Campo De Atuação E Formas De Manifestação Da Ação Afirmativa
Conforme já esposado, a ação afirmativa tem por escopo diminuir as desigualdades sociais historicamente existentes, inserindo-se em três campos de atuação, quais sejam:
1.No mercado de trabalho: Neste setor, as medidas de Ação afirmativa visam colocar as minorias (mulheres, negros e demais setores sociais historicamente discriminados) dentro do mercado de trabalho, aumentando suas possibilidades de contratação e de promoção.
2.Na área empresarial: aqui esses instrumentos visam dar oportunidade de empresas pertencentes a estas minorias de concorrer em igualdade de condições com as demais empresas para contratação com os governos federal, estaduais e municipais.
3.Na área educacional: Neste campo, o que se busca é dar efetiva oportunidade para estas minorias estudarem, visando-se, principalmente, a chegada ao ensino superior, predominantemente atingido pelos setores privilegiados da sociedade.
São estes os campos de atuação da ação afirmativa; entretanto, várias são suas formas de manifestação, devendo ficar claro que o sistema de cotas não é a única forma. Empresas americanas, percebendo que os consumidores caracterizam-se principalmente pela multirracialidade e tendo em vista a internacionalização da economia, começaram a apostar nos mecanismos de ação afirmativa, objetivando obter uma força de trabalho diversificada, o que gerou resultados muito positivos, conforme estudo publicado na revista Forbes, no qual demonstra que as empresas que se utilizaram da ação afirmativa lucraram cerca de 18% a mais que as demais.
Há ainda nos Estados Unidos organismos, como por exemplo a National Minority Supplier Development Council, Inc., que intermediam as relações com as chamadas corporations para que estas contratem com as empresas pertencentes às minorias, que jamais seriam alvo de contratação caso não houvesse tais organizações.
As empresas começaram a observar as vantagens que advém da utilização das medidas de ação afirmativa, tanto que várias dela, nos Estados Unidos, já as colocam em prática, sem mesmo haver necessidade de leis as determinando.
Outra forma de manifestação da ação afirmativa é a colocação de anúncios pelas grandes empresas realizando uma convocação em massa para emprego nos veículos de comunicação, aumentando assim as chances de contratação de um membro qualificado deste setor discriminado, pois, como se sabe, o que acontece normalmente é a empresa de grande porte fazer a colocação de seu pessoal por meio de indicação, forma esta que as minorias, por razões óbvias, nunca alcançam.
Muitas das vezes, as empresas utilizam o método de metas e cronogramas, geralmente confundido com o sistema de cotas. Este sistema não determina a contratação ou promoção de um número específico de candidatos pertencentes às minorias (como nas cotas), dando-se da seguinte forma: a empresa coloca como meta aumentar de 1 para 10%, por exemplo, o percentual de funcionários negros, mulheres, deficientes etc., no nível gerencial, o que encoraja seus gerentes a concentrar esforços na busca de candidatos qualificados para a ocupação destes novos cargos. Há empresas multinacionais, com sede nos Estados Unidos, têm aplicado a ação afirmativa em suas filiais no Brasil. São elas, por exemplo: Levi Strauss, Levi&squos, e Xerox.
Na área de educação, é sabido que somente uma pequena parcela da população tem acesso à educação, sendo menor ainda este número que consegue atingir a Universidade. A ação afirmativa visa justamente dar oportunidade educacional aos estudantes qualificados.
Não se pode confundir as medidas de ação afirmativa com preferências ou privilégios, pois tais instrumentos recompensam o mérito. Isso significa que não é qualquer um que é beneficiado pelas medidas de compensação de desigualdades.
Imaginemos dois estudantes que estejam prestando vestibular. Um oriundo de escola particular (predominantemente freqüentada por alunos brancos) que tira nota sete, e outro de escola pública (em regra, freqüentada por negros) que obteve nota cinco. Além do ensino notoriamente de melhor qualidade que aquele tem acesso, há ainda as atividades extracurriculares que auxiliam na apreensão dos conteúdos escolares por estes estudantes, tais como viagens, familiaridade com a informática, diálogos mais profundos com a cultura universal, e demais facilidades que as minorias não vivenciam. É patente a injustiça de toda essa situação, devendo a mesma ser remediada.
As formas de manifestação da ação afirmativa neste campo pode se dar por meio dos institutos que oferecem curso pré-vestibular para estudantes negros, como por exemplo a experiência de Frei Davi, na Baixada Fluminense, e o Instituto Palmares, na Lapa; pela concessão de bolsas de estudo preferenciais etc.
Várias são as formas de manifestação da ação afirmativa, dentro destes três campos de atuação acima delimitados, sendo o sistema de cotas somente mais um dos modos de aplicação. Colocar a ação afirmativa como sinônimo de sistema de cotas, exclusivamente, é o discurso utilizado por aqueles a quem interessa a perpetuação das desigualdades históricas, tendo por objetivo, nesta fala, provocar a antipatia da opinião pública.
Ação Afirmativa No Brasil
"O persistente caráter autoritário do sistema político brasileiro, associado à mitologia da democracia racial e da ideologia do embranquecimento, mascara os antagonismos raciais e desmobiliza a comunidade afro-brasileira, numa característica estratégica de subordinação racial". Sérgio Abreu [10]
O regime escravocrata influenciou fortemente a estratificação social, sendo esta situação acentuada no momento pós-abolicionista com a chegada dos imigrantes europeus e a competição acirrada pelo mercado de trabalho. Somente a partir dos anos 30, começou a proletarização e urbanização dos negros e dos mulatos, havendo uma melhoria na situação nos anos 50, em razão da industrialização no País.
Toda essa questão histórica perpetua até os dias de hoje a discriminação, acarretando nas seguintes conseqüências, conforme Abreu (1999):
- O desenvolvimento escolar das crianças negras e pardas é mais lento do que entre as crianças brancas (PNDA de 1982).
- Dois terços das crianças negras e pardas têm um atraso de três ou mais séries em relação às crianças brancas, ao final do ensino fundamental. O percentual de crianças que chegam ao final de sua trajetória escolar sem atraso, com pais que têm um a três anos e instrução, 19,5% são de brancos, 5,9% de negros e 12% de pardos.
- O baixo número de pessoas que atinge à Universidade é o resultado da pobre escolarização os níveis de ensino básico. Enquanto 9,2% dos brancos concluem o curso de nível superior, somente 1,2% de negros e 2,1% de pardos conseguem atingir esse grau de escolaridade.
Importante se faz registrar que os baixos índices de escolaridade dos afro-brasileiros estão associados também ao estigma enraizado. Pesquisas de campo realizadas pelo profº Abreu (1988), em escolas de primeiro grau no Município do Rio de Janeiro, revelou que 75% dos entrevistados responderam que os brancos detêm qualidades aceitas socialmente, enquanto os negros possuem características marginalizadas pela sociedade.
- A relação entre as desigualdades raciais no mercado de trabalho e na educação gera conseqüência nos índices de criminalidade e nos de população carcerária.
Recente estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), demonstrou que no Rio de Janeiro o perfil da maioria de crianças e adolescentes assassinados é de pobre, do sexo masculino, negro e mulato, morador de bairro de baixa renda e favelas.
Por esses breves dados estatísticos, percebe-se que a desigualdade e a discriminação existem, apesar de muitos tentarem negar, e ela é (com)sentida em todos os campos, como o educacional, o social, o profissional, e para extirpá-la, ou ao menos minorá-la, devemos lançar mão de medidas da ação afirmativa, ressaltando ainda que a extinção das desigualdades é um dos objetivos fundamentais do Estado.
Com exceção do período de repressão militar, o Brasil ratificou diversos tratados internacionais de proteção contra o racismo e a discriminação, especialmente a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 27/03/1968; Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino, de 19/04/1968; e Convenção (n.º 111) sobre Discriminação em Emprego e Profissão, de 26/11/1965.
As leis contra discriminação também são de suma importância, como se pode observar da análise da Lei n.º 7.716/89 (chamada Lei Caó), que gerou três vezes mais o número de denúncias contra a discriminação racial e de condenações, em dois anos de vigência do que em trinta e quatro anos da Lei Afonso Arinos ( Lei n.º 1.390/51), que tratava as práticas racistas como contravenção. Entretanto, nenhuma das duas leis avançaram significativamente no combate à discriminação.
Todos esses tratados ratificados e leis punindo a discriminação são de extrema importância e prevêem a adoção de medidas compensatórias a grupos discriminados.
A Cimeira-99, primeira reunião entre Chefes de Estado e de Governo da América Latina e Caribe e da União Européia, realizada na cidade do Rio de Janeiro nos dias 28 e 29 de junho de 1999, estabeleceu através da Declaração do Rio de Janeiro, os seguintes pontos atinentes aos direitos humanos:
1.Promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades individuais, inclusive o direito ao desenvolvimento, levando em consideração seu caráter universal, interdependente e indivisível, reconhecendo que sua promoção e proteção são responsabilidade dos Estados e de todos os cidadãos.(item 12, área política).
2.Fortalecer a educação para a paz e rejeitar todas as formas de intolerância, inclusive a xenofobia e o racismo, em benefício da segurança internacional e regional e do desenvolvimento nacional, bem como promover e proteger os direitos dos grupos mais vulneráveis da sociedade, em especial as crianças, os jovens, os deficientes e as populações deslocadas e os trabalhadores migrantes e suas famílias. (item 13, área política)
3.Reafirmar a total igualdade de gênero, como parte inalienável integral e indivisível de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, comprometendo-nos assim a incorporar uma perspectiva de gênero nas políticas públicas de nossos Governos. (item 15, área política).
4.promover e proteger os direitos das populações indígenas, inclusive seu direito de participar eqüitativamente das oportunidades e benefícios do desenvolvimento político, econômico e social, e deles desfrutar, com total respeito à sua identidade, cultura e tradições. (item 16, área política)
5.Reiterar nosso compromisso, no tocante ao estabelecimento de uma parceira sólida entre a América Latina e Caribe e a União Européia, nas esferas educacional, cultural e humana, com base em valores compartilhados e no reconhecimento da importância da educação para o alcance da igualdade social e do progresso científico e tecnológico. Comprometemo-nos também a conduzir nossas relações fundadas nos princípios da igualdade e do respeito à pluralidade e à diversidade, sem distinção de raça, religião ou gênero, preceitos que constituem o meio ideal de construção de uma sociedade aberta, tolerante e abrangente, na qual o direito do indivíduo à liberdade e ao respeito mútuo seja garantido pelo acesso igualitário à capacidade produtiva, à saúde, à educação e à proteção civil. (item 54, área cultural, educacional, científica, tecnológica, social e humana)
6.Promover o acesso universal à educação e à capacitação profissional para o emprego como fatores determinantes da redução das desigualdades sociais, diminuição da pobreza e criação de empregos adequadamente remunerados, garantindo uma educação básica completa para todas as pessoas em idade escolar, e do direito individual de manutenção da identidade cultural e lingüística; destacamos o direito à própria educação, fundamentado na responsabilidade nacional específica de cada país de oferecer educação adequada a todos os seus cidadãos. (item 64).
Como se observa destes pontos, ficou estabelecido na Cimeira-99 que os países que assinaram a Declaração do Rio estão juntando esforços para tentar diminuir as desigualdades, inclusive com a utilização de medidas de ação afirmativa.
Existem alguns casos, no Brasil, de aplicação, mesmo que tímida, de medidas de ação afirmativa, como é o caso do tratamento preferencial aos portadores de deficiência física; a recente reserva de 20% para mulheres nas listas de candidatos de todos os partidos; a famosa Lei dos Dois Terços, que obrigava as empresas a contratarem um a maioria de profissionais brasileiros, em uma época que era grande o número de imigrantes no mercado de trabalho e mais recentemente o polêmico sistema de cotas adotado para ingresso de candidatos declarados negros em algumas Universidades do Rio de Janeiro.
O Senador Abdias Nascimento apresentou o projeto de lei n.º 52, em 1997, no qual tipificava como crime a prática de racismo, além da discriminação em relação a orientação sexual, religião, idade, deficiência, procedência nacional etc. Neste projeto, constava ainda o artigo 4º que pretendia dispor como não configuração de crime "...a distinção realizada com o propósito de implementar uma ação compensatória em função de situações discriminatórias históricas ou passadas, ou quando existe uma relação lógica necessária entre a característica na qual se baseia a distinção e o propósito dessa distinção, ou ainda por previsão legal". (g.n.)
Previa o projeto, então, a ação afirmativa como forma, inclusive, de colocar o País em dia com as obrigações assumidas na arena internacional, conforme menciona o Ilustre Senador quando da justificação de seu projeto, referindo-se às convenções internacionais em que o Brasil é signatário.
Em outro projeto de lei (n.º 73, de 1997), o Senador Abdias visava proibir a contratação, pela União, por pessoas jurídicas da Administração Indireta e demais pessoas físicas e jurídicas que cometessem ações ou omissões em favor da discriminação racial, crimes contra a ordem econômica ou tributária atos que visassem ou tendessem a levar à formação de monopólio ou à eliminação da concorrência e dano ambiental não reparado.
O Senador Abdias, incansável na luta contra a discriminação racial, à época secretário extraordinário de defesa e promoção das populações negras, solicitou, em 11 de agosto de 1993 ao então Governador Leonel Brizola a criação de uma Delegacia Especializada em Crimes Raciais, sendo esta então instituída pelo Decreto n.º 19.585, de 26 de janeiro de 1994.
O projeto de lei n.º 75, de 1997, também de autoria do Senador Abdias Nascimento, disciplinava as medidas de ação compensatória para a implementação do princípio da isonomia social do negro [11], visando atingir "três dimensões da discriminação racial contra o negro no Brasil: as oportunidades e a remuneração do trabalho, a educação e o tratamento policial [12]". Tal projeto fora arquivado definitivamente por haver encerrado a legislatura do Senador, sem que tenha conseguido nenhum parecer favorável nas Comissões Permanentes do Senado.
Em 26 de agosto de 2002, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso edita a medida provisória n.º 63, por meio da qual cria o Programa Diversidade na Universidade, tendo por fim implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros. Esta medida provisória foi prorrogada pelo ato do presidente do Congresso Nacional, publicado no Diário Oficial de 25/10/2002, pagina 1, coluna 2 e transformada em Lei n.º 10558, em 13 de novembro de 2002.
A Lei Estadual (RJ) n.º 4151, de 04 de setembro de 2003, institui o sistema de cotas para ingresso nas Universidades públicas estaduais, tendo por finalidade reduzir desigualdades étnicas, sociais e econômicas, de estudantes carentes oriundos da rede pública de ensino; negros; pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas.
A Lei Estadual (RJ) n.º 4296, de 24 de março de 2004, institui reserva de 10% (dez por cento) das vagas em instituições de ensino fundamental e médio da rede particular para alunos excedentes da rede pública, deles nada podendo ser cobrado a título de matrícula, mensalidade etc.
Como se observa a discriminação ainda é muito grande e muito há que se fazer, temos que sair desta ilusão de "democracia racial", como coloca o Senador Abdias Nascimento, e começarmos a lutar contra todo o tipo de discriminação, seja, racial, de gênero, por nacionalidade etc., pois só assim, começaremos a caminhar verdadeiramente para um mundo mais justo!