Capa da publicação Estupro sem contato físico: limites para enquadramento do fato à norma
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Estupro sem contato físico

27/10/2017 às 08:00
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Até 2009, a ideia de estupro, na lei penal, consistia na conjunção carnal violenta entre homem e mulher. O atentado violento ao pudor era um constrangimento, ou qualquer outra prática libidinosa. Após a Lei nº 12.015/09, esses dois crimes foram agrupados e passou-se a denominá-los, num tipo só, de estupro.

i - O CRIME DE ESTUPRO E A LEI 12.015/09

O delito de estupro é um crime contra a dignidade sexual. 

O estupro, hoje, com a Lei 12.015/2009, passa a ser considerado um crime comum, e não mais bi-próprio, podendo ser praticado por homem ou mulher, podendo  ter, como sujeito passivo, homem ou mulher. 

A ação típica do estupro é constranger (forçar, compelir) alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele outro se pratique outro ato libidinoso. Unificam-se as condutas antes descritas nos artigos 213 e 214 do Código Penal, ou seja, o bem jurídico tutelado, repito, passou a ser a liberdade sexual do homem e da mulher.

Se para a consumação do estupro, pela conjunção carnal, não se exige a completa introdução do pênis na vagina, nem é necessário a ejaculação, no que toca ao ato libidinoso, a forma de consumação é mais ampla, bastando o toque físico eficiente para gerar a lascívia ou o constrangimento efetivo da vítima a se expor sexualmente ao agente para ser atingida a consumação. É, pois, crime material, comissivo, de dano (a consumação demanda lesão ao bem tutelado), unissubjetivo (pode ser cometido por uma só pessoa), plurissubsistente, pois é praticado em vários atos, admitindo tentativa.

Exige-se o dolo como elemento subjetivo. A oposição da vítima deve ser sincera e positiva, manifestando-se por inequívoca resistência, não bastando a oposição meramente simbólica, por simples gritos ou ainda passiva e inerte (RT 429/376). Ato libidinoso é qualquer ato que satisfaça a libido alheia, mediante violência ou grave ameaça, não se incluindo, aqui, fotos, escritos ou imagens. O beijo lascivo pode ser considerado no tipo hoje existente.

Além disso, o estupro se qualifica caso haja lesão corporal de natureza grave ou ainda resultasse morte. Da maneira como está hoje a redação do artigo 213 do Código Penal,o tipo previsto  no artigo 181 do Anteprojeto (Manipulação e introdução sexual de objetos) pode ser absorvido pelo estupro. Discute-se se a ação penal nos casos de estupro, exceto no caso de vulnerável e de pessoa vítima até 18 anos, deve ser feita mediante representação.

Por sinal, a Procuradoria-Geral da Republica ajuizou ação direta de inconstitucionalidade(ADI 4.301) no Supremo Tribunal Federal contra a redação que foi dada ao artigo 225 do Código Penal, que prevê que, nos crimes de estupro que resultem lesão corporal grave ou morte, O Ministério Público deve proceder mediante ação penal pública condicionada.

Ora, nos demais crimes definidos na legislação penal que acarretem lesão grave ou morte, a ação penal é sempre pública incondicionada. Permissão com relação a ação penal pública condicionada nesses casos fere o principio da razoabilidade. Ademais, fere o princípio da dignidade da pessoa humana(artigo 1º, III, CF), ao princípio da proibição da proteção deficiente, importante ofensa ao principio da proporcionalidade, deixando sem proteção bens jurídicos normalmente tratados como de elevada importância.

Por força do artigo 56, V, o Anteprojeto coloca o estupro e o estupro de vulnerável como crimes hediondos, seja na forma consumada ou tentada. Segue-se o histórico traçado na Lei 8.072/90. Realmente, como revelou Hélio Gomes(Medicina Legal, Biblioteca Universitária Freitas Bastos, pág. 480), o estupro é o que revela maior temibilidade do delinquente, revelando o primitivismo e selvageria dos estupradores.

O estupro com violência presumida, já com a Lei 12.015, já havia deixado de existir. Passou a ser estupro de vulnerável, hipótese de prática de conjunção carnal ou ato libidinoso contra menores de 14 anos. Recentemente a imprensa divulgou fato em que o autor do crime teria se masturbado e ejaculado no pescoço da vítima, passageira de um ônibus, em São Paulo. 

Trata-se de crime de estupro. 

Até 2009, a ideia de estupro [na lei] era conjunção carnal violenta, ou seja, uma relação sexual violenta entre homem e mulher. O atentado violento ao pudor era um constrangimento ou qualquer outra prática libidinosa. Em 2009, esses dois crimes foram agrupados e passou-se a chamar ambos de estupro.

O entendimento que se tem  é de  que a figura do estupro é muito ampla. Um beijo forçado, ou apalpar o corpo, pode ser visto como estupro. 

 Na lição de Cesar Roberto Bitencourt, “não é necessário que se esgote toda a capacidade de resistência da vítima, a ponto de colocar em risco a própria vida, para reconhecer a violência ou grave ameaça”(Tratado de direito penal, volume IV, 6ª edição, pág. 51). Tratando-se de vítimas vulneráveis, com ou sem o seu consentimento, o crime será o de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A).

São duas as formas, por parte da vítima, de cometer o estupro: (1) praticar – é o caso em que a vítima tem participação ativa, ou seja, é ela quem pratica o ato libidinoso; (2) permitir que se pratique– sugere atitude passiva da vítima, a qual é obrigada a suportar a conduta do agente. Não é necessário que haja contato físico entre o autor do constrangimento e a vítima. O agente pode, por exemplo, obrigá-la a se masturbar diante dele, sem tocá-la em momento algum(André Estefan, Direito Penal, volume III,2011, pág. 145).

(a) Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal – a vítima é obrigada a ter conjunção carnal com o agente em uma relação exclusivamente heterossexual (entre vítima mulher e agente homem ou vítima homem e agente mulher);

(b) Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar outro ato libidinoso – nessa hipótese a relação pode ser heterossexual ou homossexual, onde a vítima (homem ou mulher) desempenha um papel ativo, pois ela pratica algum ato libidinoso diverso da conjunção carnal nela própria (exemplo: automasturbação) ou em terceiro (exemplo: felação(significa sexo oral feito no órgão genital masculino, independente do sexo do praticante ativo).

(c) Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso – nessa hipótese a relação pode também ser heterossexual ou homossexual, mas o papel da vítima é exclusivamente passivo, pois permite que nela se pratique um ato libidinoso diverso da conjunção carnal (exemplos: sexo anal e cunnilingus).

Não  há necessidade de contato físico entre o autor e a vítima, cometendo o crime o agente que, para satisfazer a sua lascívia, ordena que a vítima explore seu próprio corpo (masturbando-se), somente para contemplação (tampouco há que se imaginar a vítima desnuda para a caracterização do crime - RT 429/380), como evidenciou Rogério Sanches Cunha(Manual de direito penal, parte especial, 8º edição, pág. 460).

Na prática de atos libidinosos, a vítima também pode desempenhar, simultaneamente, papeis ativo e passivo. Nessas duas ultimas condutas - praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso é dispensável o contato físico de natureza erótica entre o estuprador e a vítima como ensinou  Cleber. Masson (Codigo Penal comentado / Cleber Masson. 2. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; Sao Paulo: METODO, 2014. p. 825).

Rogério Greco, por sua vez, reporta-se ao escólio do professor Luiz Régis Prado para arrolar algumas das condutas que configuram ato libidinoso passível da imputação ora discutida: 

[...]fellatio ou irrumatio in ore, o cunnilingus, o pennilingus, o annilingus (espécies de sexo oral ou bucal); o coito anal, o coito interfemora; a masturbação; os toques ou apalpadelas com significação sexual no corpo ou diretamente na região pudica (genitália, seios ou membros inferiores etc.) da vitima; a contemplação lasciva ; os contatos voluptuosos, uso de objetos ou instrumentos corporais (dedo, mão), mecânicos ou artificiais, por via vaginal, anal ou bucal, entre outros. (Luiz Prado Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2 , p.601 apud Rogério Greco, Curso de Direito Penal: parte especial,volume III. 12a. ed. Niterói: Impetus, 2015, p. 468). 


II - A POSIÇÃO DO STJ E A NÃO EXIGÊNCIA DE CONTATO FÍSICO PARA O ESTRUPRO 

A  prática da conjunção carnal, e de outros atos libidinosos (exemplos: sexo oral ou anal), praticados no mesmo contexto fático contra a mesma vítima, caracterizam crime único de estupro (e não mais concurso material).

Ao julgar processo sobre rede de exploração de menores que envolve políticos e empresários de Mato Grosso do Sul, o Superior Tribunal de Justiça considerou legítima denúncia por estupro de vulnerável, mesmo sem contato físico do agressor com a vítima (RHC 70.976 - MS, DJe de 10 de agosto de 2016).

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Em decisão unânime, a Quinta Turma do STJ ratificou conceito adotado pelo TJ de Mato Grosso do Sul.

No caso analisado, uma menina de dez anos foi levada a um motel por terceiros e forçada a tirar a roupa na frente de um homem, que pagou R$ 400 pelo encontro, além de comissão à irmã da vítima. Segundo a denúncia, o evento se repetiu.

A defesa do acusado alegou que a denúncia é inepta, pois não é possível caracterizar um estupro consumado sem contato físico entre as pessoas.

O relator do processo, ministro Joel Ilan Paciornik, disse que no caso analisado o contato físico é irrelevante para a caracterização do delito.

“A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido”, votou Paciornik.

Para o magistrado, a dignidade sexual é passível de ser ofendida, mesmo sem agressão física.

O Ministério Público Federal considerou que o ato lascivo de observar a criança nua preenche os requisitos previstos na legislação brasileira para ser classificado como um caso de estupro, por se tratar de menor sem chances de defesa e compreensão exata do que estava ocorrendo.


III - AS FORMAS QUALIFICADORAS E AS CAUSAS DE AUMENTO DE PENA 

O crime de estupro noticiado é crime hediondo. O delito teria sido contra menor de dezoito anos, o que atesta a sua gravidade e deve ser objeto de ação penal pública incondicionada.

O Superior Tribunal de Justiça definiu, em julgamento de recurso repetitivo, que estupro e atentado violento ao pudor constituem crimes hediondos mesmo sem causarem lesão corporal grave ou morte da vítima. O entendimento afasta a tese de que os crimes sexuais só poderiam ser considerados hediondos nessas duas hipóteses.

Os §§ 1º e 2º, do art. 213, do Código Penal, elencam as formas qualificadas do estupro, alterando o mínimo e o máximo das penas previstas em abstrato. São três as qualificadoras (circunstâncias específicas), a saber:

(a) Estupro qualificado pela lesão corporal de natureza grave (§ 1º, primeira parte) – Enquanto o estupro simples (tipo básico) tem pena de reclusão de 6 a 10 anos, o estupro qualificado pela lesão corporal de natureza grave tem pena de reclusão de 8 a 12 anos.

A expressão lesão corporal de natureza grave foi utilizada em sentido amplo, ou seja, abrange as lesões corporais graves e gravíssimas (CP, art. 129, §§ 1º e 2º). Eventuais lesões corporais leves, ou mera contravenção de vias de fato, decorrentes da violência empregada pelo agente ficam absorvidas pelo crime-fim (estupro).

Essa qualificadora é exclusivamente preterdolosa, ou seja, pressupõe que haja dolo no estupro e culpa em relação ao resultado lesão grave. Assim, se ficar demonstrado que houve dolo (direito ou eventual) também em relação à lesão corporal, o agente responde por estupro simples em concurso material com a lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, conforme o caso.

(b) Estupro qualificado pela idade da vítima (§ 1º, última parte) – Com a mesma pena prevista para a qualificadora anterior, o estupro é qualificado se a vítima é menor de 18 e maior de 14 anos. Se a vítima for menor de 14 anos, o crime é de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A), independentemente do emprego da violência ou grave ameaça.

(c) Estupro qualificado pela morte (§ 2º) – Enquanto o estupro simples (tipo básico) tem pena de reclusão de 6 a 10 anos, o estupro qualificado pela morte tem pena de reclusão de 12 a 30 anos.

Essa qualificadora também é exclusivamente preterdolosa, ou seja, pressupõe que haja dolo no estupro e culpa em relação ao resultado morte.

No crime de estupro a lei prevê causas de aumento de pena. 

Aumento de quarta parte, se o crime é cometido em concurso de duas ou mais pessoas (CP, art. 226, I).  Esse aumento de pena tem fundamento na maior facilidade obtida pelo agente no emprego dos meios de execução do delito.

Se  o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor (aquele que ministra educação individualizada) ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela (CP, art. 226, II). 

Aumento de metade, se o crime resultar gravidez (CP, art. 234-A, III)– Esse aumento de pena se justifica pelo fato do crime ofender a dignidade sexual e ainda resultar em uma gravidez indesejada. Entretanto, observa-se que não se pune o aborto praticado por médico, quando precedido do consentimento da gestante, e se a gravidez resulta de estupro (CP, art. 128, II).

 Aumento de um sexto até metade, se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador (CP, art. 234-A, IV)– Esse aumento de pena incide quando o sujeito, agindo com dolo direto (sabe) ou eventual (deve saber), contamina a vítima por meio do contato sexual. A exasperante exige o efetivo contágio, diversamente dos crimes de perigo (CP, arts. 130 e 131) que se consumam independentemente da transmissão da moléstia. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Estupro sem contato físico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5231, 27 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60242. Acesso em: 26 abr. 2024.

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