O artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, assegura que: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Assim, todo cidadão brasileiro tem o direito de obter uma manifestação conclusiva da justiça quando se sentir lesado ou ameaçado em seus direitos. Aplica-se a mesma regra no âmbito do direito criminal, muito embora na maioria das vezes os cidadãos sejam representados pelo Ministério Público, titular da ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação.
Esta representação ministerial se condiciona a uma série de princípios processuais, notadamente o da obrigatoriedade e o da indisponibilidade da ação. Na verdade, o Ministério Público recebe delegação do Estado para agir em nome do cidadão que não possui capacidade postulatória perante o judiciário. No entanto, isso não significa que o ofendido transfere ao membro do parquet a prerrogativa constitucional de reclamar a apreciação judicial sobre a ofensa de seu direito. Logo, tratando-se de fato a merecer análise judicial, o Ministério Público estará obrigado a representar o lesado.
Apesar disso, em manifesto descompasso com a nova ordem constitucional vigente desde de 1.988, a parte final do art. 28 do Código de Processo Penal, que trata das hipóteses de indeferimento do pedido de arquivamento de inquérito policial formulado por promotor de justiça, submete o Poder Judiciário a simples decisão administrativa do Procurador Geral de Justiça quando ratifica a pretensão ministerial inicial, impedindo que a lesão ou a ameaça de direito do cidadão possa ser submetida ao crivo judicial, constituindo flagrante inconstitucionalidade.
Para melhor compreensão, transcrevemos o enunciado do referido dispositivo processual: "Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedente as razões invocadas, fará remessa ao procurador-geral, e este oferecerá denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual então estará o juiz obrigado a atender", grifamos de propósito.
A prevalecer o citado comando normativo processual, mesmo que o magistrado considerar improcedentes as razões invocadas pelo promotor de justiça, deixando entrever que ao menos em tese haveria lesão ou ameaça de direito a ser apreciada pelo judiciário, fica obrigado a quedar-se inerte diante da medida ratificadora do Procurador Geral de Justiça. E o que é pior, deve-lhe total subordinação, uma vez que não lhe resta outra alternativa senão arquivar o inquérito policial, invertendo-se os papéis institucionais. Em outras palavras, atribui-se jurisdição a um órgão que não possui atribuição judicante, o que não se coaduna com o espírito constitucional da repartição dos poderes.
Por outro lado, não se pode professar que devido o fato ocorrer no âmbito administrativo não se deve falar em jurisdição. Ao contrário, sendo o Poder Judiciário o guardião da Constituição, cabe a ele apreciar todo ato lesivo de direito quando for formalmente provocado, como é o caso de inquérito. Afinal de contas, se o inquérito policial, acompanhando a denúncia ou o pedido de arquivamento, é sempre dirigido a um juiz de direito, é de mediana compreensão que deva caber a um magistrado a decisão sobre a rejeição da peça acusatória ou da que requerer o seu arquivamento.
É bem verdade que o Ministério Público é o titular da ação penal, no entanto, não tem a disponibilidade do direito lesado do ofendido. É o seu representante por excelência. Logo, deve defendê-lo intransigentemente. Se não o faz, a Lei Maior (art. 5º, LIX) prevê a ação penal privada subsidiária da pública, não ficando o ofendido à mercê do desinteresse ministerial.
Neste panorama poderia afirmar existir similitude entre a inércia ministerial e o arquivamento compulsório do inquérito determinado pelo Procurador Geral de Justiça a recomendar em ambos os casos a prerrogativa do ofendido promover a ação penal privada subsidiária da pública? A nosso pensar sim. Tanto numa como na outra situação a conseqüência para a vítima é a mesma, ou seja, a lesão ou ameaça de seu direito deixa de ser apreciada pelo Poder Judiciário como manda a norma constitucional.
Nesse sentido traz-se à colação a abalizada lição do mestre Hélio Tornaghi, citado por Tourinho Filho, Processo Penal, vol. 1, Saraiva, ed. 1999, p. 456: "...o art. 29, permitindo a ação privada subsidiária da pública, não distinguiu a relapsia do pedido de arquivamento. Deixar de oferecer a denúncia no prazo legal ou pedir o arquivamento, durante o prazo ou depois dele, são situações semelhantes para o art. 29". É evidente que para o titular do direito lesado são coisas idênticas.
A tese defensável é a de que somente nos casos de indeferimento do juiz obstado pela manifestação contrária do Procurador Geral de Justiça é que daria ensejo à propositura da ação penal privada substitutiva da pública, uma vez que em havendo deferimento voluntário do magistrado, em última análise o Poder Judiciário teria apreciado a suposta lesão ou ameaça de direito da vítima, desde que essa medida se faça de forma fundamentada (art. 93, IX da CF), o que infelizmente não ocorre nos dias atuais, solucionando a questão logo no seu nascedouro, em que pese a inviabilidade recursal dessa decisão.
A mesma incoerência se registra no caso da ementatio libelli prevista no parágrafo único do art. 384 do Código de Processo Penal, quando diante da recusa do promotor de justiça em emendar a peça acusatória o juiz remete os autos à apreciação do Procurador Geral de Justiça. Se o chefe do Ministério Público não determinar a retificação da denúncia, impor-se-á ao magistrado absolver o acusado, uma vez que não poderá condená-lo por crime não cometido, não violentando a sua consciência jurídica e nem praticando injustiça, restando impune o réu relativamente ao ilícito perpetrado.
Embora se saiba que eventual dano causado pelo delito possa ser reparado no âmbito do direito privado através de ação indenizatória, é sabido que na esfera penal os elementos probatórios são bem mais abrangentes, excluindo-se apenas as provas obtidas por meios ilícitos. Tanto é verdade que o parágrafo único do art. 64 do CPP, sugere ao juiz do cível a suspensão do feito até o julgamento final do processo-crime, o que tem sido uma constante na prática forense. Esta é outra forte razão para que toda ofensa de natureza penal seja dirimida no juízo criminal, visto que um dos principais efeitos da sentença penal condenatória é o dever de indenizar a vítima.
Portanto, se o promotor de justiça requerer o arquivamento do inquérito policial e o juiz discordando do pedido remeter o feito ao Procurador Geral de Justiça, que acatando a tese ministerial impõe ao magistrado inconformado o arquivamento do inquérito, nada impede diante do desinteresse da acusação pública que o ofendido possa promover por conta e risco a ação penal privada subsidiária da pública, uma vez que a lesão de seu direito não foi analisada pelo órgão constitucionalmente competente, o Poder Judiciário.