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Teto de retribuição pecuniária e direito adquirido:

uma abordagem acerca da Emenda Constitucional nº 41/2003

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06/12/2004 às 00:00
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CAPÍTULO III

EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 41/2003: O CONTRAPONTO ENTRE O NOVO TETO E O "VELHO" DIREITO

3.1. O NOVO TETO DE RETRIBUIÇÃO ESTABELECIDO PELA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 41/2003 E A IMPOSSIBILIDADE DE FERIMENTO AO DIREITO ADQUIRIDO

A resposta à questão que se deixou em aberto no capítulo anterior já pode ser inferida, mesmo antes de ser, categoricamente, declinada no presente trabalho. Isso porque a maior parte da base teórica necessária para a resposta já foi explicitada, restando tão-somente conjugar as conclusões obtidas nos capítulos precedentes e fazer umas poucas observações complementares.

É preciso, primeiramente, analisar os novos termos do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal, depois da promulgação da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003. Senão, veja-se:

"Art. 37. (...)

XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos;" [grifo nosso]

Como visto, conquanto se tenha alterado (e alargado) a lista dos paradigmas constitucionais, o teto de retribuição pecuniária estabelecido pela Emenda Constitucional nº 41/2003 continuou a considerar nele incluso, nos moldes já elencados pela Emenda Constitucional nº 19/98, qualquer espécie remuneratória, percebida cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza. É por isso que a dúvida dantes posta em questão (e que o Supremo Tribunal Federal não sanou quando da análise do art. 29 da Emenda Constitucional nº 19/98) permanece. Pode uma emenda constitucional, ao incluir expressamente na incidência dos limites máximos de retribuição as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza e ao local de trabalho, bem como as retribuições advindas de acumulação remunerada de cargos, intentar reduzir ou até mesmo eliminar dos estipêndios dos agentes públicos aquelas parcelas já incorporadas a seu patrimônio?

A resposta, depois de toda a explanação já feita, não pode ser outra se não a negativa. Primeiramente, como se viu no Capítulo I deste trabalho, uma emenda constitucional não tem poderes suficientes para afastar a garantia do direito adquirido. Não o tem porque as emendas constitucionais advêm do poder reformador, que é derivado, subordinado e condicionado pelo poder constituinte. E dentre os limites impostos pelo poder constituinte ao reformador está a intocabilidade dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV, CF), entre eles a garantia do direito adquirido (art. 5º, XXXVI, CF), que, frise-se, não pode ser entendida senão de forma conjugada com os próprios direitos a que visa garantir.

Mas há direito adquirido à percepção das parcelas de retribuição pecuniária apontadas? Foi o que se demonstrou no Capítulo II. A partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que entendeu fora do alcance do teto estabelecido pelo art. 37, inciso XI, da Constituição Federal originária as vantagens individuais e as relativas à natureza e ao local de trabalho, várias parcelas estipendiais foram se incorporando, legitimamente, aos vencimentos dos agentes públicos. E uma vez incorporada ao patrimônio jurídico de determinado agente público, a vantagem pecuniária se tornou um direito adquirido, protegido pela cláusula pétrea insculpida no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal. Nesse sentido, averba Alexandre de Moraes:

"Devemos nos lembrar que se os vencimentos – mesmo que extrapolem futuro teto salarial fixado em lei – estão sendo percebidos, isso decorre da própria interpretação que o Supremo Tribunal Federal pacificou em relação à antiga redação do inciso XI do art. 37, entendendo que as vantagens de caráter pessoal não deveriam ser computadas no teto original previsto no inciso XI do art. 37 da Constituição Federal. Assim entendendo, o Pretório Excelso reconheceu que determinada vantagem pessoal que acresceu aos vencimentos do servidor público, mesmo acima do teto salarial, incorporou seu patrimônio, concedendo-lhe direito adquirido a recebê-las, independentemente de futura alteração de regime jurídico" [105] [grifo do autor]

Se se configurou direito adquirido e uma emenda constitucional não pode ferir direito adquirido, forçoso é reconhecer que é inconstitucional qualquer tentativa de reduzir as retribuições pecuniárias dos agentes públicos legitimamente percebidas. E não se pode aduzir, como fez Gracielle Carrijo Vilela [106], que a redução das altas retribuições pecuniárias estaria justificada no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Essa autora afirma que o art. 17 do ADCT, elaborado pelo poder constituinte e ainda em pleno vigor, afasta a possibilidade de invocação do direito adquirido no caso em análise (lembre-se que o poder constituinte podia fazê-lo). Não se discorda da assertiva de que o art. 17 do ADCT possa ainda estar em vigor [107], mas, como se falou no capítulo precedente, tal dispositivo transitório está umbilicalmente vinculado aos limites postos pelo próprio legislador constituinte.

Assim, uma vez conforme os limites decorrentes da Constituição originária, as retribuições pecuniárias se tornam irredutíveis, tanto por força do princípio do direito adquirido quanto do princípio da irredutibilidade de vencimentos. Aliás, consoante decisão recente do Supremo Tribunal Federal, a irredutibilidade de vencimentos é modalidade qualificada de direito adquirido. [108] Não se pode, portanto, aplicar o art. 17 do ADCT quando a retribuição pecuniária de determinado agente público já se adequou ao teto referido pelo art. 37, inciso XI, da Constituição Federal originária. Veja-se, a título exemplificativo, trecho do voto do Ministro Carlos Velloso, no julgamento unânime do Recurso Extraordinário nº 137.366-1/MA:

"O acórdão recorrido afirma não ocorrer, no caso, o excesso de remuneração que o art. 17 do ADCT à CF/88 visa a corrigir. É dizer, o acórdão afirma que os vencimentos não ultrapassam os limites inscritos no inciso XI do art. 37 da Constituição [limites esses que não incluíam as vantagens pessoais e as relativas à natureza e ao local de trabalho, nem levavam em conta a acumulação remunerada de cargos]. Por isso, a redução de tais vencimentos, sob color de cumprimento ao art. 17 do ADCT, aplica maus tratos no princípio da irredutibilidade de vencimentos inscrita no inc. XV do citado art. 37 da Constituição." [RE nº 137.366-1/MA – STF – Segunda Turma – Rel. Min. Carlos Velloso – DJ 11/06/1993] [grifo nosso]

Destarte, a grande maioria [109] das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos não podem ser reduzidas pela superveniência da Emenda Constitucional nº 41/2003. Embora vultosas, tais retribuições pecuniárias integraram o patrimônio jurídico dos agentes públicos, pois as parcelas estipendiais de alto valor monetário (ou que se tornou alto depois da cumulação de várias vantagens legitimamente percebidas) são exatamente aquelas que o Supremo Tribunal Federal julgou imune aos limites impostos pelo poder constituinte.

3.1.1. Interesse público e razoabilidade frente ao direito adquirido

Há, no entanto, ainda dois outros argumentos que precisam ser rechaçados, pois visam a afastar a configuração do direito adquirido no caso das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos. O primeiro consiste no pensamento de que a garantia do direito adquirido deve ser relativizada em face de normas de ordem pública. O segundo considera inexistente o próprio direito adquirido, pois as vantagens pecuniárias de alto valor feririam o princípio da razoabilidade, sendo, portanto, inconstitucionais.

O pensamento de que o direito adquirido deveria ceder espaço a normas de ordem pública não é novo. [110] Serpa Lopes, ao comentar as desvantagens da consagração do princípio da irretroatividade [111] na Constituição, afirmava ser "[...] incontestável que situações existem em que o princípio da irretroatividade precisaria ceder o passo a reformas legislativas de impressionante necessidade ao interesse público [...]." [112] Na mesma esteira de pensamento, Gracielle Carrijo Vilela defende que o direito adquirido, por ter advindo do ramo privado do Direito, não pode contrariar o interesse público. Ainda segundo a autora, no Direito Público, o direito adquirido só se aplica se não ferir o interesse público. [113]

Assim, sustenta-se que a imediata redução das retribuições pecuniárias exorbitantes de alguns agentes públicos seria do mais alto interesse público [114], não se podendo invocar no caso a garantia do direito adquirido. Não obstante a imensa popularidade da medida e o constante uso político que se faz dela (e aqui está um dos maiores perigos para os direitos fundamentais), perece ser equivocado tal pensamento.

Primeiro porque a garantia do direito adquirido não sofre (e não pode sofrer) relativizações frente a normas de ordem pública. A existência do interesse público não autoriza o amesquinhamento da garantia constitucional individual. A garantia do direito adquirido não pode ser relativizada porque ela compreende uma proteção do indivíduo contra o Estado, o mesmo Estado que tem o poder de invocar o interesse público ao editar normas jurídicas de observância geral. É como adverte Cunha Gonçalves, ao tratar do princípio da irretroatividade das leis no Direito Português: "[...] tendo todas as leis por fim a realização da harmonia social e a defesa dos interesses gerais, todas poderiam ser aplicadas retroativamente, destruindo-se a regra do art. 8º." [115]

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é assente ao dizer que a garantia do direito adquirido se impõe também em face das normas de ordem pública. [116] Veja-se, a título meramente exemplificativo, a ementa do acórdão exarado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 493-0/DF:

"EMENTA: Ação Direta de Insconstitucionalidade.

[...]

- O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente do S.T.F..

[...]" [ADI nº 493-0/DF – STF – Tribunal Pleno – Rel. Min. Moreira Alves – DJ 04/09/1992]

Ademais, a percepção das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos não coloca, a rigor, o interesse meramente particular em conflito com o interesse público. Lembrando-se que essas retribuições pecuniárias estão sendo legitimamente percebidas, configurando-se um direito adquirido, e que a garantia do direito adquirido é cláusula pétrea da Constituição Federal, pode-se afirmar que o verdadeiro interesse público está na proteção irrestrita ao direito adquirido e não na sua relativização.

A garantia do direito adquirido é norma dirigida ao próprio legislador, seja ele reformador ou ordinário. É uma manifestação do poder constituinte no sentido de que o legislador deve respeitar o direito adquirido. Assim, não pode esse legislador ferir a Constituição sob o argumento de que revela um interesse público. Verdadeiro interesse público é o respeito à cláusula pétrea constitucional.

Enquanto inserida no Direito Privado, a garantia do direito adquirido tinha uma conotação meramente individual. Já no Direito Público, ela agrega um aspecto que faz com que seu respeito seja desejado por toda a sociedade e não só pelo indivíduo. Ela passou a ser uma garantia fundamental do cidadão contra o arbítrio do Estado. E é interesse de todos, para que se preserve o Estado Democrático, que o poder estatal seja exercido dentro dos limites a ele impostos, sem que haja uma válvula de escape para arbitrariedades camufladas.

Os atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles, no entanto, vão além e, ao defenderem a imediata redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos, sustentam não a inoponibilidade de direito adquirido frente às leis de ordem pública, mas a própria inexistência de direito adquirido no caso em análise. Senão, veja-se:

"É manifesto que somente o que foi adquirido de conformidade com a ordem jurídica constitucional e legal então vigente é que tem a garantia do direito adquirido. Nessa linha, no nosso entender, remunerações que estejam em valores notoriamente desproporcionais ao limite máximo constitucional – porque as vantagens pessoais, nelas incorporadas, foram excluídas no cálculo desse limite – não guardam, quanto aos valores que foram computados para aquele cálculo, razoabilidade e moralidade. Tais remunerações, portanto, podem e devem ser revistas, para o restabelecimento da observância desses princípios. Insista-se: o caminho está no exame da razoabilidade entre as vantagens pessoais, antes não sujeitas ao cálculo do teto, e os valores computados nesse cálculo. Como se vê, é possível alcançar o ideal sem ofensa às garantias individuais e, portanto, aos mandamentos constitucionais e ao real e legítimo direito adquirido." [117] [grifo nosso]

Em nota de rodapé, consta ainda na obra atualizada de Hely Lopes Meirelles:

"Se até lei pode ser declarada inconstitucional com fulcro no princípio da razoabilidade, é claro que as leis que concederam vantagens pessoais não razoáveis e imorais também podem ser declaradas inconstitucionais, o que ensejaria uma redução de remuneração a níveis razoáveis e morais. A respeito, v. as ADIn 1.047-DF, 1.063-DF e 1.158-AM." (118)

Os autores se utilizam, portanto, do princípio da razoabilidade, também conhecido como princípio da proporcionalidade [119], para justificar a inconstitucionalidade da percepção, por parte de alguns agentes públicos, de retribuições pecuniárias cujos valores que não se submetiam ao teto constitucional anterior ao trazido pela Emenda Constitucional nº 41/2003 são desarrazoadamente vultosos em relação aos valores que a ele se submetiam. Sendo inconstitucionais as vantagens, não estaria configurado direito adquirido e a garantia de intocabilidade deixaria de existir.

Ocorre que, como bem asseveraram os próprios atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles na nota de rodapé acima transcrita, o que pode ser declarado inconstitucional com base no princípio da razoabilidade é a lei que concede esta ou aquela vantagem pessoal. Com base nesse princípio, pode o Poder Judiciário ponderar se a vantagem (e não seu valor) é ou não razoável, isto é, se é ou não destituída de causa. Veja-se a ementa do acórdão exarado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.158-8/AM (citada, inclusive, pelo autor para sustentar seu posicionamento):

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI ESTADUAL QUE CONCEDE GRATIFICAÇÃO DE FÉRIAS (1/3 DA REMUNERAÇÃO) A SERVIDORES INATIVOS – VANTAGEM PECUNIÁRIA IRRAZOÁVEL E DESTITUÍDA DE CAUSA – LIMINAR DEFERIDA.

- A norma legal, que concede a servidor inativo gratificação de férias correspondente a um terço (1/3) do valor da remuneração mensal, ofende o critério da razoabilidade que atua, enquanto projeção concretizadora da cláusula do ‘substantive due process of law’, como insuperável limitação ao poder normativo do Estado.

- Incide o legislador comum em desvio ético-jurídico, quando concede a agentes estatais determinada vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa." [ADI nº 1.158-8-MC/AM – STF – Tribunal Pleno – Rel. Min. Celso de Mello – DJ 26/05/1995] [grifo do original]

E aí surge a seguinte dúvida: a vantagem pecuniária concedida em razão do tempo de serviço (adicional de tempo de serviço), em razão do exercício, durante alguns anos, de função de confiança, em razão do local ou das condições do trabalho, entre outras são irrazoáveis? Em outras palavras, são essas vantagens absolutamente destituídas de causa? Não! E como podem ser declaradas inconstitucionais?

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Há que se fazer outra reflexão: é deferido ao Poder Judiciário, além de aferir a razoabilidade da vantagem pecuniária, formular juízo de valor em relação ao seu quantum? Faz-se essa pergunta porque é exatamente isso o que defendem os atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles: examinar se é razoável que, perante os valores inseridos no então teto constitucional, as vantagens pessoais sejam pagas em valor tal ou qual. Pretendem os citados autores que o Poder Judiciário, com arrimo no princípio da razoabilidade, diga que o valor "x" pago a título de vantagem pessoal pode ultrapassar o teto e que o valor "y", não.

Em que pese o posicionamento dos respeitados autores, parece que essa solução exorbita os poderes conferidos pela Constituição ao Judiciário. Fere, portanto, a cláusula pétrea insculpida no art. 60, § 4º, inciso III, da Constituição Federal: o princípio da separação de Poderes.

Não se quer aqui condenar o uso do princípio da proporcionalidade pelo Poder Judiciário, até porque ele será utilizado neste mesmo trabalho para solucionar o aparente conflito entre os princípios da moralidade e da segurança jurídica. [120] Quer-se apenas evitar que o abuso desse princípio constitucional implícito leve a uma invasão, por parte do juiz, da competência do legislador. A solução defendida na obra atualizada de Hely Lopes Meirelles parece dar razão aos críticos da utilização do princípio da proporcionalidade em sede constitucional. [121] As palavras de Hans Huber devem ser ouvidas com atenção:

"De modo especial os princípios abertos de direito se tornam perigosos quando transpõem as respectivas fronteiras, abandonando dessa maneira os seus conteúdos. É aí que eles favorecem os deslocamentos secretos de poder na organização do Estado, tais aqueles, por exemplo, ocorridos entre juiz e legislador e legislador e administrador, conforme se há demonstrado." (122)

É por isso que Willis Santiago Guerra Filho [123], ao constatar a tendência de super-expansão do princípio da proporcionalidade, defende que se lhe atribua reflexividade, isto é, que apenas seja utilizado quando houver adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito. [124] E não parece que os atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles tenham assim agido quando propuseram a redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos.

3.1.2. Considerações finais

Destarte, as vantagens de caráter pessoal e as relativas à natureza ou local de trabalho, legitimamente incorporadas aos vencimentos dos agentes públicos até a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 41/2003, qualquer que seja seu valor, configuraram-se em direito adquirido e, como tal, não podem ser alcançadas pela superveniência de qualquer lei ou emenda constitucional. Não importa se, em decorrência da percepção dessas vantagens, as retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos se tornaram vultosas a ponto de serem alvo de discursos moralizadores.

Em relação às retribuições pecuniárias que ultrapassam o teto por decorrerem de acumulação remunerada de cargos, a questão é ainda mais grave. Não só as retribuições pecuniárias pagas até a data de vigência da Emenda Constitucional nº 41/2003 ficam protegidas, mas também as que se consolidarem depois. Isso porque se afigura como inconstitucional a expressão "percebidos cumulativamente ou não", introduzida pela Emenda Constitucional nº 41/2003 no art. 37, inciso XI da Constituição Federal de 1988. A esse respeito, nada se tem a acrescentar diante das palavras do Ministro Marco Aurélio, proferidas em seu voto na Sessão Administrativa do Supremo Tribunal Federal de 05 de fevereiro de 2004:

"É sabido que o teto constitucional tem como escopo racionalizar o sistema remuneratório, impedindo perniciosas inversões de valores. Daí a necessária observância da ordem natural das coisas, cabendo manter, tanto no campo interpretativo, quanto no cotejo constitucional, a harmonia de entendimento, a razoabilidade. Afigura-se extravagante a conclusão de que há de tomar-se o teto, representado pela remuneração de um único cargo – o de Ministro do Supremo Tribunal Federal -, para limitar remuneração decorrente de acumulação permitida pelo texto constitucional. A situação esdrúxula configura-se a partir do momento em que se terão inúmeros casos a revelar, de um lado, a delimitada permissão constitucional de acumulação e, de outro, a redução do que devido, porque, somadas as quantias satisfeitas pela ocupação dos cargos, o teto restará suplantado [...].

Tenha-se em conta o conflito da cláusula ‘percebidos cumulativamente ou não’ inserida com a Emenda Constitucional nº 41/03, no que deu nova redação ao artigo 37, inciso XI, com o texto primitivo da Constituição Federal, cuja única razão de ser está ligada à menção a remuneração, subsídio, proventos, pensões e outras espécies remuneratórias. Admitida pela Lei Maior a acumulação, surge inconstitucional emenda que a inviabilize, e a tanto equivale restringir os valores remuneratórios dela resultantes. A previsão limitadora – ‘percebidos cumulativamente ou não’ – além de distanciar-se da razoável noção de teto, no que conduz a cotejo individualizado, fonte a fonte, conflita com a rigidez constitucional decorrente do art. 60, §4º, inciso IV, da Carta.

Simplesmente o Estado não pode dar com uma das mãos e retirar com a outra; não pode assentar como admissível a acumulação e, na contramão desta, afastar a contrapartida que lhe é natural, quer no todo – quando, então, se passaria a ter prestação de serviço gratuito -, quer em parte, mitigando-se o que devido. Direitos e garantias individuais são aqueles previstos na Constituição, não cabendo distinguir posições, ou seja, integração passada, presente ou futura, em certa relação jurídica."

É bom frisar que a existência de um teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos é um instrumento para a concretização do princípio da moralidade. Mais que isso, é mesmo necessário para que o Estado não passe a ser um veículo de aprofundamento das desigualdades sociais. Para cumprir esse papel moralizador, é realmente desejável que o teto de retribuição seja propositadamente rigoroso e impeça qualquer tentativa de burla.

O que não pode ocorrer, no entanto, é que o legislador reformador, no afã de corresponder aos anseios da sociedade por eliminação das injustiças sociais, eleja alguns agentes públicos como mártires, talvez para esconder a falta de implementação de algumas políticas públicas mais eficazes. E o que é mais perigoso é que, por trás de uma medida altamente popular, está o ferimento a um dos basilares princípios da ordem constitucional vigente: a segurança jurídica. Como afirma Canotilho, os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos são elementos constitutivos do Estado de Direito. [125] O seu desrespeito abre um precedente enorme para que direitos de maior alcance social sejam alvejados no futuro.

3.2. MORALIDADE VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA

3.2.1. Uma observação necessária

Chega-se, por fim, à discussão acerca do princípio da moralidade. No fundo, a intenção que move grande parte dos bem intencionados a defender a redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos não é outra se não o sentimento mais que louvável da busca por maior justiça social, pelo arrefecimento das desigualdades, etc. Num país em que as distâncias sociais são enormes, qualquer atitude (nem que seja meramente simbólica) que sinalize para a contenção dos gastos estatais com os indivíduos mais aquinhoados é aplaudida e incentivada por todos.

Na seara jurídica, no entanto, não se pode subscrever uma medida sem procurar enxergar não só suas conseqüências imediatas, mas também seus possíveis desdobramentos, ainda mais quando está em jogo um direito fundamental como o direito adquirido, corolário do basilar princípio da segurança jurídica, este, como dito acima, um dos elementos constitutivos do Estado de Direito. Foi o que se propôs fazer no presente trabalho.

Seria moralmente insustentável (conquanto juridicamente possível) defender a manutenção de altas retribuições pecuniárias de alguns poucos agentes públicos, estando imbuído de uma vontade meramente egoística. Mas, quando se vislumbra que a redução de tais retribuições pecuniárias pode, ao relativizar um direito fundamental, fazer estremecer as bases de um princípio constitucional (segurança jurídica) que, em última análise, mantém a harmonia social, tanto o Direito quanto a Moral indicam um posicionamento pelo respeito ao direito adquirido.

Com essa observação, quer-se deixar claro que a solução adiante proposta para o conflito entre os princípios da moralidade e da segurança jurídica no caso em tela não parte de um desprezo (muito menos de uma discordância) ao primeiro. Como se verá, o que anima o caminho trilhado é muito menos a preocupação com o dinheiro dos agentes públicos mais afortunados do que a necessidade de impedir que se abra um precedente perigoso a outros direitos adquiridos.

3.2.2. O princípio da proporcionalidade como guia a solucionar o conflito

O fato é que o princípio da moralidade é largamente utilizado para justificar a redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos. A primeira pergunta que vem à mente é se se constitui mesmo em imoralidade a percepção dessas retribuições pecuniárias por parte dos agentes públicos. Essa questão dificilmente foge de uma valoração subjetiva de cada um que analise o caso.

Tal subjetivismo decorre da existência dos vários aspectos que podem ser focalizados. Por um lado, ao se analisar a média salarial dos trabalhadores brasileiros, ver-se-á que as altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos destoam, gerando um sentimento de perplexidade. Por outro lado, pode-se sopesar que, em grande parte, os agentes públicos de que trata o presente trabalho são de alta qualificação, exercentes, na maioria das vezes, de cargos de grande responsabilidade.

Não se pode negar que a percepção de altas retribuições pecuniárias por parte de alguns agentes públicos vai de encontro ao sentimento comum da sociedade do que seja moral. No entanto, talvez esse sentimento esteja mais ligado ao baixo valor da base do que ao alto valor do teto. Pode-se afirmar (agora com um grau de certeza maior) que aquilo que mais fere o princípio da moralidade, no que se refere ao tema da retribuição pecuniária de agente público, é a ainda comum prática de auferir vantagens pecuniárias sem prestar o correspondente serviço. [126]

Mas, para se atingir o mínimo de certeza que o discurso científico requer, não se pode pautar uma solução (redução ou não das retribuições pecuniárias) apenas em impressões subjetivas. Se há quem considere imoral (e, até certo ponto, é mesmo) a percepção das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos e, com base nesse argumento, defenda sua imediata redução, há que se analisar a questão juridicamente. Há que se buscar no Direito uma resposta.

De um lado está, portanto, o princípio da moralidade a justificar a mencionada redução. De outro se encontra o princípio da segurança jurídica a pugnar pelo respeito ao direito adquirido. Ambos os princípios se materializam em sede constitucional e, nessa qualidade, têm a mesma hierarquia. Para solucionar o conflito, entra em cena o princípio da proporcionalidade.

Como se sabe, os princípios, diferentemente das regras, não incidem sob a forma do tudo ou nada. Diante das circunstâncias do caso concreto, pode-se não aplicar um princípio aos fatos que, prima facie, a ele se subsumem. [127] Como afirma, textualmente, Daniel Sarmento,

"Isso ocorre porque, ao contrário das regras, os princípios são dotados de uma dimensão de peso. Tal característica revela-se quando dois princípios diferentes incidem sobre determinado caso concreto, entrando em colisão. Nesta hipótese, o conflito é solucionado levando em consideração o peso relativo assumido por cada princípio dentro das circunstâncias concretas presentes no caso, a fim de que se possa precisar em que medida cada um cederá espaço ao outro." (128)

E é exatamente essa a tarefa do princípio da proporcionalidade: identificar, no caso concreto, a dimensão de peso de cada princípio contraposto. Esse princípio (o da proporcionalidade) adveio do Direito Administrativo [129], onde era (e ainda é) utilizado para limitar o poder discricionário do administrador. Ingressou no Direito Constitucional com a missão de limitar o igualmente discricionário poder do legislador, máxime no tocante às limitações aos direitos fundamentais. É como assevera Paulo Bonavides:

"Ora, o princípio da proporcionalidade – e esta é talvez a primeira de suas virtudes enquanto princípio que limita as limitações aos direitos fundamentais – transforma, enfim, o legislador num funcionário da Constituição, e estreita assim o espaço de intervenção ao órgão especificamente incumbido de fazer as leis." (130)

O princípio da proporcionalidade está implícito no texto constitucional brasileiro, sendo inferido a partir do princípio do devido processo legal [131], considerado este em seu caráter substantivo. Pelo menos é assim que vem entendendo o Supremo Tribunal Federal [132], nitidamente inspirado pela interpretação evolutiva que se fez nos Estados Unidos e que culminou com a definição do substantive due process of law. [133]

O princípio da proporcionalidade, no dizer de Willis Santiago Guerra Filho, juntamente com o princípio da isonomia, são "[...] engrenagens essenciais do mecanismo político-constitucional de acomodação dos diversos interesses em jogo, em dada sociedade, sendo, portanto, indispensáveis para garantir a preservação de direitos fundamentais [...]". [134] Assim, o princípio da proporcionalidade permite o sopesamento dos interesses e bens jurídicos em conflito, solucionando-o de forma a que maximize o respeito a todos os interesses envolvidos.

Para que realize seu trabalho a contento, o princípio da proporcionalidade se subdivide em três sub-princípios: a) princípio da conformidade ou adequação dos meios; b) princípio da exigibilidade ou da necessidade e c) princípio da proporcionalidade em sentido estrito. [135] É através da análise, no caso concreto, do respeito (ou não) a esses três sub-princípios que se verá se a redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos, possivelmente alicerçada no princípio da moralidade, é (ou não) proporcional aos estragos causados ao princípio da segurança das relações jurídicas.

3.2.3. Moralidade e segurança jurídica sob a ótica da adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito

Para que a redução das retribuições pecuniárias dos agentes públicos, calcada no princípio da moralidade, esteja de acordo com o princípio da proporcionalidade e seja, portanto, constitucional, necessário que a medida coativa ao direito adquirido [136] seja adequada, exigível e proporcional. Faltando um dos elementos, será inaceitável qualquer relativização do direito individual sob a justificativa de favorecimento ao interesse geral da sociedade.

O sub-princípio da adequação consiste em verificar se os meios utilizados são aptos (adequados) para a consecução do fim a que se propôs. Pois bem, a finalidade da redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos é concretizar o princípio da moralidade, eliminando situações que o contrariem. Sob essa ótica, a redução pretendida por alguns atinge, de certo modo, seu objetivo.

Considerando que a percepção das altas retribuições pecuniárias é realmente imoral, sua (das retribuições) imediata redução auxilia na concretização do princípio da moralidade. Destaque-se, porém, que essa concretização se dá de forma muito tímida, já que várias outras situações existem que contrariam muito mais o princípio da moralidade. Certamente se medidas fossem tomadas para aumentar o valor da base salarial dos agentes públicos, para acabar com a existência de agentes públicos fantasmas, entre outras perplexidades, o princípio da moralidade agradeceria muito mais.

Vê-se, portanto, que apenas uma ínfima parcela do conteúdo axiológico do princípio da moralidade seria beneficiada com a redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos. Adequada, destarte, a medida até que pode ser, mas isso porquanto os objetivos são muito modestos.

Mas será que a redução das retribuições pecuniárias passa pelo teste da exigibilidade? Daniel Sarmento, ao tratar do sub-princípio da exigibilidade (ou necessidade), fala que "[...] a tônica deste sub-princípio recai sobre a idéia de que se deve perseguir, na promoção dos interesses coletivos, a menor ingerência possível na esfera dos direitos fundamentais do cidadão." [137] Acrescenta Canotilho que, para uma maior operacionalidade prática desse sub-princípio, a doutrina acrescenta alguns elementos (exigibilidade material, espacial, temporal e pessoal). [138]

Ora, o interesse coletivo que se busca com a imediata redução de todas as retribuições pecuniárias dos agentes públicos para que elas (as retribuições pecuniárias) se adeqüem ao teto estabelecido pela Emenda Constitucional nº 41/2003 é, como dito acima, concretizar uma parcela do princípio da moralidade. O novo teto constitucional veio com a manifesta intenção de impedir as distorções hoje existentes. Será que, para impor novo paradigma moral (e jurídico) do que seja aceitável em termos de retribuição pecuniária, o poder reformador precisava tocar nas situações já cobertas pelo manto da garantia do direito adquirido? Em outras palavras, será que, para falar que a percepção desenfreada de vantagens de caráter pessoal ou de qualquer outra natureza não seria mais moralmente (e juridicamente) aceita, a Emenda Constitucional nº 41/2003 necessitava ordenar a redução daquelas vantagens já incorporadas ao patrimônio jurídico dos agentes públicos?

Tudo leva a crer que não. O princípio da moralidade, cujo conteúdo é fluido e varia conforme a evolução da sociedade, estaria da mesma forma sendo privilegiado se as exigências de adequação ao novo teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos fossem aplicadas ex nunc, ou seja, apenas às situações que viessem a se configurar posteriormente (exigibilidade temporal). Tal medida, além de privilegiar o princípio da moralidade, respeitaria in totum o princípio da segurança jurídica, pois resguardaria o direito adquirido, cláusula pétrea constitucional.

Imagine-se se o princípio da moralidade pudesse justificar a constante retroação de medidas coercitivas a direitos fundamentais. Suponha-se, por exemplo, que no futuro a sociedade venha a considerar imoral o percebimento de pensões (assim como já considerou em relação às pensões das filhas de militares). Para que a nova moralidade se impusesse, necessário seria o imediato corte de todas as pensões até então legitimamente percebidas? Parece que não. A eficácia ex nunc dos novos valores morais (e jurídicos) pode muito bem (e deve) se harmonizar com a transitória persistência de situações já consolidadas sob a ordem jurídica (e moral) anterior.

Dessa forma, a redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos é uma medida desnecessária, inexigível para a concretização de parcela (ínfima, repita-se) do princípio da moralidade. Os direitos adquiridos dos agentes públicos estariam a sofrer uma ingerência dispensável para a obtenção do fim almejado (moralidade). Se se aplicar o novo teto de retribuição pecuniária apenas às situações futuras, preservam-se a moralidade e a segurança jurídica. É, portanto, um meio menos gravoso aos direitos fundamentais.

O que mais salta aos olhos, no entanto, não é nem a inexigibilidade da mencionada redução, mas sim sua desproporcionalidade. Ao tratar do sub-princípio da proporcionalidade em sentido estrito, Daniel Sarmento assevera que

"Na verdade, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito convida o intérprete à realização de autêntica ponderação. Em um lado da balança devem ser postos os interesses protegidos com a medida, e no outro, os bens jurídicos que serão restringidos ou sacrificados por ela. Se a balança pender para o lado dos interesses tutelados, a norma será válida, mas, se ocorrer o contrário, patente será a sua inconstitucionalidade." (139)

Assim, há que se medir os prós e os contras, as vantagens e desvantagens da redução das retribuições pecuniárias dos agentes públicos. Se as vantagens forem maiores, proporcional será a medida. Do contrário, sua inconstitucionalidade se verifica. E a segunda opção é a que se dá no caso sob comento.

Ora, como já se demonstrou acima, a redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos só pode ser tida como adequada exatamente porque os objetivos visados com a medida são muito modestos. Insulta muito mais a moralidade o reduzido valor da retribuição pecuniária dos que ganham menos, a desavergonhada (mas freqüente) prática de auferir retribuição pecuniária sem trabalhar (como ocorre em inúmeros cargos de comissão). A redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos (normalmente de alta formação acadêmica e profissional), se tem um viés moralizador, certamente representa contribuição mínima para a concretização do princípio da moralidade (atuarialmente a contribuição também é diminuta). E o que se vê do outro lado da balança?

Embora pareça que a redução das altas retribuições pecuniárias não imponha à coletividade grandes sacrifícios, pois só atingiria uma pequena elite de agentes públicos, esse sacrifício é enorme. Não se pode perder de vista que o bem jurídico que se pretende relativizar é um direito fundamental da República Federativa do Brasil, cláusula pétrea da Constituição Federal. O direito adquirido, portanto, funciona não somente como uma garantia para o indivíduo, mas também como uma garantia para a sociedade de que o Estado atuará dentro dos limites a ele impostos.

Acrescente-se que uma relativização, por menor que seja, da garantia do direito adquirido teria conseqüências devastadoras no princípio da segurança jurídica. Este, que pugna pela previsibilidade e tranqüilização das relações jurídicas, estaria a ser relativizado no que tem de essencial (isso quer dizer que estaria sendo aniquilado). Quer prejuízo maior para uma sociedade do que perder exatamente aquilo que fez com que ela se organizasse através do Direito, ou seja, a busca da segurança das relações?

Através da redução das altas retribuições pecuniárias de alguns agentes públicos, medida altamente popular, estaria aberto o precedente para o sistemático desrespeito aos direitos adquiridos. E mesmo que tal precedente nunca seja invocado (o que não se pode assegurar), basta a situação de total insegurança dos cidadãos para que a mencionada redução seja inconstitucional. A qualquer momento outros direitos adquiridos poderão vir a ser relativizados em nome de interesse nem tão elogiável assim. E não se justifica o sacrifício completo de um direito fundamental (direito adquirido) para a obtenção de tão poucos resultados.

Destarte, ao se analisar o conflito entre os princípios da moralidade e da segurança jurídica no caso do teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos sob a ótica da adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito (sub-princípios do princípio da proporcionalidade em sentido amplo), conclui-se pela maior importância, no caso, do segundo. Para se compatibilizar tais princípios, basta que se garanta a percepção daquelas retribuições pecuniárias já incorporadas ao patrimônio jurídico dos agentes públicos e se aplique, daí por diante, o novo regramento constitucional. Com essa solução, ambos os princípios se harmonizam e se evita a supressão total de um deles (no caso, o princípio da segurança jurídica). [140]

3.2.4. Dignidade da pessoa humana, democracia e direito adquirido

Há ainda outra razão para se dar maior ênfase ao princípio da segurança jurídica em seu conflito com a moralidade. É que, ao se privilegiar, no caso, a segurança das relações jurídicas, dá-se destaque a uma garantia individual (direito adquirido), garantia essa que, como todos os direitos e garantias individuais postos na Constituição Federal, na esteira do pensamento de Carlos Ayres Britto, é uma concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e está intimamente relacionado com a democracia. [141]

Ao se resolver conflito entre princípios constitucionais, notadamente através do princípio da proporcionalidade, deve-se sempre buscar, como afirma Daniel Sarmento, a promoção dos valores humanísticos superiores que, não por acaso, estão sintetizados no princípio da dignidade da pessoa humana. [142] E a garantia do direito adquirido, como toda garantia da esfera individual do cidadão, está a serviço, em última análise, da promoção da dignidade da pessoa humana.

Partindo-se, então, da idéia lançada por Carlos Ayres Britto de que os direitos e garantias individuais são desdobramentos do princípio da dignidade da pessoa humana – e são mesmo, pois não se vislumbraria esse princípio sem os direitos e garantias individuais – e da constatação de Daniel Sarmento de que a ponderação de interesses deve se orientar para a concretização dos valores humanísticos superiores sintetizados na dignidade da pessoa humana, o conflito entre os princípios da segurança jurídica e da moralidade, no caso do teto de retribuição pecuniária dos agentes públicos, deve se orientar para o maior respeito à segurança jurídica, pois esta, no caso em análise, está a proteger uma garantia individual (direito adquirido).

É a solução mais consentânea, aliás, com a própria democracia, pois reforça os limites do poder do ente estatal e protege o indivíduo contra a sanha incontrolável do Estado em cada vez mais interferir na vida dos cidadãos. E não se precisa explicitar a que fim leva o caminho de constante ampliação das competências estatais em detrimento dos direitos e garantias individuais do cidadão. À negação da democracia. Dignas de nota são as palavras de Carlos Ayres Britto:

"Nessa mesma direção, imaginemos uma fundada hesitação exegética entre ampliar ou restringir a eficácia de uma norma constitucional que outorgue direito individual oponível ao Estado. Qual a preferência do intérprete? A preferência é pelo fortalecimento eficacial da norma, sabido que os direitos e garantias individuais cumprem o papel técnico e até mesmo histórico de afirmar o princípio da dignidade da pessoa humana e assim conter o Poder em certos limites. E a Democracia política vive é de técnicas restritivas do Poder, ora diretamente, ora de esguelha, e não de mecanismos ampliadores das competências governamentais para além dos estritos limites da necessidade do exercício delas [e já se demonstrou que a redução das retribuições pecuniárias não é uma medida necessária]" (143) [grifo nosso]

E não se diga que o só fato de se estar a defender as altas retribuições pecuniárias de uma elite de agentes públicos faria com que o ferimento aos princípios democrático e da dignidade da pessoa humana não passasse, no caso, de pura retórica, forçosamente aplicada. Isso porque a redução das retribuições pecuniárias dos agentes públicos, como já afirmado [144], é aqui denunciada menos por causa de suas conseqüências no contracheque mensal de alguns agentes públicos e mais por causa do precedente nefasto aos direitos e garantias individuais que se abriria ao Poder Estatal, sempre ávido por mais poder. Dessa forma é que os princípios da dignidade da pessoa humana e da democracia se aproximam de um tema aparentemente alheio a eles. Lembre-se que a História traz inúmeros casos em que os grandes males tiveram como embrião justificativas até certo ponto elogiáveis.

Dessa forma, não há mesmo qualquer possibilidade jurídica de se reduzirem as retribuições pecuniárias dos agentes públicos sob o argumento de adequação aos novos limites constitucionais. A garantia do direito adquirido, corolário do princípio da segurança jurídica, um dos pilares do Estado Democrático de Direito e, conseqüentemente, cláusula pétrea da Constituição Federal, deve ser rigorosamente respeitada até mesmo por emenda constitucional. E o respeito ao direito adquirido não é em nada incompatível com a observância do princípio da moralidade.

3.3. A NECESSÁRIA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 9º DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 41/2003

Após toda a explanação feita, resta apenas responder a um questionamento: é indispensável, para se manter o respeito à ordem constitucional vigente, declarar-se a inconstitucionalidade do art. 9º da Emenda Constitucional nº 41/2003? Ou será que a técnica da interpretação conforme a Constituição [145] pode ser utilizada para se evitar a sempre traumática expulsão de uma norma do ordenamento jurídico? Veja-se, inicialmente, o que diz o art. 9º da referida emenda constitucional:

"Art. 9º. Aplica-se o disposto no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aos vencimentos, remunerações e subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza." [grifo nosso]

Primeiramente, ressalte-se que, havendo possibilidade de se manter uma norma no ordenamento jurídico, é sempre preferível essa solução a uma declaração de inconstitucionalidade, pois gera menos traumas ao sistema jurídico (conjunto interligado de normas). No entanto, afirma Canotilho que "[...] a interpretação conforme a constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (=espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela [...]". [146]

No caso em estudo, infelizmente, não há como se escapar da declaração de inconstitucionalidade da norma jurídica supracitada. Isso porque a literalidade (e também a finalidade) do referido art. 9º conduz ao entendimento único de que se pretende aplicar o art. 17 do ADCT, que autoriza a redução de retribuições pecuniárias percebidas em desacordo com a Constituição, não se podendo invocar direito adquirido, às retribuições percebidas "[...] cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza". Em outras palavras, de forma inequívoca, o dispositivo em análise intentou aplicar às retribuições pecuniárias dos agentes públicos, incluindo todas as vantagens pecuniárias de caráter remuneratório, um artigo transitório da Constituição que se referia a limites de retribuição que não incluíam as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza e ao local de trabalho e nem consideravam a acumulação remunerada de cargos.

A questão não está em saber se o art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias está ou não exaurido [147], mas sim em analisar a quais limites se reporta o art. 9º da Emenda Constitucional nº 41/2003 quando manda aplicar o art. 17 do ADCT. Se, ao mencionar o art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Emenda Constitucional nº 41/2003 tivesse se reportado também aos mesmos limites impostos no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal originária, não haveria pecha de inconstitucionalidade, embora fosse inútil o dispositivo. [148]

O que ocorre, na verdade, é uma tentativa de burla ao direito adquirido. O art. 9º da Emenda Constitucional nº 41/2003 não podia se remeter à aplicação do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias sem que se referisse também àqueles limites postos na Constituição originária. Ao incluir as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, bem como a acumulação de cargos, o discurso normativo se tornou inconstitucional.

E não cabe aqui se aplicar a técnica da interpretação conforme a Constituição com redução de texto [149], em que se declararia a inconstitucionalidade somente da expressão "[...] percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza", pois isso resultaria, como já destacado, na completa desnecessidade da norma restante. Não há necessidade que uma norma (art. 9º) diga que outra (art. 17 do ADCT) será aplicada nas situações que esta (art. 17 do ADCT) mesma estabelece. Segundo palavras do Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, "[...] irregularidades existentes hão de ser expungidas mediante o acionamento dos preceitos de regência, sendo dispensável nova normatização". [150] Ademais, assim adverte Canotilho:

"[...] Se os órgãos aplicadores do direito, sobretudo os tribunais, chegarem à conclusão, por via interpretativa, de que uma lei contraria a constituição, a sua atitude correcta só poderá ser a de desencadear os mecanismos constitucionais tendentes à apreciação da inconstitucionalidade da lei. Daqui se conclui também que a interpretação conforme a constituição só permite a escolha entre dois ou mais sentidos possíveis da lei mas nunca uma revisão do seu conteúdo. A interpretação conforme a constituição tem, assim, os seus limites na <letra e na clara vontade do legislador>, devendo <respeitar a economia da lei> e não podendo traduzir-se na <reconstrução> de uma norma que não esteja devidamente explícita no texto [...]." [151]

Destarte, a declaração de inconstitucionalidade do art. 9º da Emenda Constitucional nº 41/2003 é indispensável, pois qualquer tentativa de conformá-lo à Constituição está, na verdade, a forçar uma correção pelo Poder Judiciário de uma norma claramente inconstitucional. E é inconstitucional porque visa a ferir a cláusula pétrea da garantia do direito adquirido (art. 5º, XXXVI, CF), corolário do princípio da segurança jurídica, um dos elementos constitutivos do Estado de Direito.

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Sobre o autor
Júlio de Melo Ribeiro

bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Júlio Melo. Teto de retribuição pecuniária e direito adquirido:: uma abordagem acerca da Emenda Constitucional nº 41/2003. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 517, 6 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6017. Acesso em: 26 abr. 2024.

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