3 ASPECTOS POLÍTICO-CRIMINAIS DO FEMINICÍDIO E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE
Para um importante setor da doutrina, ante os dados estatísticos já destacados, a tipificação do feminicídio se ampara na exigência imposta pela necessidade de se conferir melhor e maior proteção às minorias dentro da sociedade, não procedendo quaisquer críticas relativas ao Direito Penal mínimo, à suficiência da tipificação existente do homicídio qualificado (motivo torpe, inciso I do §2º do art. 121[56]), à violação do princípio da igualdade entre os sexos ou à ineficácia da lei penal com vistas à prevenção de tal conduta[57]. Destarte, a criação da nova figura traria o aperfeiçoamento e atualização da norma penal para incidir em condutas que antes eram acolhidas ou justificadas pela sociedade, embora atingissem flagrantemente bem jurídico já protegido pela lei penal – o direito à vida. O homicídio dessas mulheres por seus parceiros passa a ser visto como algo intolerável e inaceitável, e a nova normativa permite a produção de estatísticas e políticas de enfrentamento[58].
Tem-se assistido, nos últimos anos, ao fenômeno da inflação penal, onde verificamos muitas neocriminalizações e pouquíssimas descriminalizações[59]. Essa atual expansão do Direito Penal decorre da atual sociedade, que é caracterizada pelos incomparáveis avanços tecnológicos e, consequentemente, pela sensação geral de insegurança, que é um dos traços mais significativos das sociedades pós-industriais[60]. Umas das manifestações mais evidentes neste tema é a proliferação dos delitos de perigo abstrato, sob o equívoco de que estes constituem a única forma eficiente de proteger devidamente determinados bens jurídicos, frente a denominada sociedade de riscos, uma vez que este recurso oferece a proteção penal muito antes do bem jurídico ser colocado em perigo, esquecendo-se da função precípua do Direito Penal[61]. Deste modo, ao invés de tendermos para um Direito Penal cada vez menos interventivo em conflitos sociais, o que temos é o oposto. Diante das mais fracassadas e equivocadas políticas econômicas e sociais, bem como a não inutilização de outros ramos do Direito - aptos a solucionar melhor os problemas criados pela sociedade de riscos -, se espera do Direito Penal uma solução eficaz, o que não é seu papel, sendo transformado dia-a-dia, num Direito Penal simbólico[62].
Assim, em relação ao às novas modalidades de homicídio qualificado (feminicídio, e homicídio de agentes de segurança) trazidas pelas Leis n.º 13.104 e 13.142, ambas de 2015 é certo que a norma penal, temos, claramente, duas hipóteses em que tais normas não terão, por si só, não terá eficácia eficácia para conter ou paliar os fenômenos sociais ocorridos (v. g. mortalidade de mulheres e policiais), entretanto, através desses fenômenos, pretende-se legitimar o exercício do poder punitivo mediante a invocação de uma espécie de função de paideia que, supostamente, obterá os resultados a que se propõe, e que os problemas sociais não se agravarão, aproveitando-se assim, do sistema penal para tranquilizarr a opinião pública e, deste modo, fomentar o clientelismo político. Certo é,A verdade é que o poder punitivo quase sempre procede dessa maneira, em razão da escassez de proteção real que proporciona. Num Direito Penal simbólico, essa característica é tão manifesta que, ante a impossibilidade de negá-la, se opta por confessar abertamente seu desígnio manipulador de engano ao eleitorado[63].
Contra esse simbolismo penal, argumenta-se que tratar mais severamente a agressão contra mulheres independentemente da constatação de vulnerabilidade da vítima é propugnar uma espécie de inferioridade ontológica do sexo feminino, de modo que a hipossuficiência da vítima, em diferentes casos, é o que deveria legitimar a construção de uma figura qualificada de homicídio independentemente do sexo (v. g., o homem que mata sua filha adulta deveria receber punição tão severa quanto o que assassina seu filho criança). A inovação legislativa, portanto, apenas traria nova lesão à igualdade constitucional entre homens e mulheres e uma perpetuação da vitimização destas últimas[64].
Igualdade essa que define-se como um princípio geral que atinge todos os ramos do Direito, com as devidas nuances e peculiaridades inerentes a cada um deles. E não se pode confundir o ter e o ser (aspectos sociológicos) com o ideal jurídico. E em termos jurídicos, a igualdade é sempre constitucional, possuindo dimensões que se ancoram nos demais ramos do Direito. No caso em tela, pensamos em uma igualdade constitucional-penal, campo em que vigora, em verdade, o princípio da desigualdade formal, e não o da igualdade material[65], pois o plano normativo (dever ser) é o plano da igualdade formal, sendo a ideia de igualdade (do mundo do ser) utópica, perfazendo-se necessário partir para a desigualdade formal[66].
A definição de igualdade cunhada por Rui Barbosa que propugna “tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais”[67] é, em verdade, tautológica e não deve ser usada pela ciência do Direito. Quem é igual? Quem é desigual? Não se está a dizer nada aqui, não se resolve o problema no plano social e, menos ainda, no jurídico. Não se pode confundir a igualdade (princípio jurídico) com o igualitarismo ideológico de gênero. Mais ainda, não é equânime (v. g. igualdade estrita)[68] considerar e valorar de modo singular a questão de gênero, sem levar em consideração se há ou não a vulnerabilidade que demanda o favor legal. Nisso não há justiça (igualdade), mas arbítrio! Há uma compreensão equivocada da iustitia commutativa. Nesse sentido, toda norma “tem que generalizar. Uma ‘norma’ individualizante, uma ‘norma’ especificamente para este, aquele ou aqueloutro caso é uma autocontradição, não é uma norma” [69]. É evidente que a generalização pode ter diferente amplitude, pois a norma não tem de valer sempre para todas as pessoas, desde que presentes o elemento discriminador (v. g. idade, nível escolar, estrutura, pobreza, etc.) em busca de uma premissa maior, a finalidade normativa[70]. Não se está a negar aqui que o Estado social de Direito deve procurar proteger pessoas que estejam em condições de inferioridade, entretanto, não se vê, no gênero feminino ou masculino, razão suficiente de, por si só, justificar o discrimen.
Indaga-se, ainda, para além disso, se o Direito Penal é o instrumento adequado para a visibilização e a prevenção da violência de gênero no Brasil. O Direito Penal tradicionalmente reduz os problemas a um ato, com posições definidas de autor e vítima. Assim, o ato de violência tende a ser visto como um episódio isolado na vida do casal, completamente apartado do contexto estrutural da violência de gênero[71]. Ademais, Além disso, a aposta na aplicação de prisão ao agressor tampouco parece ser a melhor estratégia, pois quando o sistema intervém, a mulher já foi morta.
Não restam dúvidas de que, enquanto a mulher não estiver livre de um ambiente de desigualdade e violência no âmbito doméstico, não poderá desempenhar o mesmo papel de protagonismo que os homens nos espaços públicos de convivência e estará inserida em um contexto social de discriminação que se retroalimenta[72]. Mas nos parece que a tipificação do feminicídio é uma aposta equivocada no maior rigor punitivo como método de solução de um problema visceralmente existente no seio social. A escolha pela criminalização do homicídio “por razões da condição do sexo feminino” é uma franca atitude meramente simbólica do Poder Público, que assim vira as costas para o problema em sua essência. Para começar, rechaçou o conceito de gênero que os movimentos feministas fizeram tanto esforço para disseminar, abandonando avanços conceituais relevantes construídos pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que enfrentou a violência de gênero com um fenômeno complexo a merecer distintos olhares[73]. O fato é que se o homicídio de uma mulher aconteceu dentro do lar, é porque a rede de proteção instituída formalmente pela Lei Maria da Penha falhou. Mas em vez de se cobrar a implementação efetiva dessa rede em todos os Municípios e o fortalecimento das políticas públicas de proteção ao gênero feminino (Delegacias da Mulher, abrigos, medidas protetivas e instalação de Juizados de Violência Doméstica nas comarcas), aumenta-se a pena dos homicídios, reconhecendo-se o fracasso do Estado: é dizer, não se altera o funcionamento da engrenagem que produz e alimenta a violência contra a mulher, mas buscam-se “soluções mágicas” com o aumento das taxas de encarceramento[74].
Demais disso, não se pode olvidar que o Direito Penal foi concebido como um sistema de controle e opressão de grupos discriminados, selecionando continuamente o pobre, o negro e os marginalizados de todas as formas (moradores de rua, usuários de drogas, travestis, etc.)[75]. Trata-se de uma ferramenta de legitimação discursiva da perpetuação do ciclo de violência que atinge principalmente os grupos cujos direitos são continuamente violados nas relações sociais cotidianas, o que nos conduz à pergunta: como pode um mecanismo de repressão servir de ferramenta emancipatória?[76]
O que se constata, então, é que para proteger as mulheres vítimas da violência de gênero dentro de suas próprias casas, “prenderemos por mais tempo os homens pobres e negros, faremos isso também para proteger os homossexuais e, no final, com um milhão de pobres e pretos presos (estamos chegando lá!), criminalizaremos com maior rigor o racismo. E, no meio do processo, serão milhões de mulheres (crianças, adultas e idosas) que terão passado pelo estupro institucionalizado das revistas íntimas vexatórias para visitar seus filhos, namorados e pais nas prisões. Algumas delas serão presas como traficantes por levarem droga consigo para dentro dos presídios. E assim se alimenta o ciclo de proteção dos grupos discriminados pelo Direito Penal”[77].
Em uma sociedade marcadamente punitivista como a brasileira, criar um crime tornou-se a melhor saída para comunicar a reprovabilidade de uma conduta, valorizando o Direito ou a importância de uma causa[78]. Mas a comunicação promovida pela tipificação do feminicídio deve ser vista como um elemento no bojo de um conjunto de estratégias de ação: deve ser conectada a um movimento mais amplo de reconhecimento social do problema da violência doméstica contra mulheres, que ganhou forte impulso a partir da promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006[79]. Assim, para além do conteúdo criminalizante, essa Lei trouxe um importante e consistente conteúdo de políticas públicas específicas e integrais de enfrentamento estrutural da violência de gênero, que são igualmente úteis no tocante ao rompimento da violência e prevenção do assassinato de mulheres. Tanto é assim que as estatísticas comprovam o impacto significativo da Lei 11.340/2006 na redução dos homicídios contra mulheres dentro de suas residências, que tiveram um decréscimo de 10% na última década[80].
Demais disso, pesquisa efetuada pela ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero –, analisou os procedimentos instaurados a partir das mortes de mulheres no Distrito Federal entre os anos de 2006 e 2011, constatando que parte significativa dessas mortes foram provocadas em contexto de violência doméstica e familiar. Cerca de 97% destas mortes terminaram com a condenação do autor, com a elevada pena média de 15 anos de reclusão. Ou seja, trata-se de um setor do sistema de justiça criminal em que há pouquíssima impunidade e as penas costumam ser altas[81].
Um setor da doutrina, com o qual concordamos, atesta que “criar um novo tipo penal sem olhas para todas essas questões significa negligenciar o que há de mais promissor na política de enfrentamento à violência”[82]. Ao criar a figura do feminicídio, por tudo que aqui se acaba de dizer, o Estado lava as mãos em relação à sua responsabilidade de empreender políticas públicas eficientes para o desenvolvimento humano do País e estende as garras de seu aparato repressivo e violência institucionalizada contra a qual (e não pela qual) deveriam estar lutando os grupos de defesas de direitos humanos no Brasil[83].
Assim, independentemente das estatísticas que corroboram esse entendimento, e da infrutífera discussão sobre se a qualificadora relativa ao motivo torpe já abarcaria estas espécies de homicídio, o que questiona a doutrina que já se debruçou sobre a análise do referido inciso é se de fato a alteração da lei, com o maior recrudescimento das penas, poderia contribuir em algo para a prevenção deste famigerado crime[84]. Em linhas gerais, nota-se que a incremento do rigor das penas pouco ou nada pode fazer para alterar uma situação fática cuja força motriz lastreia-se em um preconceito histórico enraizado culturalmente e que só se poderia modificar a poder de políticas públicas educacionais que promovessem a igualdade entre os gêneros desde as mais tenras idades.