17 do ADCT, que enunciou um mandamento categórico para o presente ("[...] que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes [...]"). [87]
Carlos Alberto Menezes Direito também correlacionou o art. 29 da citada Emenda com o art. 17 do ADCT, mas não para concordar com os atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles. Disse aquele autor que a Emenda Constitucional nº 19/98 impunha a imediata redução das astronômicas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos. Tanto é assim que, ainda nas palavras de Carlos Alberto Menezes Direito, o poder constituinte derivado [88] "[...] teve o cuidado de repetir a regra do constituinte originário, no art. 29 [...]." [89] [grifo nosso] Conclui esse autor, ao comentar a ressalva feita pelo art. 37, inciso XV, da Constituição, que aquilo "[...] que o constituinte derivado deixou induvidoso foi a redutibilidade dos subsídios e os vencimentos se acima do teto previsto no art. 37, XI." [90]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, mesmo destacando que os direitos adquiridos deveriam ser respeitados, interpretou a ressalva introduzida no art. 37, inciso XV, da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 19/98 ("[...] ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo [...]") no sentido de não se poder invocar a irredutibilidade de vencimentos para manter retribuições pecuniárias que, à época da promulgação da Emenda Constitucional nº 19/98, estavam sendo percebidas acima do novo teto. Segundo a autora, a ressalva ao princípio da irredutibilidade de vencimentos era reforçada pela norma do art. 29 da referida Emenda Constitucional. [91] A mesma observação fizeram Odete Medauar [92] e Helio Saul Mileski. [93]
Por outro lado, vários juristas defenderam a interpretação do art. 29 da Emenda Constitucional nº 19/98 conforme a Constituição. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello [94], Uadi Lammêgo Bulos [95], Diogenes Gasparini [96], Cármen Lúcia Antunes Rocha [97] e Alexandre de Moraes [98], o art. 29 da referida Emenda deveria ser entendido como reportado aos limites de retribuição postos na Constituição originária, não se aplicando o novo teto às situações jurídicas já consolidadas, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade ao ferir direitos adquiridos.
Afirma Diogenes Gasparini que a ressalva contida no art. 37, inciso XV, da Constituição Federal permite apenas que sejam reduzidos os vencimentos que estiverem sendo percebidos em desacordo com os limites postos na Constituição originária, consoante prescreve o art. 17 do ADCT. [99] Também em defesa da aplicação do princípio da irredutibilidade de vencimentos, Cármen Lúcia Antunes Rocha assevera:
"O maior problema posto nesta matéria refere-se, ainda uma vez, à existência de vencimentos ou de valores pagos para ocupantes de cargos e empregos sujeitos a subsídio e que superam o teto, mas que estão sendo pagos em concordância com normas anteriormente vigentes. A irredutibilidade, cuja previsão normativa constitucional antecede a própria norma enfatizada e alterada pela Emenda Constitucional n. 19/98, traz em seu objeto uma absoluta impropriedade jurídica ou, mesmo, uma impossibilidade constitucional, qual seja, a de se dar à aplicação de redutor, ou do fator de redução, sobre os valores que superem o teto ou o valor máximo." (100)
No mesmo sentido, enuncia Alexandre de Moraes, ao analisar o art. 29 da Emenda Constitucional nº 19/98:
"(...) Diferentemente, será o tratamento jurídico-constitucional dos servidores públicos que já tenham incorporadas ao seu patrimônio vantagens pessoais juridicamente reconhecidas. Em relação a esses, não haverá possibilidade de retroatividade do presente art. 29, continuando os mesmos a perceberem integralmente seus vencimentos, em face da existência do direito adquirido e a impossibilidade de reconhecer-se uma retroatividade que desconstitua uma situação jurídica perfeita e acabada, consolidada na vigência da norma constitucional originária anterior, acarretando uma irregular irredutibilidade de vencimentos devidamente incorporados ao patrimônio." (101)
Pois bem, após já terem ocorrido vários debates na esfera doutrinária, finalmente a questão chegou ao órgão de mais alta hierarquia do Poder Judiciário. Mas quando se pensava que o Supremo Tribunal Federal daria uma resposta às dúvidas, ao analisar a aplicação do art. 29 da Emenda Constitucional nº 19/98, o Pretório Excelso simplesmente procrastinou a resolução do problema, decidindo pela não auto-aplicabilidade do dispositivo.
Em sessão administrativa do Supremo Tribunal Federal, em 24 de junho de 1998, assim ficou assentado:
"O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, reunido em sessão administrativa, deliberou por 7 votos a 4, vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Carlos Veloso, Marco Aurélio e Ilmar Galvão, que não é auto-aplicável a norma constante do art. 29 da Emenda Constitucional n. 19/98, por entender que essa regra depende, para efeito de sua plena incidência e integral eficácia, da necessária edição de lei, pelo Congresso Nacional, lei essa que deverá resultar de projeto de iniciativa conjunta do Presidente da República, do Presidente da Câmara dos Deputados, do Presidente do Senado Federal e do Presidente do Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal nessa mesma sessão administrativa, entendeu que, até que se edite a lei definitiva do subsídio mensal a ser pago a Ministro do Supremo Tribunal Federal, prevalecerão os três (3) tetos estabelecidos para os três poderes da República, no art. 37, XI, da Constituição, na redação anterior à que lhe foi dada pela EC 19/98, vale dizer: no Poder Executivo da União, o teto corresponderá à remuneração paga a Ministro de Estado; no Poder Legislativo da União, o teto corresponderá à remuneração paga aos membros do Congresso Nacional; e no Poder Judiciário, o teto corresponderá à remuneração paga atualmente, a Ministro do Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal na Sessão administrativa hoje realizada declarou que não dispõe de competência, para, mediante ato declaratório próprio, definir o valor do subsídio mensal. Essa é matéria expressamente sujeita à reserva constitucional de lei em sentido formal."
Dessa forma, tendo sido criada pela Emenda Constitucional nº 19/98 a figura do subsídio (art. 39, § 4º, CF), que, como já se viu anteriormente, é uma das espécies de retribuição pecuniária, e, principalmente, tendo ficado estipulado como limite único de retribuição de todos os agentes públicos o subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, entendeu a Excelsa Corte que o teto estabelecido pela Emenda e, conseqüentemente, o comando normativo que impunha o respeito desses limites (art. 29 da Emenda Constitucional nº 19/98) só teriam aplicabilidade após a fixação, por lei de iniciativa conjunta dos Presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal (art. 48, XV, CF, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98), dos subsídios dos ministros do STF. [102] Enquanto isso, perduraria toda a situação anterior já aqui narrada, ou seja, prevaleceriam os limites impostos pelo poder constituinte, o que significava a possibilidade de percepção das vantagens de caráter individual e as relativas à natureza e ao local de trabalho, bem como a acumulação remunerada de cargos, independentemente de qualquer teto de retribuição. [103]
Como nunca se materializaram as condições políticas para a propositura do projeto de lei que fixaria os subsídios dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a quádrupla iniciativa, a situação anterior à Emenda Constitucional nº 19/98 perdurou até a promulgação da Emenda Constitucional nº 41/2003. Esta emenda, além de desfazer o equívoco da necessidade de iniciativa conjunta para a propositura do projeto de lei que fixará os subsídios dos Ministros do STF, dispôs, em seu art. 8º, que, "até que seja fixado o valor do subsídio de que trata o art. 37, XI, da Constituição Federal, será considerado, para os fins do limite fixado naquele inciso, o valor da maior remuneração atribuída por lei na data de publicação desta Emenda a Ministro do Supremo Tribunal Federal [...]". [104]
Com isso, a auto-aplicabilidade do art. 37, XI, da Constituição Federal deixou de ser um empecilho para a total eficácia do novo limite de retribuição, que já não é mais somente o subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 37, XI, CF, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 41/2003), mas continua a incluir em sua incidência, explicitamente, as vantagens de caráter pessoal ou de qualquer outra natureza. Chega-se, finalmente, ao art. 9º da Emenda Constitucional nº 41/2003 e a questão dantes posta retorna à ordem do dia. É juridicamente possível, sob o argumento de adequação ao novo teto, reduzir as retribuições pecuniárias dos agentes públicos, retirando-lhes vantagens legalmente incorporadas a seu patrimônio? É o que se verá no próximo capítulo.