Estamos sob a vigência da Lei 10.826/2003, lei mensaleira cujo projeto tramitou sob a égide do mensalão, conforme podemos ler no acórdão da AP 470-STF. Em um país sério qualquer operador de direito negaria vigência a esta lei, mas acima da própria lei está a ideologia desarmamentista, que faz com que se pressuponha crime para qualquer coisa que diga respeito a armas de fogo, para excepcionalmente se aceitar, a duras penas, os fatos cotidianos que são irrelevantes penalmente.
A questão da venda de armas de fogo por particular é apenas mais uma daquelas ocultas sob a penumbra do pensamento desarmamentista, onde infelizmente vemos operadores de direito e até mesmo doutrinadores impondo o cumprimento do PNDH-3 sob a lei. Isso mesmo.
Diretriz 13 - Objetivo estratégico I:
Ampliação do controle de armas de fogo em circulação no país.
O objetivo estratégico do plano que é reconhecido como o precursor da implantação do Comunismo Bolivariano no Brasil tem servido por muitos anos como base ideológica para todos os atos do governo, não sendo raro se ler decisões administrativas e até mesmo judiciais com ele alinhados, ainda que em descumprimento da lei.
Mas salta aos olhos ver pessoas doutas e cultas violando as regras até mesmo da língua portuguesa com a finalidade explícita de se condenar alguém por um crime não previsto em nosso ordenamento jurídico. Insisto que se trata de um julgamento ideológico, muito além do livre convencimento.
Trago um caso concreto.
Fulano contratou o advogado Beltrano, que após finalizar seus trabalhos viu que não receberia seus honorários. As partes lavraram contrato de dação em pagamento, onde Fulano entregou uma pistola calibre 380 ACP de sua propriedade a Beltrano. Passado algum tempo Beltrano foi preso com esta arma e acusado de crimes previstos no Estatuto do Desarmamento, mas como a transferência da arma ainda não estava finalizada no nome de Beltrano, Fulano foi acusado pelo Ministério Público pelo crime de CEDER arma de fogo. Foi julgada procedente a acusação contra Fulano, sob o fundamento de que houve CESSÃO ONEROSA da arma, o que pode ser equiparado à venda.
Na sentença foram colacionadas doutrinas, a saber:
Neste sentido, aliás, a lição de Fernando Capez 1, mencionada nos memoriais apresentados pelo Ministério Público (fl. 88v):
Questão que suscitará controvérsias é a relativa à venda de arma de fogo de uso permitido, que não seja realizada no exercício de atividade comercial ou industrial. Nesse aspecto, aparentemente, houve uma omissão do legislador, já que não consta dentre as ações nucleares típicas do art. 14 o verbo nuclear vender, de forma que, à primeira vista, aquele que vende arma própria a outrem não responde por crime algum. No entanto, entendemos que a conduta poderá perfeitamente ser enquadrada nos verbos ceder ou fornecer, não havendo que falar em atipicidade da conduta. Com efeito, a venda nada mais é do que a alienação ou cessão por certo preço. A cessão não gratuita, por sua vez, consiste na transferência a outrem de direitos, posse ou propriedade de algo, também mediante o pagamento de certo preço. Seria, portanto, redundante manter o verbo “vender” dentre as ações nucleares típicas do art. 14.
Neste ponto o ilustre doutrinador não se atentou ao fato de que o verbo VENDER era um dos núcleos do crime similar da lei revogada pelo Estatuto do Desarmamento, e por ter estudado insuficientemente o assunto não percebeu se tratar de abolitio criminis, preferindo acreditar que houve omissão do legislador, suprida por ele mesmo pela inclusão do verbo vender como substitutivo do verbo CEDER.
Sob a mesma orientação, Luiz Flávio Gomes2 (fl. 89):
A conduta de vender não está prevista expressamente na lei atual. Mas do art. 14 citado consta o verbo ceder (ainda que gratuitamente). É o caso de admitir a chamada interpretação extensiva, que não se confunde com a analogia (vedada em direito penal, contra o réu). Na interpretação extensiva ainda existe vontade do legislador de criminalizar a conduta. Na analogia não está presente essa vontade. (...)o ato de vender arma de fogo ilegalmente é crime porque a lei pune o ato de ceder, ainda que gratuitamente. No ato da venda existe uma cessão a título oneroso. A lei pune, como se vê, qualquer ato de cessão. Na venda existe uma cessão. Por isso que a conduta é típica, sem violar as garantias da legalidade.
Foi também apresentada jurisprudência dando sustentação a estas teses.
O magistrado, bem como os dois reconhecidíssimos doutrinadores estão enganados, pelos fatos que serão demonstrados a seguir.
A questão é simples demais para consumir dezenas de laudas.
Primeiramente, ao estudar o caso concreto vem o fato de que a dação em pagamento é prevista em lei, especificamente nos artigos 356 e seguintes do Código Civil. O artigo 357 menciona especificamente que “Determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda.”
Então, no caso de Fulano que deu seu bem em pagamento da dívida com Beltrano, a questão se resolve pela simples leitura da lei, que especifica que tudo se resolve segundo as normas do contrato de compra e venda – matéria de primeiro ano do Curso de Direito. Porém o presente artigo seria demasiado pobre se se bastasse apenas em um caso específico.
Mas o legislador revogou a Lei 9.437/1997 que continha em seu artigo 10 os verbos VENDER e CEDER, compreendendo a diferença entre ambos, para na nova legislação colocar os verbos CEDER nos artigos 14 e 16 e deslocar a venda (comercial ou industrial) para o artigo 17 deixando in albis a venda não comercial. Então temos que até a entrada em vigor da Lei 10.826/2003 a venda de arma por particular era crime, onde o Estatuto do Desarmamento em relação a este ponto é novatio legis com abolitio criminis. E deixo o desdobramento doutrinário destes dois conceitos para quem quiser se aprofundar no estudo.
A Lei 10.826/2003 é regulamentada pelo Decreto 5.123, de 01 de Julho de 2004, onde no art. 13 consta o seguinte sobre a questão em discussão:
A transferência de propriedade da arma de fogo, por qualquer das formas em direito admitidas, entre particulares, sejam pessoas físicas ou jurídicas, estará sujeita à prévia autorização da Polícia Federal, aplicando-se ao interessado na aquisição as disposições do art. 12 deste Decreto
Esta é uma disposição REGULAMENTAR, e não há a previsão legal correspondente determinando a autorização prévia para a venda (nossa Constituição Federal veda a criação de obrigação de fazer ou de não fazer a não ser em LEI). Ainda assim, nem mesmo neste artigo está determinada a questão do MOMENTO DA TRADIÇÃO, que é a entrega do bem do vendedor para o adquirente e que não se confunde com a venda em si. E todos sabemos que não há vedação a que alguém venda sua propriedade a outrem – as armas de particular NÃO SÃO PROPRIEDADE DO ESTADO, mas das pessoas físicas que as adquirem.
Confundir VENDA com CESSÃO é erro crasso que não foi cometido pelo legislador, de vez que existem dois tipos penais separados, em artigos distintos e com penas diferenciadas: Ceder é um dos núcleos do art. 14 da Lei 10.826/2003, enquanto que vender é núcleo do art. 17, não é aplicável a particulares, porque o art. 17 se destina a quem exerce atividade comercial ou industrial.
Corroborando tudo acima, recente decisão do TJ-RS:
ATIPICIDADE DA CONDUTA. VENDER ARMA DE FOGO.O tipo penal do art. 14 não contempla a figura de vender, prevista apenas no art. 17, mas para situação diferente. E vender é diferente de ceder ou emprestar. Absolvição de um dos réus. (TJRS - 4a Cam. Criminal – Relator Des. IVAN LEOMAR BRUXEL, J. 27/07/2017)
Alguns dirão que existe jurisprudência para tudo. Como podemos ver, também existe doutrina para tudo, e Hans Kelsen bem demonstrou em sua Filosofia Pura do Direito que do ponto de vista de um positivista, nenhum tribunal nazista jamais violou nenhuma lei – como de fato não violaram (as leis alemãs nem tampouco as leis internacionais da época).
Mas a questão se afasta de Kelsen e se aproxima de Kafka.
O fato é que NÃO EXISTE A FIGURA TÍPICA DE SE VENDER ARMA DE FOGO SEM AUTORIZAÇÃO E EM DESACORDO COM DETERMINAÇÃO LEGAL OU REGULAMENTAR quando o agente é pessoa física que não esteja em atividade comercial ou industrial, cabendo a historiadores jurídicos em algum tempo analisar estes episódios onde vemos hoje pessoas inocentes sendo condenadas por crimes não previstos em lei.
Notas
1 CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento – Comentários à Lei n. 10.826, de 22-12-2003, 4ª edição. Saraiva, 03/2006.
2 Disponível em: http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2644611/artigos-do-prof-lfg-vender-arma-de-fogo-ilegalmente-fato-tipico.